Capítulo 37

"Não tem fim, mesmo se eu tentar fugir, estou preso em uma mentira." — Lie, Jimin

2020.

"Sendo bem sincere, guri, não posso te contar como foi ter me descoberto não-binárie, porque eu sempre me senti tipo fora do eixo, só demorei pra saber que existia um termo específico sobre isso e passei a não me sentir tão bizarre.

Pensar em mim como um garoto nunca fez sentido, eu não me via como os outros guris da escola, nada me identificava naquilo. Eu cheguei até a pensar que eu era uma guria trans, mas quando parei pra analisar isso notei que eu também não me encaixava nisso, eu definitivamente não era mulher. E muita gente pensava isso de mim ou me via como gay, sacas? Só porque eu usava saia e maquiagem, essas coisas. Eu não acho que usar isso me faz querer ser mulher, porque mulher não se resume a isso!

Mas aí eu sempre ficava pensando: se eu não sou homem nem mulher, sou o quê? E fui atrás dessa resposta aí. Comecei a usar pronome neutro comigo mesme e ás vezes usava perto dos outros também, até contigo já usei mas acho que tu nunca percebeu. Isso me deixava mais confortável porque eu me via como alguém sem gênero definido, e depois de tanto pesquisar descobri que isso existia de verdade, e passei a me identificar como agênero. Não tenho gênero nenhum e ter consciência disso é a melhor sensação que eu já tive, consegui ser 100% livre!

Mas voltando pra sua pergunta, porque agênero tá dentro de não-binariedade, né, não sei se tu sabe. Não-binário é um termo geral, tu pode viver a não-binariedade de várias formas e por isso que existem algumas bandeiras dentro dela, porque aí pessoas que vivem de forma parecida se conectam. Acho que é por isso que existe tanta diversidade de bandeiras, tem gente que acha exagero e invenção, mas pra mim é uma forma de tu procurar pessoas parecidas contigo e não se sentir solitárie. Eu tenho ume amigue, por exemplo, que toma testosterona e tem muita disforia com os intrusos então quer fazer mastectomia, mas não porque elu se identifica com o gênero masculino e sim porque elu quer tirar tudo que a sociedade classifique como sendo feminino pra poder viver sua não-binariedade do jeito que elu quer. Do mesmo jeito, eu tenho uma amiga que é não-binária e usa tanto pronome neutro quanto feminino e tem uma expressão de gênero variada, ela usa o que deixa ela confortável e não o que vai ser aceito pelos outros. Às vezes, ela até deixa a barba crescer mesmo sabendo que vão ficar usando pronome masculino com ela, mas se ela se sente bem então isso que vale.

Tem não-binárie que expressa mais a masculinidade ou feminilidade, ou os dois juntos ou algo totalmente diferente, tem gente que se sente parcialmente homem ou mulher, mas que não é contemplade totalmente dentro do gênero, gente que não tem gênero nenhum tipo eu, gente que toma hormônios e não toma, e gente que usa pronome neutro, masculino, feminino ou até mais de um. Não tem padrão, sabe? Por isso gosto tanto dessa comunidade. Mas aqui, eu tô falando tanto sobre isso enquanto tu tá aí calado, então me responde uma coisa. Tu tá te questionando se é não-binário?"

Eu sabia que Gael iria me perguntar isso alguma hora.

Depois de tantas mensagens me contando tudo aquilo e de fazer aquela pergunta, elu parou de digitar e fiquei encarando o teclado. Eu sabia que minha demora em responder só me entregava mais, então eu não podia escapar.

"Foda-se, quem tá na chuva é pra pegar resfriado mesmo."

— É.

— Credo, depois de tudo o que eu falei tu só me veio com uma letra, é de partir meu coração.

— Foi mal, eu ainda tô processando, é muita coisa. Mas é.

— Achei até que demorou, tu tá com 22 anos mas começou a transição cedo, e eu sempre soube desde o início.

— Por que tu reparava nisso e eu não?

— Tu sempre repetia as coisas que teu pai falava, inclusive era insuportável, desabafei aqui.

— Pode parar! — Segurei o riso para não acordar Charlie enquanto trocava as mensagens, por sinal ele estava quase roncando.

— É sério! Tu levava a sério demais as coisas que ele falava! E o que aconteceu pra tu ter mudado de ideia?

— Não é o que, é quem. — Mordi o lábio inferior ao enviar a mensagem que revelava a existência de Charlie. Gael demorou alguns segundos para me responder e enviou uma mensagem cheia de corações.

— TU TÁ COM ALGUÉÉM!!! NÃO ACREDITO!!! TU CRESCEU MESMO!

— Deixa de ser besta! — digitei rápido e enviei. — E eu não tô com ele, tipo, não sei te dizer, tem um nome pra isso na comunidade arromântica mas eu esqueci.

— COMO ASSIM TU TE DESCOBRIU ARROMÂNTICO?!?! 2020 TÁ UMA LOUCURA!!!

— VAI SE FUDER! — Segurei mais o riso ao responder em caps lock e Charlie se mexeu, tratei de me recompor para não acordá-lo. — Tô falando sério contigo! Essas coisas são muito novas, tenho medo de falar merda! Como ele é blogueirinho de assuntos assim então ele que tá me ensinando isso tudo aí.

— Qual o nome dele? Vai que eu conheço.

— Charlie Stewart, ele é escritor.

Não vi Gael digitando, então fiquei apenas parado olhando para a nossa conversa esperando sua resposta. De repente, seu status mostrou que elu estava na conversa de novo e logo veio outra mensagem muito, muito mais chamativa que a anterior.

— PUTA QUE PARIIIIIIU TU TÁ PEGANDO O ESCRITOR DE AZUL MEU DEUS DO CÉU AQUELE GURI É MUITO LINDINHO EU JÁ VI ELE EM EVENTO SOCORROOOOO COMO ASSIM TU TÁ COM ELE EU ADORO OS VÍDEOS DELE E ELE É MUITO LINDO NOSSA JASON Q ABSURDO É ESSE AAAAA!!!!

— Já acabou?

— NÃO! NÃO PORQUE TU VOLTA DEPOIS DE ANOS ME DIZENDO QUE É ARROMÂNTICO E ACHANDO QUE É NÃO-BINÁRIO E PEGANDO UM GURI FAMOSINHO, ME DEIXA SURTAR!

— Ei, ei, ei, eu não te disse que acho que sou isso aí.

— Pode escrever não-binário Jasonzinho, seus dedos não vão cair. — Ele me mandou um emoji de olhos revirando.

— Eu tô com medo. — Digitei por impulso e mandei, cortando o clima engraçado de repente. — Muito medo. — mandei de novo.

— Opa, calma. Do que tu tem medo?

— Do que eu posso encontrar de resposta se eu fizer perguntas demais.

— Mas por que isso te assusta?

— Porque quando eu descobrir as respostas eu não vou poder mais ficar ignorando, e aí vai ser tudo diferente.

Senti meu corpo querer se afundar na cama em uma reação de insegurança absurda; fiquei sem graça e perdido no que falar para Gael. Ver como elu estava tão feliz e confortável com sua identidade me deu vontade de sentir o mesmo, mas eu sabia que o preço disso era caro e eu não tinha noção do quanto estava disposto a pagar.

— Calma, guri. Tu não precisa levar isso como um fardo, um problema enorme. Tu só é assim, o que que tem? Não muda nada.

– Muda pra mim, eu cresci de um jeito e agora tá tudo novo.

— E por acaso tu acha legal nunca mudar? Ser a mesma pessoa a vida toda? — Gael tocou num ponto importante e fiquei sem resposta.

— É, até o Charlie mudou desde quando a gente se conheceu na faculdade.

— Meu Deus vocês se conheciam no passado, prometo não fanficar sobre isso.

— Não vai me dizer que tu gosta daqueles romances com o Jimin e aquele João não né?

— Tá falando do Jungkook? — Gael mandou vários emojis de risada. — Esqueci que Charlie Stewart é declaradamente fã do BTS na internet, tua vida mudou mesmo, viu! Tá pegando um army!

— O que é army?

— Tu faz pergunta demais, nossa senhora! É quem é fã do BTS, Jason. Tu tá passando a quarentena com ele por acaso? Porque não pode sair pra ficar se pegando não!

— Ele passou uns dias aqui e a porra toda começou.

— Juro que a vontade de fanficar é grande, mas vou me controlar. Posso te fazer uma pergunta?

— Depende... — Eu não gostava muito de receber perguntas.

— Uma pessoa não-binária não necessariamente usa pronomes neutros, mas mesmo assim é algo muito comum de acontecer. Por que tu não pede pro Stewart usar pronomes neutros contigo? Pra tu ver como é.

— Nada disso. — respondi rapidamente, meu peito se acelerou do nada e senti um mal estar estranho.

— Por que não?

— Isso é idiota.

— Tu acaba de invalidar um milhão de pessoas não-binárias com essa frase! Não é idiota droga nenhuma. Charlie entende muito bem dessas coisas, ele também não vai achar idiota e vai te apoiar!

— Tô falando sério, não vou fazer isso.

— Também tô falando sério, tu devia fazer. Qual o problema de usar pronome neutro? É só um teste! Tá medroso assim por causa de um teste?

— Claro que não! — Comecei a me irritar, mas eu sabia que no fundo minha reação era puro nervosismo. Charlie começou a se mexer do meu lado, mas não me importei, estava ansioso demais para pensar em outra coisa.

— Por favor, vai te fazer bem. Se tu não gostar, pelo menos vai ter certeza de alguma coisa sobre isso tudo. Com o tempo tu vai aprendendo o que te identifica dentro da não-binariedade e por aí vai.

— Não me identifico com nada. — Nem precisava de áudio para Gael saber no meu tom da mensagem que eu estava irritado.

— Isso é tão verdade que tu veio atrás de mim querer saber mais disso! Olha aqui, eu preciso dormir porque amanhã trabalho cedo, tô em home-office. Mas é sério, faz o que te falei! Já que tu diz que não se identifica, então não vai ter problema em fazer o teste só pra me mostrar que tu tava certo e eu errade, né? Pois fique com essa! Beijos, gatinhe.

E Gael ficou offline.

Guardei o celular embaixo do travesseiro e bufei, tão irritado que levei um tempo para notar o braço de Charlie ao redor da minha cintura.

— Jason? O que houve? — Sua voz saiu rouca e entrecortada de sono, quase me assustei.

— Ahn, nada. — balancei a cabeça e me virei para ficar de frente para ele.

— Sua voz tá tensa, eu sei que tem algo. Pode falar. — ele sussurrava tão baixinho que parecia até que ainda estava dormindo.

— Tu mudaria a imagem que tem de mim se eu te falasse que eu não sou um garoto? — Perguntei no mesmo tom que ele, confiante de que Charlie dormisse e nem percebesse minha pergunta. Contudo, ele ergueu a mão desajeitada e colocou no meu rosto, caindo de sono e com os olhos fechados.

— Não, eu ia te achar ume gatinhe muito lindo. Linde. Falei errado, tô com sono. Mas você é linde, vamo' dormir.

Sem mais nenhuma reação, Charlie só se aconchegou mais em mim e escondeu o rosto entre minha cabeça e meu travesseiro. Coloquei a mão em seu cabelo e fiz um cafuné para fazê-lo dormir de novo, mas meu corpo continuava tenso.

— Eu tô te ouvindo pensar. — Ele murmurou perto do meu ouvido, sonolento. — Dorme, nenis.

Respirei fundo e fechei os olhos, à espera de um sono que não vinha pelo turbilhão de perguntas na minha cabeça.

Qual preço eu estava disposto a pagar?

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