Capítulo 36

"Você só tem que ter uma chance, assumir o controle disso."

2020.

Eu nunca tive uma sensação de liberdade na vida. Sempre estava preso dentro de um personagem, uma falsa verdade, uma realidade inventada. Nos raros momentos de lucidez, eu mesmo me proibia de enxergar além e me aprisionava por medo do desconhecido.

Por isso, era até irônico pensar que quando eu literalmente fiquei preso — na quarentena — senti liberdade pela primeira vez.

Quando abri os olhos, Charlie me olhava com um brilho diferente. Ele me abraçou e sua cabeça se acomodou no vão do meu pescoço, meu rosto ainda estava um pouco molhado.

Eu não sabia o que dizer, como sempre. Por isso, só o abracei de volta.

— Tu tá gelado... — Ele tocou meus braços descobertos pela blusa de manga curta. — Vou pegar uma coberta pra ti.

— Não, não, fica. — Apertei seu corpo no meu e também apoiei minha cabeça nele. Respirei fundo e torci para que aquela cena nunca acabasse, porque eu temia que quando nos separássemos o efeito passasse e eu voltasse a ser o imbecil de antes.

— Está começando a fazer frio...

— Eu tô bem. — murmurei e me fiz vinte xingamentos mentais por minha voz ter soado manhosa em um nível que eu nunca havia falado. Charlie percebeu e começou a rir, mas não uma risada cômica, e sim delicada.

— Você é meu nenis mesmo. — Quis revirar os olhos com o apelido, mas me contive. Eu continuava sem combinar com uma personalidade fofa, disso eu tinha certeza. — Eu vou mesmo pegar uma coberta, tu tá gelado demais.

Resmunguei quando ele se afastou de mim e saiu correndo para dentro. O calor que vinha de seu contato acabou e me arrepiei de frio, me dei conta de como a temperatura estava abaixando à medida que o Sol desaparecia e as estrelas começavam a surgir no céu parcialmente limpo.

Charlie voltou, não com uma coberta, mas três. Jogou duas no chão e me puxou para sentar em cima delas, o que quase me desequilibrou.

— Deita! — Ele me puxou para baixo e eu teria batido com a cabeça no chão, mas o impacto da coberta forrando o piso aliviou em partes. Gemi de dor e abracei minha própria cabeça enquanto Charlie ria e beijava meu cabelo. — Desculpa!

— Tu tem cada ideia... — Me ajeitei e deitei em cima da coberta, então Charlie aproveitou para jogar a terceira em cima de mim e entrou por baixo dela, abraçado comigo. — Isso aqui tá parecendo fanfic.

— Tu nunca acredita que um casal pode fazer coisas legais na vida real, né? — Ele disse distraído enquanto passava os dedos por minha blusa, mas a tensão no meu corpo ao ouvir ele falar a palavra "casal" foi percebida. Charlie conseguia me ler bem demais, era insuportável. — Desculpa.

— É que tu disse...

— Eu sei, mas tá tudo bem. — Ele se acomodou deitado ao meu lado, com uma das pernas em cima de mim. — Como tá se sentindo?

— Eu preciso responder?

— Não, se quiser continuar na mesma situação pelo resto da vida... — Ele me beliscou por cima da blusa. Respirei fundo e passei a mão no rosto, mesmo olhando para o céu eu sabia que Charlie me observava.

— É que eu não sei, na real. Queria uma opção em que eu volto do zero na minha vida e faço tudo de novo.

— Faça isso então. — Ele apertou o abraço na minha cintura. — Vamos lá, qual o seu nome?

— Jason... — respondi um pouco desconfiado.

— Tu se sente confortável com esse nome?

— Bah, sinto. Me lembra o Jason Derulo. — Soltei um riso idiota ao me lembrar da adolescência.

— Só você mesmo. — Ele riu perto meu peito. — E como você se identifica?

Parei. Não consegui responder.

Charlie esperou por uma fala que não veio.

— Okay... Tu é uma guria?

— Não. — respondi rápido.

— Tu é um guri?

Minha vontade de responder "se eu não sou um, sou o outro" foi tão grande que cheguei a abrir a boca, mas depois pensei em Charlie me dando um sermão por falar isso e mudei de ideia.

— Faz outra pergunta.

— Chato! — Ele me beliscou de novo. — Qual sua orientação sexual?

— Bi. — falei bem mais confiante, já estava acostumado com essa parte.

— E sua orientação romântica?

Outra pausa. Charlie ficou esperando em silêncio.

— Acho que arromântico estrito. — quase murmurei de tão inseguro que fiquei e Charlie ergueu a cabeça, com o olhar surpreso para mim.

— Tu sabe os tipos de arromântico?

— Eu vi seu vídeo... — Meu rosto esquentou e eu quis sair correndo dali feito uma criança. Porra Jason, tu não era assim não.

— Então me fala quais são pra eu saber se tá certo. — Ele apoiou a mão no queixo e ficou me observando com um sorriso.

— Tá... — Respirei fundo e tentei me lembrar, ainda envergonhado com o assunto. — Tem a área cinza... Né. E aí tem gente que oscila por lá. Tem o demirromântico, que só se atrai depois de um vínculo. — Busquei a confirmação da minha fala em seu olhar, mas ele apenas ficou me encarando animado, então continuei. — Aí tem o grayrromântico, que é quem se atrai de forma muito rara ou pouca. Né? — levantei as sobrancelhas buscando novamente sua validação.

— Isso, também pode ser uma forma da pessoa só dizer que está no espectro arromântico.

— É, isso. — assenti. Era muito estranho falar sobre isso.

Eu não sabia explicar de forma exata o que era ser arromântico, era algo muito abstrato. Na minha cabeça fazia sentido, mas eu sabia que para os outros não.

— Aí tem o... Lito... Romântico. — Demorei para me lembrar da palavra. — Que só sente atração romântica platônica, se for recíproco ele para de sentir.

— Você aprendeu bem. — Charlie passou os dedos por meu queixo, fazendo linhas imaginárias.

— Só decorei, na verdade não entendi muita coisa. — falei com uma risada baixa.

— Ah, é? Qual parte não entendeu?

— A de sentir atração mesmo. — fui direto e Charlie soltou um "ah" baixo e esquisito. Seu semblante ficou cabisbaixo de repente.

— É por isso que tu disse que era estrito. — ele concluiu e desviei o olhar porque era óbvio o quanto isso havia o afetado.

Charlie gostava de mim e eu estava no lugar mais escuro do espectro: não sentia qualquer atração romântica, em hipótese alguma. Aquela havia sido minha conclusão depois de tanto pesquisar sobre, mas ao mesmo tempo que me sentia aliviado por entender aquela parte de mim, me senti horrível por Charlie.

— Eu... Queria te pedir desculpa, mas isso seria tipo um cara gay pedir desculpa por gostar de homem. — Meu sorriso não acompanhou minha voz desanimada.

— Eu sei, eu sei, tá tudo bem. — Charlie balançou a cabeça como se estivesse afastando pensamentos e se aproximou mais de mim. Ele se aninhou no meu pescoço igual estava antes e respirou fundo. — Estou orgulhoso.

— Orgulhoso? — Meu coração se acelerou ao ouvir aquilo e tive o gosto de uma sensação nova. Eu não me lembrava de ter ouvido isso alguma vez na vida. — Por quê?

— Porque tu te abriu comigo, obrigado. — Charlie virou um pouco o rosto e beijou minha bochecha. Deu para notar que ele estava sorrindo e me senti meio besta com isso, eu estava infinitamente mais leve.

Ficamos mais algum tempo em silêncio e Charlie se acomodou de forma a ficar olhando para o céu, ainda colado em mim. Coloquei uma das mãos atrás da cabeça para me apoiar e a outra passeava pelo seu braço despreocupado.

— O lado bom de morar no interior é que o céu é mais limpo. — Ele comentou distraído, focado no céu. Prestei atenção nisso e notei como as estrelas eram visíveis.

— Tu morava no interior lá nos Estados Unidos?

— Sim, uma cidade pequena da Carolina do Norte.

— Sente falta?

— Nem um pouco. — Ele riu e mexeu as pernas entrelaçadas às minhas.

— Sente falta nem de falar inglês?

— Já me acostumei com o português, a única coisa que me incomoda é a marcação de gênero... Sempre erram meus pronomes.

— É... Isso é foda. Lá eles não são assim, né.

— Não, e muita gente quando não quer especificar o gênero usa o they e them. Seria mais confortável se acontecesse o mesmo aqui.

— Imagino. — Não consegui dar uma contribuição para o assunto.

— Isso vai ser tão clichê, mas tu me lembra as estrelas. — Charlie jogou aquela do nada e franzi a testa, sem entender.

— Bah, e de onde tirou isso, guri? — Não controlei a risada fraca.

— É que nem sempre dá pra ver tudo delas, por causa das nuvens ou da poluição. Tu é tipo assim, sempre tem algo oculto em você.

— Ah. — Por aquela comparação, eu nunca iria esperar. — Foi mal por isso.

— Relaxa. — Ele usou a mão que estava em minha cintura para passar em minha bochecha. — Eu sei que elas continuam paradas ali, existindo e sendo bonitas, tipo tu. — Seu riso reverberou leve em meu peito e cheguei a me assustar com o quanto aquilo me deixou ansioso de repente.

— Eu... Queria me ver igual tu me vê. Não consigo me enxergar assim.

— Como tu te enxerga? — Charlie parou o carinho na bochecha e esperou.

Procurei um adjetivo, um termo, mas não consegui nada concreto.

— Cinza. — foi o que saiu. — Só me sinto assim, cinza. Sem mais nada.

Charlie respirou fundo e voltou a me olhar. Fiz o mesmo, encantado em como os olhos dele se acinzentavam no escuro, uma coincidência engraçada e feliz. Então ele sorriu, e seus olhos ficaram pequenos.

— Se um dia eu fizer a continuação de Azul, já sei que título vou dar.

— Vai escrever uma história sobre a gente? — Arqueei as sobrancelhas, surpreso. Ele se aproximou e raspou a ponta do nariz no meu, em um beijo de esquimó engraçado.

— Eu não sei, mas se eu fizer, vou falar de um guri que era feito de cinza e estrelas, a pessoa mais difícil de lidar que eu já conheci.

— Fala isso, mas me ama. — falei com um tom de humor, mas Charlie sorriu ainda mais e me deu um selinho rápido.

— E eu amo mesmo.

O celular vibrou embaixo do travesseiro e tateei de olhos fechados até pegar o aparelho.

Charlie, com aquele sono pesado que tinha, não percebeu quando a luz da tela preencheu o quarto. Ele dormia virado para o outro lado, na minha cama. Depois daquele momento na varanda, um jantar feito em conjunto que quase ficou salgado demais porque ele não parava de me perturbar enquanto eu temperava a carne, e de provar um vinho antigo da Paloma porque aquela mulher tinha mais álcool em casa do que um posto de gasolina, nós fomos dormir.

Mas meu sono passou quando vi a notificação de Gael no meu celular, seguido de uma mensagem longa e com várias palavras em caps lock.

— JASOOOOON!!!! MEUS DEUSES QUE SAUDADE DE TI!!!! Como tu tá???? Desculpa pelo vácuo ENORME, eu tava com covid menino, acredita? Fiquei dois meses internade. INSUPORTÁVEL! Essa doença não é mole não. NÃO SINTO CHEIRO DE NADA! Quero chorar ;( nossa mas eu tava com saudade DEMAAAAIS! Te conhecendo bem eu sei que tu tá com problema e se lembrou de alguma coisa que eu fiz ou falei e veio pedir ajuda. Me conta que que tá rolando, gurizin! Caramba não acredito que tu me mandou mensagem mesmo, aaaaaaahhh, eu senti tanta saudade! Tu tá solteiro ainda? Ah é, a gente tá de quarentena kkkkkk é que tu tá tão gostoso pelas fotos que se tu quiser de novo eu quero, viu! Brincadeira, to debilitade pela covid então nada de pegação na minha vida por muito tempo. ME CONTA AS COISAS!

Só notei que estava sorrindo demais quando meu maxilar doeu depois de reler a mensagem várias vezes, sem acreditar que realmente Gael tinha me respondido. Mas porra, dois meses no hospital?! Eu precisava saber como elu estava primeiro.

E como o último mês foi seguido de várias lições sobre linguagem neutra, eu estava bem mais confiante para mandar mensagem.

— Calma, menine, me explica uma coisa primeiro: como assim tu ficou no hospital por dois meses e não tá sentindo cheiro? Vai ficar assim pra sempre? E como tu tá? Tu já é a segunda pessoa que descubro que pegou covid, eu tô seguindo a quarentena à risca, como que tu pegou? Fisicamente tu tá como? Senti saudade também, véi, tô feliz que tu me mandou mensagem.

Na mesma hora, elu começou a digitar. Meu coração batia rápido de animação por encontrar alguém da adolescência depois de tantos anos, se não estivéssemos de quarentena eu chamaria Gael para sair e fumar um baseado de lei igual a gente adorava fazer.

— Então, guri, eu tava me cuidando direitinho! Mas minha mãe ficou doente e ê idiota aqui foi ajudar, mesmo depois de ter me chutado a infância toda. Fui lá pra casa dela e descobri que tinha mais uns parentes lá, alguém tava com covid e todo mundo pegou, mas eu fui quem mais piorei. Mas agora tá tudo certo! Não sei se o olfato assim é permanente, só o tempo pra dizer. Quero saber de ti agora! Não falo contigo desde a sua mastectomia, mas pelas fotos que vi deu tudo certo né?

— É, deu sim. — Digitei sem ânimo ao falar da minha transição. — Mas eu não quero falar disso, tenho umas perguntas pra te fazer, se não quiser responder tudo bem também.

— Fala logo, guri! Não me deixa ansiose!

"Mais do que eu, impossível, Gael."

Digitei uma vez e apaguei. Digitei de novo e apaguei. Digitei de um jeito diferente e apaguei. Respirei fundo, Charlie continuava dormindo profundamente. Gael começou a digitar.

— Só manda, Jason! Tá digitando e apagando toda hora!

Apaguei o que escrevi outra vez e tirei coragem do além para apertar no botão de enviar depois de digitar novamente a mensagem.

— Como tu se descobriu não-binárie?

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