5 - Regresso

"Nas sombras está, onde nem mesmo o fogo pode alcançar".

Miguel tossiu baixo, abrindo os olhos e os ajustando à luminosidade da manhã. O roço de um arrepio pairava por sua pele, como se alguém estivesse próximo de seu rosto. Ele piscou com força. Olhou em volta. Não havia ninguém ali.

Esfregando o rosto, Miguel foi até o banheiro anexo ao aposento, lavou-se e vestiu roupas limpas. Ao encarar seus olhos no espelho, constatou que qualquer traço do resfriado que quisera assolá-lo havia ido embora.

Tivera sonhos inquietos, pesadelos, um agito desconfortável. Estava sendo caçado na floresta quando acordou com Anita próxima de seu rosto.

Ao voltar para o quarto e apanhar o casaco, por um momento, foi enlaçado por um perfume de rosas; o mesmo perfume que o acordara na noite passada. Quase achou que veria Anita ali; mas tudo o que havia no cômodo era a centelha que restara de sua presença.

— Bom dia, Miguel — Padre Hernando o cumprimentou assim que se encontraram no corredor e desceram para o salão.

— Bom dia, padre.

O fogo ardia na lareira enquanto Miguel se servia de uma tigela de mingau e um pedaço de bolo de mel. Enquanto ouvia Padre Hernando orar em agradecimento ao alimento, seus olhos vagueavam pelo salão, em busca dos traços inconfundíveis de Anita.

Ele ainda não tinha certeza do que havia acontecido na noite passada. Sentira-se mal, à beira da febre. O chá dela lhe fizera milagres. E ele achava que deveria agradecê-la mais uma vez, apesar de tê-la flagrado em seu quarto; algo que uma moça jamais deveria fazer.

Miguel precisou segurar um sorriso.

Não se lembrava de nenhuma época em que vira Anita dançando conforme as normas da sociedade.

Mas isso não dava a ele o direito de não se portar como um cavalheiro. E sentia que, talvez, precisasse se desculpar a respeito da poesia que pedira para que ela lesse na noite anterior. Aquilo era íntimo demais, um pedaço das memórias de sua infância. Não soubera porque queria ouvi-la, como se o tempo não houvesse passado entre eles; talvez tivesse sido os resquícios do delírio da febre.

Miguel decidiu desfrutar do desjejum depois que percebeu que Anita não estava em canto algum.

— Acertarei nossas contas e pedirei para que alguém busque os cavalos no estábulo — Padre Hernando anunciou, levantando-se ao fim da refeição. — Temos uma missão sagrada que precisa ser cumprida.

Miguel deixou-o cuidar da parte burocrática e se levantou, circulando pelo salão. Desejava se despedir de Anita antes de seguir viagem. Apenas implorava para não cruzar com a mãe dela no meio do caminho. Havia algo no olhar de Maria Ortiz que parecia sempre pronto para lanciná-lo, uma faca que ficara ainda mais afiada na sua ausência.

Ao cruzar o salão, encontrou uma pequena loja que deveria fazer parte da hospedaria. Miguel empurrou a porta, um sino pequenino soando junto de seus passos. Era uma lojinha de artigos naturais, provavelmente confeccionados pelas irmãs Ortiz. Pequenos frascos de óleos essenciais exalavam cheiros de maçã, canela e gengibre. Havia velas, pedras e loções caseiras à venda.

— Desculpa a demora. No que posso ajudá-lo?

Miguel virou o rosto no mesmo instante em que ela surgiu das portas do fundo, trazendo no ar um perfume de rosas envolvente.

O semblante de Anita mudou por completo ao vê-lo.

A luz pálida da manhã transformava o escuro dos olhos dela em um cinza delicado. Os cabelos escuros e sedosos caíam pelos ombros, contornando as maçãs do rosto, salientando o tom da pele. Anita estava tão diferente daquela menininha que conhecera em uma noite fria e nevoenta; era agora um lampejo de luz muito mais nítido e intenso.

— Bom dia, senhor Gonzalez — ela o cumprimentou com um sorriso cortês, as mãos buscando apoio em cima do balcão. Era delírio seu ou os olhos dela pareciam ainda mais cativantes? — Está se sentindo melhor?

— Bom dia, senhorita Ortiz. Estou. Queria agradecê-la mais uma vez. Se não fosse por sua infusão, acredito que minha febre teria piorado.

Anita franziu os lábios.

— Não foi nada demais. E, sobre ontem à noite...

— Seu segredo está a salvo comigo. — Miguel fez um gesto cortês com a cabeça, escondendo a dica de um sorriso cúmplice na boca. — Assim como o do poço.

Ela sorriu; uma mistura de timidez e travessura. E o coração de Miguel falseou de um jeito que não fazia há muitos anos.

As palavras se enroscaram na boca dele.

O que planejara dizer sobre as poesias e limites ultrapassados?

— Tudo pronto, garoto — Padre Hernando anunciou em seu efusivo bom humor matinal, enfiando a cabeça pela entrada da loja. — Vamos partir agora mesmo.

Miguel se voltou outra vez para Anita.

— Agradeço novamente por toda a hospitalidade, senhorita Ortiz.

— Volte sempre. Eu... — Anita recolheu as mãos, entrelaçando os dedos. — Nós, da La Rosa de la Noche, ficaremos felizes em recebê-los.

Um formigamento subiu pela mão de Miguel ao olhar os dedos entrelaçados dela; uma vontade de segurá-los entre os seus, de confirmar se eram tão mornos e macios quanto o toque que sentira em sua testa na noite passada.

Limpando a garganta, ele se despediu mais uma vez e deixou a loja, o ar sacolejando em seus pulmões. Ao olhar para trás, para cima, viu Maria Ortiz em uma das janelas.

Fez um aceno de despedida para a dona da hospedaria.

A mulher se limitou a inspirar fundo e fechar as cortinas.


*********************


Sem chuva, o trajeto na carruagem foi tranquilo.

Miguel deixou a cortina de veludo repuxada, recendo a contemplação das construções de pedras banhada pela luz da manhã e rodeada pela névoa típica da região.

"Vá embora, Miguel", o pedido final de sua mãe ecoava nas lembranças. "Vá para Madri. Procure padre Hernando. Junte-se a ele. E não volte para cá".

Padre Hernando segurava a bíblia nas mãos e lia alguns salmos. Miguel se perguntou se seria punido pelas leis divinas por não estar prestando a devida e respeitosa atenção às escrituras.

"Vá embora, Miguel. Vá para Madri. Procure padre Hernando. Junte-se a ele. E não volte para cá".

— Gostaria de descer um pouco — Padre Hernando falou, fechando a bíblia.

— Não está se sentindo bem, padre?

— Estou. Gostaria de conversar com alguns moradores locais. Vamos colocar nosso trabalho em prática.

Miguel endireitou as costas.

— E o que estamos procurando?

— A Igreja recebeu relatos de alguns fiéis de Santillana del Mar. Colheitas se perdendo, animais mortos, crianças adoecendo. Nenhuma causa específica aparente. Quero ouvir da boca dos moradores o que eles têm a dizer sobre isso.

Miguel concordou. O cocheiro parou a carruagem e eles desceram. O sopro do ar era frio e queimava suas bochechas.

Eles circularam pelo vilarejo, cumprimentando as pessoas, trocando algumas palavras e benções. A maioria os agradecia com o sinal da cruz. Miguel não notou nada de estranho, mas continuou colhendo relatos e depoimentos. Pararam diante de uma casa, onde uma velha senhora embalava uma criança chorosa, com o rosto corado de febre.

— Ainda bem que vocês estão aqui. Deus não se esqueceu de nós — ela falou, olhando em volta como se alguém pudesse escutá-los. — Finalmente, estamos a salvo. Finalmente, o mal que espreita nossas terras será mandado para longe.

— O que está acontecendo aqui, minha boa senhora? — Com educação e respeito, Padre Hernando a tocou no ombro.

A mulher abraçou a criança, erguendo os olhos firmes e flamejantes.

— Serviçais do demônio.

— Perdão?

— Bruxas, padre — sussurrou; um sibilo frio do vento. — Bruxas.


**************


A inquietação acompanhou Miguel até os limites da grande residência da família Gonzalez.

Desceu da carruagem, ajudando padre Hernando com as malas, contemplando cada pedaço daquela terra que fora seu lar por tantos anos.

"Vá embora, Miguel. Vá para Madri. Procure padre Hernando. Junte-se a ele. E não volte para cá".

As pedras sem polimento davam forma à casa, com um telhado amplo, duas vertentes sobre a fachada principal, que ficava virada para o sol da manhã, um primeiro andar para as áreas comuns e um segundo andar para os quatros e banheiros. Se contornasse o terreno, sabia que encontraria as duas torres arredondadas de cada lado da casa e a balaustrada central que oferecia uma vista magnífica das montanhas.

— É uma bela residência — Padre Hernando comentou. — Você me disse que sua família tinha posses, mas não mencionou fortunas.

Miguel comprimiu a alça da bagagem. Era estranho estar novamente ali e saber que não encontraria sua mãe no jardim.

Ele se virou para o padre, o olhar caindo outra vez no crucifixo.

— Este crucifixo é novo, não é, padre Hernando?

— Sim. Foi um presente.

Miguel entreabriu os lábios para perguntar "um presente de quem?", mas a porta da casa se abriu antes que ele tivesse chance de falar ou de completar metade do caminho feito com pedras e flores.

— Miguel!

A imagem de sua avó encheu seus olhos. Apesar da idade e de todos os invernos que testemunhara, ela resplandecia boa saúde.

Abuelita — ele devolveu o cumprimento, abraçando-a.

— Então já temos um padre na família?

— Um quase padre — Miguel gracejou, lembrando das palavras de Anita. Era curioso como soavam divertidas nos lábios dela, enquanto nos seus pareciam um tropeço estranho. — Este Padre Hernando, que mencionei na carta.

— Muito obrigado por nos receber em sua casa, senhora Gonzalez.

— Esta casa é tanto minha quanto de Miguel. Entrem. Os criados já deixaram as lareiras acesas. Vocês adoecerão se ficarem aí no frio.

A avó os guiou para dentro, orientando-os a deixar as malas ao pé da escada, para que os criados as carregassem para cima. Miguel retirou o sobretudo, recebido pelo calor e pelo bule de chá sobre a mesa. Serviu-se de uma xícara. Ao provar um gole da bebida, sentiu o paladar reclamar; não estava ruim, mas não tinha o mesmo sabor do chá preparado por Anita.

E por que, pelos mistérios de Deus, estava pensando nela de novo?

Um quase padre não deveria ter uma garota de olhos cinzentos e hipnotizantes rondando sua mente com tanta frequência.

Talvez fosse a mudança de ar.

— Seu tio está vindo para cá.

As palavras da avó fizeram Miguel arquear as sobrancelhas. Fazia anos que mal tinha notícias do único tio e irmão de sua mãe.

— Quando tio Ramiro chegará?

— Em alguns dias. — Sua avó se movia de um lado para o outro, ligeiramente empolgada. — Organizaremos um grande baile, para receber a ele e a você.

Miguel fez uma careta.

— Isso não é necessário, vovó.

— Ora, meu neto "quase padre" veio me visitar e meu filho também está a caminho. Sabia que seu tio enriqueceu? É um senhor importante, que aprecia uma boa festa. Daremos um baile. O clã Gonzalez está unido outra vez. Mostraremos isso para Santillana del Mar.

Miguel preferiu não argumentar. Seria uma batalha perdida. Terminou o chá e deixou padre Hernando na companhia de sua avó, que o guiava até a grande biblioteca.

Sem apanhar o sobretudo, ele contornou a sala e atravessou as portas do fundo. O jardim traseiro não era tão majestoso quanto o jardim da frente, mas, sob a névoa e as cores pálidas da manhã, era o único lugar que podia mitigar um pouco da saudade que sentia de sua mãe.

"Vá embora, Miguel. Vá para Madri. Procure padre Hernando. Junte-se a ele. E não volte para cá".

— Por que, mamá? Por que, em seu leito de morte, você me pediu desesperadamente para deixar nossas terras e entrar para o seminário?

Não houve resposta; apenas o vento soprando redemoinhos de folhas secas aos seus pés.

Com as mãos frias enfiadas no bolso, Miguel se agachou sobre um canteiro de ervas daninhas.

Havia seis pedras entalhas com os nomes de seis meninos.

Os seis primeiros filhos que sua mãe tivera. Os seis filhos que haviam nascido mortos.

Ele era o sétimo filho. O único que sobrevivera.

Mal conhecera o pai, que falecera de pneumonia em seus primeiros anos de vida. A mãe, a avó e a imaginação de como seria ter tido seis irmãos fora tudo o que tivera na infância.

"Prometa-me, Miguel. Prometa-me que entrará no seminário".

Miguel se levantou, tirando as mãos do bolso e cruzando os braços.

Não era um homem que acreditava em destino, mas não conseguia parar de se questionar do motivo de ter aceitado subir na carruagem de padre Hernando e regressar para o norte em uma suposta missão sagrada.

Algo em seu íntimo, feito um chamado no ciciar do vento, o levara de volta à Santillana del Mar.

Talvez fosse mesmo a importante missão da Igreja, ou talvez fosse o luto não trabalhado.

Talvez.

Apenas talvez.

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SINOPSE

Após um atentado contra sua vida, a universitária Hadassa Antonelli, filha do maior advogado de Belo Horizonte, se vê obrigada a aceitar a presença constante do guarda-costas contratado por seu pai.

Renomado em sua área, o metódico e enigmático ex-militar Dimitri Alencar aceita o trabalho de ser segurança da única herdeira de uma poderosa família. Mas seu plano de estar perto dos Antonelli carrega um perigoso desejo de vingança.

Assim, em meio a uma convivência cheia de conflitos e faíscas, uma estranha ameaça faz com que Hadassa e Dimitri sejam forçados a se aproximarem ainda mais em busca de respostas, onde segredos e paixões podem tornar tudo ainda mais letal.

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