Capítulo 35
"Estou tentando viver minha vida, mas estou fazendo isso certo?"
2020.
Completamos quatro meses de quarentena.
Era inacreditável como o tempo passava rápido e devagar ao mesmo tempo. Os dias eram lentos, mas também terminavam de repente.
O cabelo de Charlie já estava comprido o bastante para que ele o amarrasse em um coque, e metade dos seus fios estavam descoloridos após uma tentativa de fazer merda no cabelo pela falta do que fazer. O meu também crescia, mais devagar, ainda curto nas laterais e maior no topo.
A relação com Charlie não havia melhorado nem piorado.
Minha teoria era de que estávamos tão cansados e desesperançosos que não havia mais pressa em consertar as coisas — eu percebia isso durante o dia.
Charlie digitava mais devagar no notebook. Demorava para comer, até sua mastigação estava mais lenta. Eu também demorava mais para ler alguma coisa, dormia por mais tempo e arrumava a mesma coisa duas ou três vezes durante a semana, com a maior lentidão possível. Mesmo assim, a falta de ocupação continuava constante.
Em um dos meus atos idiotas — eu ainda cometia vários — fui atrás de cigarro convencional. Eu estava fumando um na varanda, sentado de qualquer jeito no chão, quando Charlie se aproximou.
Nossos momentos em silêncio se tornavam cada vez mais comuns; desde a última vez, há um mês, em que ele caiu em lágrimas por causa da mãe e disse que não queria conversar comigo, realmente não conversamos mais, não sobre temas pessoais pelo menos. Mesmo assim, um ainda apreciava a companhia do outro de forma silenciosa.
— Posso..? — Charlie perguntou após se sentar no chão ao meu lado e olhou para o cigarro em minha boca. Soltei a fumaça e o encarei confuso.
— Tu não gosta.
— Tô' precisando. — Ele falou sem me olhar nos olhos e respirei fundo antes de oferecer o cigarro a ele.
Como eu esperava, Charlie tossiu ao tragar pela primeira vez e soltei um riso nasal.
— Tu tá com abstinência. — Não fiz uma pergunta, apenas constatei. Eu o via coçando o nariz e fungando o tempo todo e a frequência disso só aumentava.
— Tu jogou fora, lembra. — Ele disse amargo e tragou mais uma vez, um pouco melhor que a primeira. Me condenei pra caramba por ter achado sexy o jeito que ele franziu as sobrancelhas ao puxar o tabaco e semicerrar os olhos ao soltar a fumaça.
— Achei até que tu ficaria mais surtado com isso.
— Eu não usava sempre. — admitiu. — Só em casos de emergência.
— E esse é um caso de emergência? — Perguntei mais baixo. Charlie me encarou e me passou o cigarro.
— Já tem um tempo.
Continuamos em silêncio por alguns minutos, tudo ao redor estava silencioso demais. Algumas vezes, a brisa ficava mais forte e balançava as plantas de Paloma. Por algum milagre, ainda estavam vivas.
— Tô com saudade. — Charlie falou tão baixo que demorei para me dar conta de que ele falou comigo. Controlei a respiração para não mostrar que estava ansioso.
— A gente praticamente mora junto. — Tentei falar com um riso sarcástico que não funcionou.
— Sabe do que eu tô falando. — Seu tom saiu mais firme.
— Isso não dá certo, a gente não... — Tentei procurar um termo certo para aquilo, mas a palavra sumiu da ponta da língua.
— Não o quê? — Charlie ergueu as sobrancelhas, sem deixar de me encarar.
— Não sabe conversar. — Soltei, sentindo os ombros pesados.
— A gente pode resolver isso...
— Eu não tô pronto pra resolver. — cortei sua fala e endureci os ombros, tenso. — Não consigo falar sobre certas coisas.
— Mas você precisa tentar. — Charlie se arrastou para perto de mim e tocou em meu ombro. — E do mesmo jeito que eu quero te ajudar, eu também quero que tu me ajude.
— Eu não sirvo pra ajudar ninguém, Charlie. — Ri com tristeza e puxei o cigarro mais uma vez, sem olhar para ele.
Eu sabia o quão cabeça-dura estava sendo e que isso machucava o Charlie, mas eu tinha um medo absurdo de entrar em detalhes sobre a minha vida.
— Tu sempre me ajudou como pôde. — Charlie aproximou seu rosto e senti sua respiração no meu pescoço quando ele encostou o queixo no meu ombro.
Meus braços descobertos se arrepiaram pela sensação quente que ele me causou, eu não sentia isso há semanas por tê-lo tão distante mesmo dentro de casa.
— Não sei como te ajudei.
— Para de ser idiota, tu sempre ficou por perto, desde aquele dia em que me viu chorando na rua por ter saído correndo de casa e aí me deixou dormir na sua.
Um sorriso instantâneo surgiu ao me lembrar de quando vi o guri de pijama desorientado no bairro dos pais, e com medo ao me ver de bicicleta pensando que ser um assaltante.
— Foi legal ter falado contigo naquele dia. — fiquei nostálgico de repente.
— E tu nunca mais parou de falar. Eu te achava estranho algumas vezes, mas ultimamente estou aprendendo que tu só tem um jeito diferente de mostrar que gosta de alguém... Deve ser coisa de arromântico. — Charlie disse com uma risadinha e virei meu rosto para vê-lo, o que quase juntou nossas bocas. Ele piscou rápido e se afastou para me ver direito, mas diminui a distância outra vez e me aproximei. Minha mão foi rápido para sua nuca e o segurei para beijá-lo, pude ouvir sua respiração parando por um momento de surpresa pelo beijo e logo depois seu corpo cedeu, e ele colocou as mãos no meu rosto.
Aquele não era um beijo com desejo, como das outras vezes. Havia um mundo de palavras que eu não conseguia verbalizar e a única coisa que me veio á cabeça foi beijá-lo, talvez assim ele pudesse ao menos sentir as mesmas emoções que eu.
Eu queria explicar como eu me sentia com tanta coisa dentro de mim, tantas dúvidas e confusões que me atingiam desde a infância e que nunca foram resolvidas. Queria dizer a ele como havia passado o último mês com o coração apertado, suplicante por respostas sobre minha identidade e quem eu era de verdade, mas ignorando tudo aquilo para não demonstrar estar destruído enquanto ele me evitava. Eu queria mostrar como eu estava frágil pra caralho mas não conseguia demonstrar isso em momento algum, porque minha máscara já estava presa há tempo demais e eu não conseguia mais tirá-la, mesmo querendo tanto — me dei conta disso.
As mãos de Charlie se molharam pelas lágrimas que começaram a escorrer por meu rosto e senti seu polegar acariciando minha bochecha, sem parar o beijo com carinho. Ele se aproximou ainda mais até ficar em meu colo, deixando minhas mãos livres para rodear sua cintura e apertá-lo forte como se ele fosse alguma salvação que eu precisava há muito tempo.
Minha respiração estava fraca quando parei por um segundo de beijá-lo e deixei sair um soluço que quis ter escondido. Charlie manteve as mãos em meu rosto e selou nossos lábios rapidamente.
— Tá tudo bem, eu juro. — Charlie falou baixinho perto de mim e me beijou rápido outra vez, e mais diversas vezes, como se quisesse reafirmar o que dizia também com aquele gesto.
Eu queria pedir desculpas a ele, dizer que me sentia mal por me fechar tanto e que aquilo estava me consumindo; também queria pedir ajuda, falar o quanto eu estava desesperado por explicações sobre minha real identidade, porque Charlie parecia mais consciente de mim do que eu mesmo estava. Eu queria falar tantas coisas e não conseguia, e isso só me fazia beijá-lo ainda mais forte.
E eu esperava que ele sentisse tudo o que eu queria dizer com aquele beijo.
— Eu amo você, Jason. — Charlie sussurrou na minha boca depois de outro beijo. — Mas você não deixa ninguém te amar, me deixa fazer isso dessa vez.
— Charlie... — Eu queria protestar e dizer a ele que não podia falar o mesmo, meu coração queria explodir de tanta agonia. Contudo, ele continuou segurando meu rosto e ficou de olhos fechados, em uma dor que eu não entendia.
— Só deixa, Jason. — Sua voz saiu tão angustiada quanto a minha. — Não tô' te pedindo pra corresponder nem te dizendo que te amo de um jeito romântico, só te amo, aceita isso.
— Tá... — Meu suspiro foi misturado a um soluço e não consegui falar nada decente, pois Charlie me puxou pela nuca e me beijou de novo.
Me senti sem uma máscara pela primeira vez na vida.
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