Capítulo 4
Antes de começar esse capítulo quero te informar algo para que não fiques CONFUSO a partir da leitura desse capítulo: os capítulos são divididos em dois marcos temporais correto? No caso, eram os anos de 1623 e 2019, porém, em virtude de eu ter mudado um pouquinho o enredo da história, agora não será mais ano de 2019, mas sim, ano de 2008 😉
•° 4 °•
Ano de 1627
Às vezes, a vida exige riscos. Você pode por em uma balança as atitudes e as consequências e, independente de qual lado for mais pesado, no fim, você escolherá fazer mesmo assim. Porque os riscos são atraentes. Há aqueles que não se permitem e vivem uma vida margeada pela mesmice.
Intensidade. Nem todos são ousados o suficiente para senti-la.
Eulália era escrava e tinha ambições. Mas ela não podia ser ambiciosa justamente por ser uma escrava. Escravos não tinham o direito de pensar ou de escolher o rumo de suas próprias vidas, não podiam olhar o horizonte ao entardecer porque estava estarrecidos de trabalho. Os seus senhores não conseguiam sequer abotoar a camisa sem que um deles fizesse isso em seus lugares. Foram subjugados e reduzidos a nada.
E se um escravo não podia pensar, que dirá sentir! Objetos não sentem, eles... Também não. Na hierarquia de romances, chave e fechadura se casavam melhor. Não havia amor, mas sim conveniência. Que mais podiam querer? Aqueles que arriscavam sentir, sofriam as consequências. Padeciam, choravam, enlouqueciam. Quem se mantém são, vendo aquele que ama ser açoitado?
Mesmo diante de tudo isso, o coração jovem e inexperiente de Eulália batia ferozmente no peito. Tudo que não lhe permitiam ser, ela era. Curiosa, ambiciosa, sonhadora, inteligente e, acima de tudo, insistente. O jovem sobrinho do Capitão foi capaz de despertar todas essas coisas nela. Quão preocupante é isso, bem sabendo que o lado das consequências pesa mais.
Na primeira noite em que o recém-chegado visitante estava no casarão da fazenda, Eulália foi direcionada a ficar na sala de jantar de prontidão. Ela olhava silenciosamente seus senhores comerem as delícias de Luanda e mantinha seu verdadeiro eu quieto, para não chamar atenção. Olhou de soslaio para aquela mesa posta e imaginou como seria estar sentada lá, junto com a família do Capitão. Ela ouvia as histórias instigantes do jovem sobrinho, falando em um sotaque muito carregado, e se pegava sonhando de olhos abertos. Europa. Ele vinha de lá. Por que bulhufas trocou aquele oásis pelo tão sádico Novo Mundo?
– Eulália traga mais batatas. – A Sinhá pediu, séria.
Enquanto a garota cumpria a ordenança de sua senhoria, pensava o quanto ela não havia gostado da presença do sobrinho do marido. Sinhá demonstrava nas feições o que ainda não tinha dito com palavras. Na verdade, ela sempre fora uma mulher carrancuda e apática a todos ao seu redor. Nunca teve hombridade, também. Passava as manhãs em seu quarto, talvez deitada na cama olhando sombriamente para o teto, e durante a tarde, bordava infinitos tecidos com sua agulha dourada. Quando furava o dedo, ela nunca expressava dor, apenas chupava a gota de sangue formada no cimo da pele e voltava ao bordado. Eulália a viu fazer isso inúmeras vezes. Diga-se de passagem, ela tinha verdadeiro ódio pela escravinha, se pudesse, já teria lhe chicoteado há décadas. Contavam pela fazenda que o motivo desse rancor era o próprio nascimento de Eulália, pois a sua mãe e a Sinhá engravidaram no mesmo ano, mas a senhora abortou, espontaneamente, o bebê antes mesmo de dar a luz.
Inveja, talvez, mas a mulher do Capitão depositava na filha de sua escrava desaparecida toda a tristeza por perder um filho.
Eulália trouxe as batatas e sutilmente parou em um canto da sala bem mais próximo do sobrinho do Capitão. Ela olhou a face do rapaz, sob as luzes bruxuleantes das velas, e se lembrou que ainda não sabia o nome dele. Talvez tenham dito-o durante a conversa à mesa, mas ela estava tão atolada em pensamentos próprios que não percebeu. A partir daquele momento começou a focar somente no que diziam, na tentativa de identificar o tão misterioso nome e sobrenome do visitante, todavia era só "sobrinho" para cá e para lá.
O jantar finalmente findou e Eulália recolheu a mesa com Luanda. As duas não demoraram em deixar a cozinha organizada antes de irem para a Senzala. Lá, no chão insalubre e pedregoso, estenderam palhas. Alguns escravos podiam dormir em redes, mas só porque os senhores jogavam panos "velhos" no lixo. Eulália nunca deu sorte de encontrar algum pela fazenda, na verdade ela nunca saía de dia para fora do casarão. Tinha sempre de manter a casa limpa e estar de prontidão para as ordenanças de sua madrinha e, eventualmente , da Sinhá.
A jovem rolou de um lado para o outro no desconfortável leito. O som de palha sendo amassada com certeza incomodava quem dormia ao seu lado, também sobre palhas, porém era o único forro que tinha.
A cabeça da pequena jovem estava apoiada em um montinho de tecidos velhos que nada mais eram do que suas roupas. No entanto, pior mesmo era ter os pensamentos a mil, atropelando uns aos outros o tempo todo. A mente fértil da garota não parava de imaginar como seria se ela não fosse escrava, se ela pudesse trabalhar no Forte ao invés da Fazenda. Ela poderia cuidar dos inventários e aprender a manusear uma mosquete. Traçariam, ela e o Capitão, planos para manter a segurança do lugar e melhor ainda, seria alguém importante de verdade, que fizesse algo importante de verdade.
O som das palhas resvalando sob os corpos dos escravos na Senzala interromperam mais uma vez Eulália. O ambiente quente e abafado se misturava ora com o canto dos grilos, ora com o uivos de bestas da mata.
Por fim, voltou os pensamentos novamente ao Forte de Santo Antônio da Barra. Se Eulália pudesse trabalhar nele, quem sabe poderia falar, sem culpa, com o sobrinho do Capitão... Poderia, assim descobrir mais sobre a Europa, lugar pelo qual ansiava todas as noites conhecer. Porventura entraria ela em um grande navio? Ela nunca viu um de perto mas ouvira falar que eles tinham grandes velas de tecido amarelado e convés tão sujos quanto o galinheiro. Nele, negros, europeus, especiarias e pestes cruzavam o Atlântico todos os dias. Cruzaria ela também?
O farfalhar das palhas interrompia o tempo todo suas linhas de raciocínio. E ela se revoltou. Poderia ser restringir de tudo, mas não podiam lhe tirar um sono decente! Em um momento de insensatez, decidiu "resolver" essa pequena privação de liberdade.
Eulália olhou a madrinha Luanda deitada ao seu lado. Dormia pesadamente, com a mão sobre a barriga, subindo e descendo a medida que respirava. Com cuidado, se levantou do leito e começou a pular de espaço vazio a espaço vazio, entre os outros escravos da Senzala. Quase chegando na saída, se desequilibrou e por sorte não pisou no pé de alguém. A claridade, provinda exclusivamente da lua, era pouca e ela quase não pôde distinguir as feições, mas estava quase certa de que era Petre. Respirou fundo e continuou a jornada. Não sabia aonde, mas naquela noite iria conseguir uma "rede" para ela.
Ganhou a noite quente do lado de fora da Senzala. Não era um calor escaldante, mas também não era confortante. Eulália apertou os olhos, na tentativa de enxergar melhor no escuro e começou a se direcionar à Casa Grande, talvez nos arredores dela encontraria o que estava procurando. Revirou tudo que poderia estar escondendo um pano, mas não achou nada.
No entanto, quando passou pela porta dos fundos da casa, ela ouviu barulhos vindos direto da cozinha. Se espremeu atrás de alguns barris com feijão em conserva e tentou espiar o que se passava dentro do Casarão. Ela viu, assim, o Capitão revirando latas e cestas espalhadas sobre o balcão da cozinha.
– Então é verdade... – Eulália sussurro e logo em seguida tapou a boca com as mãos, temendo ter falando alto demais ao ponto de denunciar a si mesma.
Era perigoso estar fora da Senzala pela noite. O capataz da fazenda poderia estar por aí, rondando, em busca de escravos fujões e talvez ele interprestasse que a jovem também pretendia fugir. Ou quem sabe algum outro "homem" do capitão estivesse zanzando próximo à Senzala. O que os homens brancos faziam com as escravas a noite não merece nem mesmo ser exposto.
Eulália se deu conta do risco que corria. Ela precisava voltar urgentemente para o lugar que não deveria ter saído. Mas restava a dúvida: sair de trás dos barris e ameaçar ser vista correndo pelo "campo aberto" da propriedade ou permanecer ali? Ela notou que a Senzala estava longe consideravelmente, ela nem percebeu que andou muito na busca de sua rede.
O que fazer? O que fazer...? Eulália repetia mentalmente. Por um breve momento ela encarou a Casa Grande do Capitão. E se... Talvez...
Poderia ela entrar ali?
***
Ano de 2008
Laura estava exausta, mas ainda havia mesas para limpar. A corrida atrás do pequeno larapio de praia lhe gastara as últimas fichas de energia, ela podia jurar que as moléculas de ATP de seu corpo não conseguiam nem mesmo serem transformadas.
Ela avistou, porém, Manny se aproximando com os estrangeiros que "ajudaram-na" a resgatar o dinheiro roubado. Laura observou o cozinheiro. Era um homem de 1,80cm de altura mas que, devido ao seu peso extremo de mais de 100 quilos, aparentava ser monstruosamente grande. Mantinha um bigode falho sobre o lábio superior desde jovem – Laura sabia disso pois, pendurado na parede principal do restaurante havia um porta-retrato enorme de Manny e sua esposa no dia do casamento. O cozinheiro ainda tinha as mesmas feições de tantos anos atrás, mas parecia que os anos haviam sido maus com ele e lhe deram doses de gordura amarela toda virada de ano. O cozinheiro era apegado a família, mas somente a ela. As pessoas que não tinham seus laços sanguíneos eram desprezadas por Manny e o único momento em que ele se portava "gentil" era no momento que precisava bajular alguém.
Naquele momento, Manny exibia tremenda bajulação pelo grupo de estrangeiros. Acomodou-os na melhor mesa do restaurante e tratou de oferecer um cardápio para cada um deles. Laura era boa em leitura labial e mesmo de longe, sem conseguir ouvir direito o que ele falava, ela soube que eles podiam escolher qualquer coisa. Era tudo por conta da casa.
Manny se aproximou de Laura, por fim, deixando os estrangeiros a sós.
– Limpe a mesa deles. – O cozinheiro ordenou apontando para o grupo de seis homens alvos.
– Mas já está limpa. – Laura retrucou, jogando a flanela nos ombros.
– Limpe novamente, moreninha. – Ele disse, maliciosamente.
Laura não sabia se isso se tratava de um assédio ou de um ato de preconceito racial. Em qualquer uma das hipóteses, ela repudiava aquele homem, contudo, por amor a sua avó, controlou a língua e poupou uma possível discussão com o seu chefe que lhe resultaria em uma demissão.
Arrastando os pés, a jovem mulher se dirigiu a mesa dos estrangeiros, temendo ser assediada, mais vez, naquela infindável noite. Porém, nenhum deles lhe lançaram olhares maliciosos ou piadinhas de duplo sentido, como era comum Laura ver os clientes de Manny fazerem. Os seis brancos foram "civilizados", por assim pontuar.
– Desejam alguma coisa, antes do pedido chegarem, senhores? – Laura perguntou, sentindo-se levemente disposta.
– Não. – Foi o armário maior que respondeu mais uma vez pelo grupo – Estamos bem, obrigada.
Laura ficou terrivelmente tentada a perguntar a nacionalidade dos homens. Tinha quase 99% de certeza de que eram todos franceses. Bom, a noite estava findando mesmo, o cansaço entorpecia seus pensamentos racionais, então pouco se importava com qualquer coisa.
– Vocês são franceses? – Laura pergunta, retraída.
– Somos. – O armário voltou a responder – Você fala nossa língua, certo? Me lembro de ouvi-la falar mais cedo.
O sotaque do francês ainda era muito carregado e exigia de Laura um pouco mais de raciocínio para entender o que ele queria dizer. A julgar por isso, Laura imaginava que eles estavam só a passeio em São Luís. Pelo menos escolheram o lugar mais exuberante do Brasil para conhecer.
– Eu falo francês básico. – Laura explica, colocando a bandeja redonda e preta embaixo do braço.
– Legal! Você fala um francês básico muito bom. – O armário maior responde.
– Seu português também não é nada mal.
Os outros cinco estrangeiros permaneciam calados. Isso levou Laura a crer que eles nem mesmo deviam estar entendendo a interação do amigo com a garçonete do restaurante. Talvez nem falavam português.
– O pedido está pronto! – Laura ouviu Manny gritar e bater, impaciente, várias vezes no sino que ficava sobre o balcão que dividia a cozinha do salão das mesinhas de madeira espalhadas pelo deck do quiosque.
Laura se apressou em servir os estrangeiros. Ela retornou para o balcão de atendimento e ficou olhando aquela trupe de homens deslocados experimentando os sabores brasileiros. Suas expressões faciais eram as mais diferentes e engraçadas possíveis, uns contorciam as feições em caretas, outros, arqueavam as sobrancelhas e balançavam a cabeça concordando com alguma pergunta inexistente no ar sobre o sabor que acabaram de experimentar. Ela ainda serviu outras mesas até ver o grupo se levantar e ir embora.
Tendo consciência de que logo mais clientes chegariam, procurando por uma mesa, ela correu para recolher a bagunça dos homens alvos. No entanto, Laura não notou que o armário maior estava bem a suas costas. Foi somente ela se cuidar e quase caiu, tropeçando nos pés grandalhões do francês. Ela pediu desculpas várias vezes ao homem que somente via como um cliente e voltou a sua bagunça.
– Petter.
Laura ouviu o estrangeiro dizer atrás dela.
– Meu nome é Petter Fontaine. E o seu, qual é?
– Laura Silva. – Ela respondeu, indiferente.
– Muito obrigada, Laura Silva – Ele se atrapalhou um pouco quando tentou falar o nome dela e isso arrancou um risinho, sem querer, da jovem negra – pelo ótimo atendimento.
– Não precisa agradecer, eu só fiz meu trabalho. – Laura respondeu, soando sincera.
O jeito como Laura falou com aquele estranhou ressonou até mesmo nos ouvidos dela como um som estranho, irreconhecível. Ela não sabia que conseguia controlar o mau humor, não sabia nem mesmo que conseguia modular seu timbre de forma que saísse tão suave e natural. Era como se falar com aquele estrangeiro não exigisse dela uma postura formal.
– Nos vemos em breve? – O estrangeiro perguntou, parecendo um pouco automático demais para Laura, porém admirável, ele realmente estava se esforçando para falar com os brasileiros. E por esse motivo, ela resolveu ser um pouco gentil com ele:
– Nos vemos sim.
Os estrangeiros deixaram o restaurante sem muita demora e Laura observou por longos minutos o espaço vazio que deixaram para trás, cheio de sagacidade.
***
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