Capitulo 38

"Sua voz fraca que passa por mim
Por favor, chame meu nome mais uma vez
Estou parado sob o pôr do Sol congelado, mas eu vou caminhar em sua direção passo a passo,
Ainda estou com você."
— Still with You, Jungkook

2020.

Eu estava em um quarto sem portas, grudado à cama. Queria sair, mas uma força imaginária me deixava preso ao móvel e eu chorava com uma sensação de arrependimento. Do quê exatamente, eu não conseguia me lembrar, mas então meu pai surgiu à minha frente com o chinelo em uma das mãos.

— Eu te disse pra não contar pra ninguém, idiota! — Ele gritou e acertou o chinelo nas minhas pernas, por impulso quis me encolher de dor e medo mas algo proibia de me mexer.

— Foi sem querer!!! — Gritei angustiado e ele acertou o chinelo em mim outra vez.

Eu queria me lembrar do que havia feito de "sem querer" que deixou meu pai tão irritado, mas não conseguia.

Então ouvi o chinelo caindo no chão e ele sumiu.

Senti uma onda de liberdade e percebi que já poderia me mexer, mas assim que coloquei os pés no chão o piso não era mais o do meu quarto, e sim de ladrilhos.

Ouvi risadas atrás de mim. Não qualquer risada, mas deboche.

Eu estava sentado no banco de uma praça em Esplendor quando conheci os garotos do bairro. Podia me lembrar daquele momento, semanas após a cirurgia, e que eu estava extremamente pálido e magro.

A primeira coisa que me chamaram foi de "estranho". A segunda foi "doente". Não houve uma terceira coisa, pois eu já estava caindo em um deles desferindo tantos socos que não conseguia me lembrar. Boa parte daquela força vinha de uma onda de raiva súbita que subia toda vez que alguém questionava minha capacidade para algo.

E eu preferia impor medo do que carinho.

Eu sabia que deveria me controlar, aquilo era culpa da oscilação de testosterona somada ao meu psicológico já abalado anteriormente, eu definitivamente não estava preparado para minha transição hormonal.

Minha única sorte era a de ter um pai que entendia bem o que era impor respeito através do medo, pois nunca fui retaliado por ser assim.

As imagens eram tão reais — o garoto apanhando no chão, meu corpo acima do dele, os outros ao redor chocados — porque realmente aconteceram, mas faziam tantos anos que eu não entendia por que eu presenciava tudo aquilo de forma tão real. Pior ainda foi quando me dei conta de que eu não estava em cima do garoto, e sim perto de uma figura igual a minha, como um espectador.

Me aproximei dos dois corpos e abri a boca para gritar ao ver que o rosto do garoto havia se deformado e dava lugar a outro, mais velho, que sorriu com tanta malícia para mim que tive vontade de vomitar.

E o chão abaixo de nós ficou preto com detalhes em vermelho.

Eu sabia que lugar era aquele e uma sensação de pânico tomou conta da minha garganta, mas eu não conseguia gritar, minha voz sumira.

O homem, antes apanhando no chão, agora arrumava sua blusa social branca e sorria para mim, seus cabelos grisalhos me lembravam meu pai e aumentavam o nojo em minha boca.

— Tu é só uma putinha que prefere ser comida por um homem de verdade. — Sua voz entrou no meu ouvido pegajosa, enjoativa. Dei um passo para trás e senti a parede gelada do banheiro sujo da boate que eu não frequentava há tanto tempo.

O homem avançou para cima de mim, mas eu nunca deixaria um imbecil daqueles tentar algo. Por isso, quando essa cena aconteceu realmente o meu instinto o fez acertar um chute no meio de suas pernas, o que o desequilibrou e me fez ganhar tempo para correr.

Contudo, naquele momento, eu estava revivendo a cena novamente e não era capaz de me mexer outra vez. Havia algo errado, pois eu sempre fui capaz de me defender. Por que eu não conseguia mais?

"Eu te disse pra não contar pra ninguém, idiota!"

Ouvi a voz do meu pai gritando em minha cabeça, por todos os cantos.

Ele tinha razão o tempo todo, eu deveria tê-li ouvido!

Quando o homem se aproximou ainda mais, fechei os olhos e o preto da falta de visão continuou depois que os abri.

Meus ouvidos poderiam ser estourados de tão alto e estridente era o som que saía de algum lugar do meu cérebro.

"EU TE DISSE PRA NÃO CONTAR PRA NINGUÉM!"

Ele odiava quando eu me expunha, soltava uma frase comprometedora sem querer ou queria desabafar com alguém. Acabei aprendendo da pior forma que nunca poderia falar de mim mesmo aos outros, não de forma séria.

E então tudo clareou e lá estava ele.

Aquela conversa foi uma das piores que já tive com Charlie na época da faculdade, quando ele começou a deixar a postura ingênua de lado e se mostrar um homem.

E isso o abriu os olhos para muita coisa, inclusive meu comportamento.

Agora eu era um espectador no refeitório, vendo o peito de Charlie subir e descer irritado enquanto eu o olhava desconfortável, depois de tê-lo tirado da mesa de seus amigos.

"— Eu não sei nada sobre você. Nem sei por que a gente ainda conversa, se você nunca abriu a droga dessa boca pra me contar alguma coisa.

— Do que tu tá falando?! Isso não é verdade! — Vi Charlie rindo para minha versão e seu riso fez meu peito doer.

— Então me fala uma frase sincera sobre você! Uma frase!

E eu queria ter dito tanta coisa, mas não conseguia.

— Você não é capaz de falar NADA sobre você pra mim?

— Eu...

— Eu..?

— Eu, sou... Eu não sou obrigado a te contar nada.

Eu sabia que estava fazendo Charlie me odiar, mas eu não conseguia evitar. Ele respirou fundo e se afastou de mim.

— Eu vou voltar pra minha mesa, e na próxima vez que for falar com os meus amigos, vê se cria um personagem melhor. Todo dia você faz um mais babaca que o outro."

Babaca. Era o "apelido" que eu mais ouvia.

Minha versão da cena ficou estática vendo o guri se afastar, mas eu consegui mover meu corpo e corri até ele. Surpreendentemente, quando ousei tocar seu ombro e ele sentiu e se virou rápido para mim.

Arregalei os olhos ao ver como ele me encarava com ódio.

— Por que quer falar comigo? — Charlie realmente estava me vendo?

— E-eu...

— Você é um idiota! Eu nem te conheço! Não acredito em nada do que você fala!

— Não é assim... — Minha voz falhou e me senti frio, os braços descobertos se arrepiaram e me abracei. — Eu tô tentando...

— Tentando me fazer gostar de você?! Pra quê? Ninguém gosta de você de verdade porque você é um falso!

Meu consciente tentou me alertar de que aquele Charlie não era real, mas as palavras doíam tanto que não fazia diferença.

— Mas e se eu mudar...

— Você não consegue mudar! — Ele começou a chorar e passou a mão no rosto para afastar as lágrimas.

— Mas Charlie...

— Eu te disse pra não contar nada pra ninguém. — A voz grossa rente ao meu ouvido deixou minha fala presa na garganta. Meu pai se colocou do meu lado e segurou meu braço com tanta força que gemi de dor. — Vamos embora.

Encarei Max assustado e quando voltei a olhar para frente, no lugar de Charlie estava minha médica. Eu não me lembrava do seu nome, só sabia que era ela por causa dos seus cabelos cor de fogo característico dela — era a amante do meu pai.

— Jason, querido, é importante que mantenha essas informações sobre ti, nem todo mundo vai te tratar bem se souber. — Ela disse com um sorriso falso e colocou a mão no meu ombro. Contudo, quando olhei para o gesto o braço não parecia mais o dela coberto pelo jaleco e sim de outro homem, também em roupa hospitalar, que eu já não reconhecia.

— Mas quem é...

— A cirurgia foi um sucesso, não foi? Quantos meninos como ti queriam ter essa opção... Quantas meninas queriam ser como tu...— Seu sorriso se abriu em um escárnio tão grande que meu estômago revirou, meu pai continuava me agarrando pelo braço.

— EU NÃO SOU UMA MENINA!!!

— Então é o quê? — O homem calvo se aproximou e ficou há poucos centímetros do meu corpo. — Vai me dizer que é um menino?

Comecei a tremer, queria que aquilo acabasse, sabia que não era real. Mas eu não tinha autonomia sobre isso.

— Não vai me dizer que... É uma aberraçãozinha igual aquele seu amiguinho que usa saia? Tu não acha mesmo que vai sair por aí falando isso, né? Tu é só uma guria confusa que a gente deixou brincar de ser homem, deveria agradecer ao seu pai por isso!

Senti o tapa forte do médico no meu rosto e me encolhi ainda mais, sem parar de tremer. Eu teria caído, mas meu pai me puxou para cima e falou com nojo para mim por uma última vez:

— Não vai achando que tem alguma coisa que representa a porra que tu é, tu deveria ter vergonha de ainda ir atrás disso. Aceita o que eu te ofereci e cala essa boca antes de sair por aí falando alguma coisa!

E antes que o médico à minha frente pudesse me dar outro tapa, eu acordei.

A roupa estava colada em meu corpo pelo suor e eu sentia que havia acabado de correr por quilômetros. Estava cansado fisicamente, não havia dormido nada. Charlie continuava ressonando ao meu lado, aconchegado na própria coberta.

Passei as mãos no rosto com angústia e tentei me lembrar com exatidão de tudo o que havia sonhado, foi confuso demais. Muitas pessoas, muitas cenas, muitas frases estranhas. Eu não conseguia entender, mas nada me impedia de me abalar pelas falas."

"Eu te disse pra não contar nada pra ninguém."

Aquela frase martelava minha cabeça.

Com cuidado, saí da cama sem acordar Charlie e liguei o visor do meu celular, surpreso por ainda ser seis e meia.

O frio da manhã estava maior pelo Sol ainda estar tímido, então peguei a jaqueta moletom e a de couro jogadas em cima da cômoda — ainda tomando cuidado para não fazer barulho.

Precisava sair um pouco ou iria enlouquecer.

Pensei em avisar Charlie, mas desisti. Deixaria para quando acordasse me manda mensagem ou ligar, tanto faz. Eu ainda estava inerte pelo efeito do sonho que mais foi um pesadelo.

Achei as chaves da moto não usada há tempos e demorei para ligá-la. Deixei o capacete amarrado atrás e guardei a máscara descartável no bolso, queria sentir o vento no rosto.

Eu precisava tirar aquela angústia do peito.

A moto roncou e abri o portão de madeira da garagem de Paloma, o qual nunca usamos desde o início da quarentena.

Coloquei os fones de ouvido e liguei meu player de música online, irritado por ouvir um anúncio primeiro, mas deixei para lá e saí da garagem após fechar o portão, dando a partida.

Enruguei a testa ao ouvir uma voz suave com um fundo de piano e gotas de chuva. Eu não entendia o idioma, a única frase que percebi ser inglês era "Still with you".

O miserável do Charlie deu um jeito de colocar kpop na minha playlist.

Ainda dirigindo, puxei o fio do fone de ouvido e estiquei minha mão a tempo suficiente de ver o nome de Jungkook na tela do meu celular e não consegui não rir com a coincidência besta.

Charlie conseguia estar perto de mim até quando estava longe. "Still with you".

Senti uma onda de arrependimento por não avisar para onde estava indo — porque eu já havia escolhido um destino e ele odiaria se soubesse.

Eu poderia ter trocado de música quando o sinal ficou vermelho na rua, mas não o fiz. Fiquei me martirizando escutando aquela voz, culpado por me lembrar do guri.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top