Capítulo 1


"Tente tirar esses demônios de mim." — Danger, Marshmello

2008.

Soltei um grito de pânico de dentro do banheiro e minha mãe saiu da cozinha correndo e gritando por meu nome, assustada.

— JADE?! O QUE ACONTECEU?!

Eu não conseguia parar de chorar, estava em pé com a roupa de baixo abaixada. Meu corpo tremia e minha mãe se aproximou de mim com preocupação.

— Eu tô... Mãe!!! — Cobri o rosto com as mãos, meus ombros balançavam pelos soluços. Minha mãe abaixou o olhar e viu meu short sujo de sangue.

— Meu filho, tá tudo bem! Isso acontece quando as... — Ela não terminou a frase, parou de repente. — Meu Deus, mas você é tão novo pra isso, eu vou ter que marcar mais uma consulta.

Minha mãe me ajudou a tirar a roupa para que eu tomasse um banho. Ela ligou o chuveiro, colocou um pouco de água morna nas mãos e passou no meu rosto para limpar minhas lágrimas.

— Eu tô doente?! — fiquei com ainda mais medo quando ela disse que ia marcar mais uma consulta.

— Não, meu bem, isso é totalmente normal, pessoas que têm vagina passam por isso, só vou falar com a doutora porque você só tem dez anos e geralmente as outras pessoas passam por isso mais tarde.

— Meu pai passou por isso? — Pensar que meu pai também levou esse susto mais novo era um pouco melhor. Peguei o sabonete depois de me molhar e ensaboei meu corpo, ainda tremendo um pouco. Minha mãe pegou as roupas do chão.

— Não, filho, mas... É muito complicado de te explicar, você lembra de que o seu corpo é diferente dos meninos, né?

— É. — eu não gostava de quando ela me lembrava disso.

— Eu... Vou dar um jeito nisso, tá? Não se preocupa, tá tudo bem.

Minha mãe parecia diferente falando aquelas coisas. Ela sumiu do banheiro e me deixou lá, assustado com o meu corpo, debaixo do chuveiro.

Se era uma coisa tão normal, por que ninguém me falou que isso ia acontecer?

Quando terminei de tomar banho, ela apareceu com o que eu descobri se chamar absorvente. Aquilo incomodava demais, mas minha mãe disse que eu precisava usar por alguns dias e trocar o tempo todo até meu corpo parar de sangrar.

Isso era loucura. Como meu corpo sangrava desse jeito e era normal?!

Quando meu pai chegou do trabalho, ouvi os dois falando sobre mim e minha mãe contou o que aconteceu comigo. Ela disse que a situação ficaria pior no futuro porque eu estava crescendo, meus hormônios iriam aumentar. Eu sabia o que era isso, ouvi nas aulas de biologia. Meninos tinham mais testosterona e meninas tinham mais... Era uma palavra difícil, não conseguia lembrar.

Escutei meu pai sentando na cadeira e saí do quarto na ponta dos pés, curioso com a conversa. Minha mãe estava em pé, de braços cruzados e o rosto irritado.

— E se Jade for só uma menina normal que tá sendo influenciada de alguma forma?

— Eu não vou acreditar nisso! — Minha mãe falou com raiva. — Você sabe, Max, o tanto que eu pedi pra Deus me dar um menino porque eu não queria ter uma garota pra sofrer nesse mundo tão idiota e machista. Deus sabe o que faz e me deu um garoto, do jeito dEle.

— Do jeito dEle, Andressa?! Se fosse isso mesmo, a gente não iria precisar injetar hormônios no corpo dela!

— A Medicina também é uma benção! Esqueceu?! Se existe essa opção, é porque Deus sabia que pessoas como Jade iriam precisar disso!

Minha mãe apoiou os braços na mesa e respirou fundo, com a cabeça baixa. Ela era muito boa com argumentos, eu ficava sempre impressionado.

Meu pai encostou o corpo na cadeira e soltou uma risada bem baixa e profunda. Ele olhou para cima e balançou a cabeça.

— Eu tenho um filho com uma vagina, era só o que me faltava.

Sempre que meu pai falava aquilo de mim, eu me sentia mal. A parte do meio do meu corpo queria se encolher e me dava vontade de vomitar. Eu odiava isso e nem sabia explicar por quê.

— Se a gente vai levar isso mesmo pra frente, então Jade vai começar a ir no endócrino. — Meu pai falou decidido.

— A pediatra tá sendo o suficiente por enquanto.

— Tu acha que alguém na escola vai tratar Jade como garoto com essa aparência? Esse cabelo grande e esse corpo de menina? A esposa de um amigo meu é endócrino, eu vou conversar com ela pra ver algum bloqueador hormonal antes dela, dele, entrar no Sexto ano.

— Acho que a gente devia esperar ele crescer mais um pouco e...

— E esperar acontecer o quê, Andressa?! Alguém quebrar ele na rua por ser uma aberração?! Deus também me deu a tarefa de proteger meu filho!

Voltei rapidamente para meu quarto, com as meias abafando os passos. Me joguei na cama e cobri meu rosto com o travesseiro para meus pais não ouvirem que eu estava chorando.

"Aberração."

2020.

Nunca, em toda a minha vida, eu entraria em um bar LGBTQ de Porto Alegre por conta própria, mas Charlie Stewart havia me convencido a fazer isso.

Ele estava atrasado, e eu bebia para passar o tempo sozinho ali. Evitava cruzar o olhar com outras pessoas e não esperava que alguém tentasse puxar assunto comigo.

Eu não devia estar bebendo, na verdade. Minha última dose de testosterona fora tomada há apenas dois dias. Contudo, eu não iria passar por aquilo tudo sóbrio.

— Pode trazer mais uma? Por favor. — Estendi o copo vazio para o barman ao meu lado. Ele, assim como os outros funcionários, estava de máscara. Ainda não era obrigatório que os clientes usassem, mas a julgar pela velocidade da Covid-19, isso mudaria em breve.

— Faz um tempo que ninguém aqui toma Jack, é tua primeira vez aqui, amor? — O rapaz loiro de olhos verdes estendeu a garrafa de Jack Daniels no meu copo e me serviu mais uma dose de whisky.

— É, mas tô só esperando uma pessoa.

Dei um sorriso rápido e um aceno de cabeça após ele completar meu copo e tomei metade do conteúdo em um gole só. Minha garganta não se afetava pelo álcool queimando meu interior como antigamente, o que me obrigava a pedir sempre mais doses que o normal para surtir o mesmo efeito.

O som do ambiente estava abafado pelas conversas das pessoas e a decoração era uma mistura de um clima colorido com o ar de boteco. Haviam faixas de arco-íris espalhadas pelas paredes, músicas de rock e pop antigas cantadas por artistas gays, uma mesa de sinuca e várias mesas circulares de madeira espalhadas pelo espaço. Eu estava sentado na mesa central do bar, observando tediosamente as garrafas de bebidas diversas expostas na parede.

O barulho de porta sendo aberta não chamou minha atenção de imediato, até ouvir a voz animada do barman ao olhar para a nova pessoa no recinto.

— Bah, Charlie!!! E aí?

Minha testa franziu ao ver o rapaz que eu aguardava acenar a cabeça para o barman. Charlie retirou a máscara assim que se sentou ao meu lado.

— Ei, Dudu! Já conheceu o Jason? — Ele alternou o olhar entre nós dois.

— Teu amigo já bebeu uns quatro copos desse! Ele aprendeu contigo ou foi o contrário? — O barman pegou mais um copo de vidro e surgiu com uma garrafa trincando de Polar, mesmo Charlie não tendo dito a ele o que queria pedir.

— Na verdade, Jason que me ensinou o mau caminho. — Ele virou o rosto para mim e seus olhos azuis piscaram. Meus lábios se entreabriram e deixei escapar um riso surpreso.

— Então quer dizer que tu tá bebendo mais do que eu agora?

— Acho que tu ainda me vê como aquele gurizinho besta da Marie Curie.

Minha gargalhada saiu tanto pelo comentário quanto pelo vocabulário de Charlie, totalmente gaúcho. Seu sotaque estadunidense estava escondido.

— Quem é tu e o que tu fez com o Charlie?!

— Muita coisa mudou, Jason! — Ele disse com um sorriso e deu um gole na sua cerveja. Estava frio e Charlie usava uma blusa de gola alta com outro casaco por cima, quase como um sobretudo.

O garoto de all-star e calça rasgada havia se transformado em um homem. Apenas a altura que não colaborava.

Durante os minutos seguintes, eu ouvi mais do que falei. A voz de Charlie me contando tudo o que havia acontecido em Porto Alegre era carregada de emoção e felicidade – ele havia alçado voo e estava realizando os seus sonhos.

O sucesso do seu primeiro livro o fez investir na escrita e a começar o segundo, o qual ele não me deu detalhes pois disse que seria surpresa. As ações feitas pela internet alcançaram várias pessoas e, com a ajuda de conhecidos dele da política, havia conseguido até a aprovação da criação de um ambulatório trans em Porto Alegre.

Charlie se tornou uma pessoa mais articulada e confiante. A mudança interna era visível, o que contrastava de forma grandiosa com sua aparência.

— A única coisa que sinto falta é de ir ao psicólogo. — Charlie deu um último gole na Polar e afastou a garrafa para apoiar os braços na mesa de madeira escura. — Mas Katiana foi tão boa que tenho medo de ir com outra pessoa, sabe? Só queria se fosse com ela.

— Então o grandioso e corajoso Charlie ainda tem os teus medos, tchê. — Sorri segundos antes de também tomar o último gole do whisky. A vantagem da bebida era o calor interno que tornava o frio de Porto Alegre mais tolerável.

— Não sou perfeito, tô longe de ser. Mas acho que tô evoluindo bastante. — Ele passou a mexer nos próprios dedos, com um olhar calmo, porém distante.

— E a T? Não vai começar a tomar? — Deixei o copo de lado e virei o meu corpo na banqueta, ficando de frente para ele, com um dos braços ainda apoiado na mesa. Charlie voltou a olhar para mim.

— Não preciso disso, não agora. Eu já me sinto um homem completo, entende?

— Na verdade, essa parte eu não entendo. — Desviei meu olhar para não vê-lo sua expressão de julgamento e ri. — Mas admiro isso.

Já eram quatro anos em testosterona. Eu não conseguia me imaginar de forma diferente.

— E aí, quando que tu vai me explicar por que precisa de mim?

O assunto inevitável surgiu e eu não podia prolongar mais a conversa, precisava explicar a situação.

— É o seguinte... — Mexi no zíper da jaqueta e voltei a encará-lo. — Queria saber se tu podia tirar uns dias pra ir a Esplendor testemunhar contra o meu pai. Isso pode ajudar muito. E eu... Tava pensando em contar a verdade sobre por que meu pai fez tudo aquilo.

Uma das sobrancelhas do rapaz se ergueu de forma leve e rápida. Sua expressão era de surpresa, mas contida.

— Ele não foi preso por lgbtfobia?

— A acusação é só de agressão. O áudio daquele dia só serviu para Paloma fazer o prefeito demiti-lo para tirar seus benefícios, não tive coragem de expor aquilo à polícia.

— Mas você precisa fazer um depoimento sobre isso também, Jason.

— Se eu fizer, isso vai virar notícia. Não vou conseguir... A não ser que você esteja junto.

Meu olhar se abaixou por estar sem graça com aquele assunto. Era um terreno desconfortável demais para mim. Eu não conseguiria me assumir sozinho, eu queria Charlie como um apoio.

— Beleza, eu topo. Nós dois vamos depor.

A frase do garoto me fez erguer o olhar novamente para ele, surpreso. Mesmo ansioso para que aceitasse, eu ainda estava cético quanto a isso, nem esperava uma resposta tão rápida e decidida.

— Isso é sério?!

— Vou conversar com a Laiene se posso antecipar parte das férias pra viajar. Tô contigo nessa, Jason, óbvio que vou te ajudar. E eu... Também preciso resolver alguns assuntos pendentes em Esplendor, mesmo.

Ele não precisava falar o nome da ex-namorada para eu saber. Samantha entrou como um elefante gigante no meio de nós dois, e tossi para limpar a garganta.

— É, acho que vou precisar de mais uma dose de Jack.

— Eu te acompanho. — Charlie tentou dar um sorriso, mas estava tão desconfortável quanto eu.

Só o álcool para aliviar aquele momento estranho, que tinha um gosto amargo do passado.

Esplendor iria se tornar um grande caos em breve.

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