Prólogo
Espanha
Século XVIII
Anita Ortiz conhecia as regras. E a regra mais severa de sua mãe era jamais — jamais — chegar perto da residência da família Gonzalez.
Mas, quando a menina de nove anos encarou a casa envolta pela neblina da noite, se perguntou o que poderia haver de errado com o lugar.
Não deveria sair da cama àquela hora, contudo, o sono não vinha. E, ao olhar pela janela, foi como se a névoa a convidasse para um passeio. Um passeio impossível de ser recusado. Sem acordar as irmãs, ela abrira a janela e descera pelas trepadeiras, correndo para a liberdade e para o silêncio que cobria o vilarejo. Enquanto a maioria das meninas tinha medo do escuro, havia algo nas cores da noite que lhe fazia bem.
Quando percebera, estava ali. Diante da residência dos Gonzalez.
Curiosa, Anita atravessou os limites dos jardins, apenas para ver as flores e as árvores. Será que sua mãe não gostava do tipo de jardinagem? A menina retorceu a boca. Não havia nada de errado na grama ou nos botões brancos que desabrochavam da terra. Podia até reconhecer algumas ervas. Sua avó plantava várias ervas como aquelas também.
Algo estalou. As nuvens surgiram e cobriram a lua.
Sobressaltada, Anita deu alguns passos para trás. A barra de sua camisola se enroscou em um dos espinhos. Ela tropeçou. E caiu. Caiu até atingir uma camada de terra dura.
Seu coração batia descontroladamente.
Por que tinha um buraco daqueles no meio do jardim?
Anita tentou enfiar as mãos na terra e escalá-la. Mas a terra se desfazia entre seus dedos. Seu lábio inferior tremeu. E se ela ficasse presa ali para sempre?
Ao erguer o rosto, notou uma sombra se aproximando do lado de cima, como se estivesse ensaiando se agachar.
O coração dela foi parar na garganta.
A sombra ficou mais próxima.
Anita conteve um soluço de medo. Sua mente infantil pensou logo em Verbius, o bruxo das histórias de ninar que sua avó contava para ela e para as irmãs quase todas as noites. Um bruxo cruel que devorava crianças desobedientes.
Trêmula, ela fez o sinal da cruz e prometeu que seria uma boa menina dali em diante. Bom, tentaria ser uma boa menina sempre que conseguisse. Mas se esforçaria.
A sombra se curvou sobre a beirada do buraco.
— Precisa de ajuda?
Anita ergueu a cabeça.
As nuvens libertaram a lua, o brilho prateado e incólume contornando o rosto de um menino que deveria ser mais velho do que ela, de cabelos lisos e negros, cujas pontas quase tocavam a gola da camisa.
— Como você foi parar aí?
Anita ofegou.
— Eu... Eu caí.
Ele suspirou, estendendo o braço para baixo.
— Venha. Você não conseguirá subir sozinha.
Ela agarrou o pulso dele com as duas mãos. O contato da pele contra a pele crepitou um calor que não condizia com o frio daquela noite sombria. Anita entreabriu os lábios, no mesmo instante em que o garoto estreitou os olhos. Ele também tinha sentido aquilo?
Mas então, como se nada houvesse acontecido, ele a levantou com uma força surpreendente. Um momento depois, os dois estavam de pé.
Anita engoliu em seco.
— Obrigada.
Esfregando a camisola suja de terra, e torcendo para que conseguisse limpar o tecido antes que sua mãe percebesse que ela dera um passeio noturno e a castigasse severamente, Anita encarou o garoto.
— Por que tem um buraco aqui?
Ele esboçou um sorriso. Por entre o luar e a névoa dançante, ela podia ver que os olhos dele eram da cor da relva do inverno.
— Estamos cavando um poço. Por que você estava aqui?
Anita engoliu em seco. Não tinha uma resposta pronta. Bisbilhotar as casas do vilarejo não era considerado uma virtude.
Como se farejasse seu nervosismo, o garoto lhe deu outro sorriso.
— Sou Miguel. Miguel Gonzalez. E você?
O sobrenome dele ecoou nos ouvidos dela.
Sua mãe não gostaria que ela estivesse conversando com um membro da família Gonzalez, mesmo que ninguém nunca tivesse lhe explicado o motivo de não poder fazer aquilo.
— Anita — ela sussurrou. Esfregou a camisola outra vez. Estava ferrada. O tecido fora arruinado completamente. — Anita Ortiz.
O vento soprou, acompanhando o som de uma porta se abrindo.
Anita virou o rosto, os olhos capturando uma mulher na soleira da casa. Ela usa vestes recatadas de dormir e segurava um lampião na mão. A luz lhe dava um aspecto pálido, que fez a pele de Anita se arrepiar. Sabia que aquela era a senhora Gonzalez.
— O que está acontecendo aqui, Miguel?
Anita já ouvira algumas histórias sobre ela, quando se esgueirava para a cozinha e se escondia embaixo da mesa, comendo os doces nos horários em que deveria estar fazendo suas tarefas. As cozinheiras diziam que todos os filhos dela haviam nascido mortos. Apenas um sobrevivera. Miguel, ela supôs.
— Ela caiu em nosso poço, mãe.
As sobrancelhas da senhora Gonzalez se arquearam.
— Está bem longe de casa, pequena Ortiz.
— Sinto muito — ela disse, encolhendo os ombros. — Não sei por que vim até aqui. Quando percebi, já estava aqui.
Com um suspiro, a mulher entregou o lampião para o filho.
— Leve-a de volta, Miguel. A noite não é segura para uma garota tão nova e indefesa.
— Sim, mamãe. — Ele apanhou o lampião, os olhos tranquilos buscando pelos dela. — Vamos?
Anita não pensou duas vezes e se virou, seguindo para fora do jardim e dos terrenos dos Gonzalez.
Eles caminharam juntos pelas ruas de paralelepípedos e terra. As árvores pairavam acima como fantasmas ameaçadores, sussurrando segredos na escuridão. Anita respirou aliviada quando enxergou os grandes portões de sua casa e as trepadeiras que subiam até a janela de seu quarto, transformando-se em sua rota secreta de entrada e saída.
— Pronto. Está a salvo.
— Obrigada outra vez.
— Tome cuidado para não cair em poços alheios outra vez.
Um rubor inevitável coloriu as maçãs de seu rosto. Anita se virou, olhando para a janela de seu quarto. Precisaria ser silenciosa. Antes de iniciar sua subida, olhou por cima do ombro, procurando por Miguel.
— Promete não contar para ninguém o que aconteceu? Meus pais me castigariam se soubessem que saí da cama tarde da noite.
Ainda envolto pela névoa e pelo luar, Miguel assentiu.
— Seu segredo está a salvo comigo.
Ela o observou se virar e se afastar, uma mancha que sumia pouco a pouco, até desaparecer por completo, a luz do lampião reluzindo ao longe.
Travando a respiração, Anita começou sua subida. Abriu a janela e entrou com cuidado no quarto. Suas irmãs mal se mexeram na cama. Anita arrancou a camisola suja com o máximo de silêncio que conseguiu e a enfiou embaixo do colchão. Vestiu outra.
Ao deitar na cama, Anita demorou para dormir.
E, quando o sono enfim a rendeu, ela sonhou com a lua, com sussurros, com a noite e com os olhos de Miguel.
Olá, meus amores!
Eu ia esperar mais um pouco para iniciar as postagens de Feitiço da Noite, porém a ansiedade foi maior kkkkkk
Aqui está o prólogo ♥
Sejam bem-vindos mais uma vez ♥
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