Capítulo 2

"Estou tentando achar o caminho de volta pra casa, de volta pra você." — Alone, Marshmello

2009.

Minha mãe passou a fita métrica ao redor do meu corpo pela última vez. Ela gostava de acompanhar o crescimento do meu corpo e anotava em um caderno para mostrar à doutora. Eu já estava tomando um bloqueador hormonal há seis meses e minha mãe queria conferir cada detalhe do que estava acontecendo comigo.

— Ok, pode colocar a blusa. — Ela enrolou a fita amarela para guardá-la de volta e soltou seus cabelos, pretos e compridos como os meus. Enquanto eu terminava de vestir meu uniforme, ela olhou ao redor do meu quarto. — E seu pai não vai gostar de ver essas coisas grudadas na parede.

Eu queria mudar o visual do meu quarto, então colei alguns pôsteres dos meus cantores favoritos com fita adevisa e preenchi uma parte da parede. Meu pai reclamava do meu gosto musical, dizia que eu precisava ouvir música de verdade, mas para mim Jason Derulo e Bruno Mars eram perfeitos.

Coloquei minha mochila preta nos ombros e fui de carro até o colégio. Meu cabelo estava solto e ele batia no meu rosto quando eu corria, mas eu não gostava de prendê-lo. Meu cabelo era igual o da minha mãe e eu gostava de me parecer um pouco com ela.

A primeira aula do sexto ano foi de Português. Eu me sentei em uma carteira no meio da sala e algumas meninas puxaram assunto comigo. Elas foram legais, mas eu também queria conversar com os meninos, só que eles já tinham se reunido em um grupinho só deles. Ninguém me chamou pra conversar daquele lado.

Me lembrei do meu pai dizendo que ninguém ia notar que eu era um garoto por causa da minha aparência, era o que ele sempre dizia: "tu tem que te parecer um guri pras pessoas.". Ele sempre reclamava do meu cabelo, mas tinha um dos alunos, o Mateus, com um cabelo comprido igual o meu. Mesmo assim, sabiam que ele era um garoto.

Quase não consegui prestar atenção na aula. Além da matéria ser chata, fiquei mais preocupado em reparar no Mateus. Ele era muito alto pra alguém do sexto ano, seu rosto era coberto por várias pintinhas e o seu cabelo comprido era de um loiro um pouco escuro. Ele sentava de um jeito relaxado e tentei imitá-lo na cadeira, mas aí vi que as garotas ficaram me olhando estranho. Me endireitei e fiquei igual a elas.

Eu estava tão ocupado tentando reparar no que o Mateus fazia que não percebi que ele acabou olhando pra mim. O garoto deu um sorriso rápido e piscou, e logo depois desviou os olhos para falar com o aluno ao seu lado.

Meu rosto ficou quente, e eu não sabia por quê. O sorriso do Mateus era muito bonito, mas elogiar garotos era coisa que as meninas faziam. Se eu quisesse mostrar que era um garoto, não podia gostar deles desse jeito.

Mas o Mateus era tão bonitinho...

2020.

O tempo de Porto Alegre era infinitamente pior do que de Esplendor. Desisti do cigarro eletrônico naquele momento e puxei um maço de cigarro do bolso de dentro da jaqueta.

— É sério que você ainda carrega isso?! — Charlie me questionou, enquanto aguardava comigo por um motorista. Suas mãos estavam escondidas dentro do seu casaco e ele mexia o corpo para afastar o calor.

— Questão de emergência, ainda tô me adaptando. — Dei de ombros e acendi o cigarro, tomando cuidado para soltar a fumaça para o lado oposto ao rapaz.

— Você quer ir lá pra casa? Eu moro sozinho. — Assim que falou aquilo, Charlie soltou uma exclamação e começou a gaguejar. — Ah, quer dizer, não tô querendo dizer nada, foi só pra você saber que, né, se não tiver um lugar pra ficar, eu...

— Calma! — Tirei o cigarro da boca e comecei a rir. Charlie ergueu a sobrancelha, impressionado com a própria fala, e balançou a cabeça. — Relaxa, eu vou pra casa da minha mãe.

Ele voltou a olhar pra mim, dessa vez com surpresa.

— Tua mãe mora em Porto Alegre?! Por que nunca me disse isso?!

— Tu nunca me perguntou. — Os olhos azuis do garoto se estreitaram, mas fiquei indiferente, achando graça daquilo.

— Meu Deus, a sua mãe... Como ela é? Ela te respeita?

— Ela é foda, cara. Faz uns meses que não nos vemos, ela parou de visitar Esplendor desde que o Max passou a ficar mais babaca.

Charlie parecia prestes a perguntar alguma coisa, mas o motorista pedido pelo app avisou que estava há poucos metros. Quando o carro chegou, ele perguntou se poderia adicionar uma parada, então falei a minha localização e corri para jogar a bituca de cigarro na lixeira mais próxima, pois eu tinha noção de que não se fumava dentro do carro.

— Considere a carona uma cortesia de Porto Alegre. — Charlie falou assim que nos acomodamos no banco de trás e cumprimentamos o motorista.

— Vou ficar te devendo isso, tava difícil pedir pelo meu celular. — Guardei o aparelho e coloquei as mãos nos bolsos. — Tu acha que consegue ficar liberado pra viajar quando?

— Vou ter que te dar essa resposta amanhã de manhã, depois de falar com a Laiene. A situação tá um pouco complicada, tem gente afastada por suspeita de Covid...

— Ô, cêis' tão sabendo que dá pra usar cloroquina? — O motorista, um senhor de cabelos grisalhos, entrou no assunto. — O Presidente já encomendou bastante lote, vai tirar esse vírus do país rapidinho!

Nós dois apenas concordamos de forma vaga e contida, pois não estava nos planos discutir com um motorista de táxi. Bolsonaro era a última pessoa capaz de fazer o coronavírus acabar, mas aquele senhor poderia gostar dele e eu não queria arrumar confusão. Charlie apenas me deu um olhar divertido e controlou o riso, e eu balancei a cabeça, incrédulo.

O primeiro ponto chegou, a casa da minha mãe. Me despedi de Charlie, tentei convencê-lo a dar parte do dinheiro da corrida mas ele se recusou, dizendo que fui convidado. O cavalheirismo e o charme daquele jovem estavam em um nível que me fazia questionar internamente porque merda ele estava solteiro.

Parei em frente ao prédio antigo e pressionei o botão do 201, o que provocou um barulho de campainha. Em alguns segundos, a voz da minha mãe robotizada apareceu.

— Oi, quem é?

— Sou eu, mãe, cheguei.

— Ah, Jason! Pode entrar!

A voz de Andressa fazia meu coração esquentar a ponto do frio de Porto Alegre ficar mais suportável.

Subi dois lances de escadas e abri a porta com a placa 201 em cor de ouro antigo, e percebi como estava tudo da mesma forma que eu me lembrava quando fui para lá na última vez: as toalhas de crochê, o aroma do chimarrão que minha mãe sempre fazia – mesmo de sangue carioca, sua alma era gaúcha –, a televisão ligada na Globo para assistir à novela e os móveis sempre coloridos, com imãs e desenhos de animais.

O primeiro cômodo era a cozinha, e minha mãe secou as mãos com o pano de prato e andou rápido até mim.

Andressa era alta e tinha um porte de atleta, mesmo nunca tendo aproveitado o potencial para praticar esportes. Ela me abraçou com força e afagou minhas costas com as mãos. Me dei conta do quanto eu senti falta dela com aquele toque.

— Que saudade, meu amor. — Ela sussurrou perto do meu rosto. — Nossa, uma mãe não devia ficar longe dos filhos nunca, ela morre aos poucos

— Para com isso, mãe! — Soltei uma risada e ela se afastou e pegou em meu rosto. Seus olhos brilhavam e ela sorriu para mim.

— Tu ficou do jeitinho que eu imaginava, sabia?

— Tu fala isso toda vez que me vê.

— Não posso te elogiar mais não, tchê?! E olha aqui, tira esse casaco e vai tomar um banho, já te falei sobre fumar! — Ela me lançou um olhar irritado e me ajudou a tirar a jaqueta, em seguida enrolou a peça no colo, provavelmente iria lavá-la. Minha mãe detestava cheiro de cigarro e eu não a julgava por isso, pelo contrário, eu julgava a mim mesmo por fumar.

Antes de sumir pela cozinha e ir para a área de serviço, ela voltou alguns passos e me olhou com um pouco de preocupação.

— Sua vó tá no quarto assistindo TV, ela tá passando alguns dias aqui. Seja paciente, tudo bem?

— Relaxa, eu sei. — Eu também sentia falta da minha avó, a Dona Augusta, mas toda vez que nos encontrávamos eu precisava explicar a ela quem eu era, pois o Alzheimer a fez falhar a memória antes da minha transição.

Eu nunca sabia da reação que ela teria, toda vez que eu contava.

Andei devagar pelos cômodos e a encontrei enrolada em uma coberta, sentada em uma cadeira acolchoada confortável. Seu corpo estava mais fino e pálido do que da última vez que a vi. Além do Alzheimer, ela também tinha diabetes.

— Vó? — chamei sua atenção em voz baixa, mas ela estava concentrada assistindo à novela. A luz do quarto era regulada e estava com a intensidade um pouco mais baixa.

Andei até ela e foi quando seu olhar se desprendeu da tela para me ver. Me abaixei para que ela não precisasse esticar o pescoço e seus olhos castanhos me fitaram, curiosa.

— Tu é quem?

— Sou eu, vó, a Jade. — Coloquei minha mão por cima do seu corpo, na coberta.

— Jade?! Minha filha, o que que aconteceu?! — Seus olhos se abriram, destacando as várias rugas em seu rosto.

— Eu virei um garoto. — Eu tentava falar da forma mais simples possível para que ela entendesse.

— Bah, tchê, num tem como virar garoto! Que que tu tá me dizendo?! Tu é a Jade mesmo?

— Sou, mas eu me chamo Jason agora, eu sou seu neto, vó.

— E o que que aconteceu com a Jade?

— Vó, sou eu! — Acabei rindo com sua pergunta. — É que eu tenho outro nome!

— Miséria de piada de mau gosto essa aí, eu tenho mais de noventa anos e tu quer me ver com uma dessas, mas Andressa! Cadê tu? Tu me arrumou outro filho e quer me tirar a paciência, Andressa?! — Minha avó começou a gritar. Ouvi os passos apressados da minha mãe. — Tu é o filho do Max também ou Andressa ficou de namorico com outro malandro?

— Mãe!!! — Fui salvo pela minha mãe, que apareceu no quarto. — Aqui, a senhora já tomou o remédio da noite?

— Num vou tomar droga nenhuma! Cêis' querem é que eu morra logo pra te livrarem de mim! — Minha avó reclamou e afundou na cadeira, com o rosto contorcido de raiva. — Tô com muita saudade da minha neta, mas ela nunca vem. Minha única neta! Me dá um desgosto muito grande.

Senti as mãos de Andressa em minhas costas, me ajudando a levantar. Dona Augusta já estava com os pensamentos perdidos focados na novela. O olhar de minha mãe era como quem me pedia desculpas, mas eu sabia que não era culpa dela, não era culpa de ninguém.

Na maioria das vezes, minha avó reclamava por eu ter "virado" um garoto. Em outras, ela dizia que eu estava mais bonito desse jeito.

Mas dessa vez, ela sequer me reconheceu.

Eu não menti quando falei pra vocês controlarem o coração ao ler essa história.

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