Capítulo 12

"Eu prefiro ficar sozinho, sim, do que ficar envolvido demais no seu corpo." — Leave Before you Love Me, Marshmello ft. Jonas Brothers

2014.

— AAAAAHHHH!!! NÃO FODE, MANO!!!!!

— Olha a boca, Pedro Henrique!!! — A tia Patrícia brigou com meu amigo do lado, mas ele estava certo, caramba, o Brasil já tava perdendo de dois a zero da Alemanha!

— Tá brincando comigo, véi, na moral. — Cobri o rosto com as mãos, eu tinha medo daquele jogo, sinceramente. O time todo tava desequilibrado, todo mundo perdido, menino Ney machucado, era de doer.

— COMO ASSIM OUTRO GOL? AH, NÃO!

Pedro Henrique queria voar em cima da televisão, ele havia me chamado pra ver o jogo em sua casa junto com os meninos da sala e seu rosto branco estava vermelho já, de tanta raiva.

— Quer ver que já já eu vou desligar essa televisão! — A mãe dele gritou da cozinha. — Aí ninguém vai ver nada!

— Eu desisto, não adianta nem ver, impossível esse time de bosta ganhar! — Ele se jogou no sofá e cruzou os braços. Luan olhava pra tela concentrado, ainda com esperança, e eu também estava na torcida.

Mas quando o quarto, o quinto e o sexto gol vieram, todo mundo já tava cansado de esperar alguma coisa.

— Na boa, cansei, chega. — Pedro levantou bufando e tirou a camisa do Brasil com raiva. — Vergonha de ser brasileiro!!!!

— Ainda bem que eu não vim com ela. — Andrezin riu e se levantou para ir à cozinha beber água. Ele era o irmão de Pedro, um ano mais velho, mas como reprovou os dois estavam na mesma sala.

Quando o jogo acabou depois de sete gols da Alemanha e só um do Brasil, a gente estava só a derrota.

— Se eu fosse tu, num andava com essa coisa feia aí também não. — Pedro virou pra mim, pois eu estava com a versão azul da camisa do Brasil.

— Bah, eu tô de boa assim, já já tenho que ir pra casa também. — falei bem natural, mas na verdade eu não podia tirar a camisa por usar binder. Mesmo com meus peitos pequenos graças ao bloqueador hormonal, eles ainda existiam um pouco ali e eu precisava deixar meu peitoral reto. — Eu vou calçar meu tênis, minha mãe quer que eu chego cedo em casa.

Fui até a entrada da casa, meu tênis estava no tapete de Bem-vindo. Me sentei no chão mesmo e comecei a calçar minhas meias, todo mundo veio com roupa de time e chuteira pra comemorar, mas não tinha mais nada legal sobre a Copa hoje pra falar.

Enquanto colocava a chuteira, ouvi a voz da tia Patrícia, mãe do Pedro e do André, falando com o filho mais velho da cozinha. Comecei a calçar mais lentamente e em silêncio pra pegar a conversa, que estava difícil de ouvir pela distância, mas eu tinha o ouvido bom pra fofoca.

— Aquele seu amigo é diferente, né? Nome diferente também.

— É, mas ele é mó legal.

Tia Patrícia falou alguma coisa que não ouvi, e também fiquei com medo de saber. Como bom ansioso que eu era, comecei a reviver todos os gestos, falas e reações que tive ao longo do tempo que estava na casa dos meus amigos.

Será que os pais dos meus amigos reparavam em coisas que eles mesmos não reparavam? Eu precisava ser mais esperto.

Quando saí da casa dos meninos, peguei o ônibus que passava perto da minha e mandei uma mensagem para minha mãe. Ela me pediu para descer um ponto antes pois queria que eu comprasse uma caixa de leite no mercado, então prestei atenção nos pontos e dei sinal para descer no local certo.

Eu estava com o cartão de crédito do meu pai, pois ele havia feito um de dependente pra mim e disse que, como homem, eu tinha que aprender a ter dinheiro e me organizar. Ele estipulava um limite de gastos, mas nem sempre conferia o que eu estava comprando na hora da fatura.

Passei pelas prateleiras e peguei uma caixa de leite integral, aproveitei para escolher um biscoito recheado também e fui logo para o caixa do mercadinho do bairro. Lá vendia todo tipo de coisa, quando meus amigos iam para minha casa a gente gostava de vir aqui comprar besteira pra comer.

Mas uma coisa que os garotos gostavam de usar e eu nunca havia comprado, era cigarro.

Havia uma fileira de vários modelos diferentes na prateleira acima do caixa. Os anúncios de "Este produto causa câncer" não chamaram minha atenção, e sim a caixa vermelha de Marlboro. Eu havia fumado umas duas vezes em rolês, mas bem pouco. Queria ter meu próprio maço de cigarros.

"Meu pai não vai perceber que eu comprei isso porque vai aparecer só o nome do supermercado na fatura."

Quando foi minha vez de passar minhas compras, controlei meu nervosismo e pedi um maço de Marlboro fingindo ser algo que eu sempre fazia. O caixa, por sorte, não pediu nenhum documento. Eu ainda tinha dezesseis anos.

Me lembrei de que eu também não tinha um isqueiro e peguei um rapidamente na prateleira próximo ao cliente e juntei com os produtos. Paguei a compra e saí com uma sensação de euforia do mercado.

Eu tinha que tomar muito cuidado com aquilo, pois minha mãe iria detectar fácil o cheiro do cigarro na minha roupa. Por isso, eu não podia usar aquilo agora.

Mas estava doido para começar a fumar.

2020.

Durante quase dez minutos, a casa de Paloma ficou em completo silêncio.

Meu pai estava do lado de fora apertando a campainha e falando alto com alguém. Não entendi muito do que foi dito, mas ele parecia estar procurando Paloma. Pelo visto, não sabia que ela estava viajando e nem que eu estava ali.

Quando ouvi passos pelo gramado e o som do motor dando partida, suspirei aliviado.

Aquela foi por pouco. Se meu pai soubesse que eu estava ali, não iria me deixar em paz.

Olhei para a mesa e vi Charlie me olhando atordoado. Ele também saiu do momento de sufoco e respirou fundo, com as mãos na cabeça.

— Ainda bem que ele foi embora. — Ouvi o guri murmurar e pegar o copo de café à sua frente, tomando quase tudo de uma vez em um só gole. — Muita coisa para lidar...

Eu deveria continuar o interrogando, precisava saber o que havia acontecido na noite anterior: o que Charlie usou e bebeu, aonde estava, com quem, por que mentiu e como voltou pra casa. Contudo, meu pai por perto me deixou desarmado. Eu odiava o efeito que ele causava em mim.

— Essa conversa não acabou, beleza? — falei com um pouco de convicção e fui para a cozinha pegar um copo de água.

Charlie me ignorou e se levantou com dificuldade. Quando foi dar o primeiro passo, cambaleou. Terminei de encher o copo de vidro com água da geladeira e o vi se segurando nas cadeiras para ficar em pé, mantendo a cabeça baixa.

— Ei, toma aqui. — Fui até ele com o copo na mão e o ajudei a tomar. Quando terminou, deixei em cima da mesa e o segurei pelos ombros até o quarto para que ele se apoiasse em mim.

— Eu vou ficar bem. — Charlie sussurrou, dava para perceber como ele estava sem forças. — Desculpa por mentir.

— Quem nunca, né.

Ajudei o guri a deitar na cama e mantive o ventilador desligado para não deixá-lo com frio. Contudo, na hora de me afastar depois de ajeitá-lo sua mão se segurou no meu braço, fracamente.

— Não me deixa sozinho... — Ele disse com a voz fraca e de olhos fechados. Engoli em seco, sem saber como reagir. Charlie queria que eu dormisse ali?!

— Tu vai ficar mais confortável assim... — Tentei desconversar e me soltar, mas ele continuava com a sua mão em mim.

— Por favor.

"É a segunda vez em 24 horas que eu deito na cama com esse guri, véi."

Tirei os chinelos e me deitei de bermuda e regata na cama, ao seu lado. Diferente da noite anterior, em que tudo aconteceu no calor do momento, agora eu me sentia estranho por dividir uma cama com ele. Felizmente, em poucos segundos Charlie dormiu – parecia uma criança que precisava de uma companhia para dormir.

Decidi esperar alguns minutos até que seu sono ficasse mais pesado para me levantar em seguida. Charlie estava coberto e eu não, então seria mais fácil. Olhei para os lados na tentativa de me distrair e notei que seu celular estava perto da minha cabeça, com a barra de notificações cheia.

"Vai ser babaquice tentar mexer no celular dele?"

Metade de mim dizia que sim, pois era a sua privacidade. A outra metade dizia que não, e que estava fazendo isso por se preocupar com ele e descobrir o que estava acontecendo.

Confiei mais na segunda metade da minha consciência e peguei o celular.

Para a minha surpresa, não havia senha na tela de bloqueio e a tela ligou com a foto de uma paisagem de girassóis no papel de parede. Arrastei o dedo para as notificações e fiquei chocado com a quantidade de solicitações de mensagens que ele possuía em varias redes sociais. Pelo visto, ele não respondia muita gente.

Fui no histórico de chamadas e encontrei quatro nomes no registro do horário de ontem: Marcos, Ramón, Fernando e um chamado no contato como "K Entrega". Os dois primeiros eu conhecia como antigos colegas da República em que Charlie morou, o terceiro era desconhecido e o quarto tinha cara de ser um vendedor.

Então rolou alguma coisa entre ele e os garotos... Mas por que não me contou?!

Ignorei a moralidade na minha cabeça e fui nas mensagens mais recentes. Ignorei todos os grupos e procurei um daqueles nomes, encontrando primeiro o de Marcos.

Abri a conversa.

— Tu vem ou não?

— Vou sim! E João? Vai?

— Vai nada, tem medo de usar balinha! E Falou que não quer se meter com essas coisas não!

— Mas você tem certeza de que esse cara é confiável?

— Lógico que é! É de qualidade sim! Tu vai ver, espia.

Saí da conversa e procurei o nome de João Vitor. Senti que lá teria algo importante para ler.

E eu estava certo.

— Joooohn, vamos! Faz tempo que a gente não se vê pessoalmente, vai ser divertido!

— Isso não é diversão pra mim, Charlie! E pra ti também não! Eu sei que tu não te meteu com isso pra se divertir!

— Tu não precisa usar nada lá com a gente!

— E daí? Não quero ver tu desse jeito! Tá se matando!

— Vai se ferrar então, João!

— Vai se ferrar tu! Tu é um hipócrita, achei que tudo o que eu tava vendo na internet de ti era verdade!

Percebi só depois que João Vitor havia sido bloqueado.

"Que desgraça de personalidade era essa, Charlie? Tu era mais legal!"

Eu não estava satisfeito, precisava procurar mais informações. Ainda não entendia muito bem aquela história.

SAMANTHA!

O histórico com ela seria perfeito, e fui atrás de encontrá-lo. Com muito custo, achei nos arquivados.

Mas só as últimas mensagens já me deixaram desnorteado demais para tentar ler tudo.

Samantha havia mandado um texto há exatas dez horas. Ou seja, no momento em que tudo estava acontecendo.

— Por que tu tá fazendo isso de novo, Charlie?! João acabou de me mandar mensagem e já me contou, não adianta inventar coisa! Então tu aproveita que tá em Esplendor pra se chapar com teus amigos de novo?!

Havia uma mensagem do próprio Charlie, enviada alguns minutos depois. Eu estava um pouco apreensivo.

— E tu quer que eu faça o quê?

— Volta pra merda da terapia! Tu só desandou depois que parou!

— E depois que você terminou comigo.

Opa, opa, opa. Samantha quem terminou com o guri. Tenho que anotar no meu mapa mental.

— Que saco, Charlie! Tu queria que eu fizesse o quê? Assistisse a porra do guri que eu gosto se matando, e eu tentando ajudar e sendo ignorada? Tu foi um ridículo comigo e nem era pra gente ainda tá falando disso!

— Então por que ainda tá aqui? Para de se importar comigo então! Eu vou usar o que eu quiser e ninguém tem nada a ver com isso porque quando eu precisei de ajuda ninguém tava nem aí! E daí que eu tô me matando? Talvez seja isso mesmo!

Eu sabia que era o Charlie bêbado e chapado que estava dizendo isso — e mesmo assim eu estava impressionado em como o seu português era bom até nesse estado. Mesmo assim, eu não podia deixar de me preocupar.

Saí da conversa e olhei todas as notificações de comentários e mensagens, lendo-as pela barra de notificações para não saírem da tela. Várias pessoas entravam em contato para dizer como estavam agradecidas pelo seu livro falar sobre transgeneridade, e porque ele falava sobre isso e aquilo de forma aberta e muita gente se identificava.

Bloqueei a tela novamente e virei para o lado. Charlie dormia profundamente agarrado ao travesseiro, como uma criança abraçaria um ursinho de dormir. Nem parecia o mesmo de ontem à noite, ou o mesmo das mensagens com Samantha.

Ter aquele guri por perto estava sendo muito mais difícil do que eu imaginava.

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