2 - Rosa da noite
O fogo, transformado em cinzas na lareira depois de horas sem ser reavivado, já não afastava mais o frio que enchia o salão da hospedaria.
Anita soltou um longo e cansado suspiro, deixando as toalhas limpas sobre o balcão. Olhou em volta, procurando pela irmã. Era tarefa de Isabel manter o fogo alimentado. As temperaturas da estação caíam sem piedade, e ninguém de sua família desejava que os hóspedes reclamassem do serviço oferecido.
Afinal, a hospedaria La Rosa de la Noche era o primeiro lugar que os viajantes procuravam quando chegavam a Santillana del Mar, o vilarejo onde nascera, crescera e jamais tivera a chance de sair em seus dezenove anos de vida. A boa reputação precisava ser mantida. E isso incluía salões quentes e ensopados fumegantes.
— Isabel? Isabel?
Inspirando fundo, Anita se voltou para as escadas, seus longos e escuros cabelos oscilando pelas costas a cada degrau que subia.
Encontrou a irmã em um dos quartos que não era designado para os hóspedes. Ela estava curvada sobre a bancada, onde vários cristais e pedras se espalhavam. Parecia estar lendo alguma coisa.
— O que está fazendo?
Isabel de um pulo, como se houvesse sido flagrada.
Aquilo despertou um pequeno sino nos sentidos de Anita.
— Ei! Esse é meu caderno de poesias, Isabel?!
— Você o esqueceu aqui — Isabel bradou, defensiva, estendendo o caderno para ela. — Achei que fossem as anotações da mamá sobre os tônicos novos.
— Você leu?! — Anita a fuzilou, as bochechas vermelhas, apertando o caderno contra o peito.
— Só algumas... São incríveis, Anita. E... Você não está brava comigo? Não está sentindo raiva de mim por ter mexido no caderno?
A vontade de brigar com a irmã mais velha se dissipou um pouco.
— Só consigo sentir o frio do salão. Mamãe e papai ficarão bravos se descobrirem que você deixou o fogo da lareira apagar.
Isabel torceu o rosto.
— Ah, madre mia! Me esqueci completamente! Você não pode cuidar disso para mim?
— Só porque sou a irmã mais nova, não significa que você pode ficar jogando suas tarefas para mim. — Anita apontou para a bancada. — Guarde isso. Você escutou o que mamãe nos disse ontem à noite. Nada de ficar chamando atenção enquanto ela não descobrir o que está acontecendo.
Isabel arqueou as sobrancelhas.
— Desde quando você é tão obediente?
— Desde que prometi que faria de tudo para me comportar e ser uma boa garota.
Fez-se um longo silêncio enquanto as duas irmãs se entreolhavam. E então, as duas estouraram em gargalhadas que não seriam vistas com bons olhos pelas mulheres mais velhas da vila.
— Vou fazer de conta que acredito. — Isabel piscou para ela, retomando o fôlego. — Reza a lenda que alguns hábitos jamais mudam. Tipo, cair em poços escuros e ser resgatada por um garoto bonito.
— De uma família que nossa família não gosta.
— Ainda assim, um garoto bonito.
Anita revirou os olhos, observando a irmã se afastar da bancada e deixar o quarto. Isabel era a única que sabia do que havia acontecido dez anos atrás, na noite em que ela se esgueirara furtivamente pelo terreno da família Gonzalez. E sempre a provocava com aquilo.
Como será que Miguel está?
Fazia anos que não o via, desde que ele deixara Santillana del Mar, após a morte da senhora Gonzalez. Escrevera algumas vezes para ele, mas a amizade não era encorajada por sua família. Tinha sempre que dar um jeito de enviar a carta às escondidas. Até que sua mãe descobriu e a proibiu.
Assim que ajudou Isabel a recolher as ervas e as pedras, trancou a porta do quarto e voltou para o andar térreo da hospedaria, mantendo o caderno de poesias comprimido junto ao peito. Ele era seu companheiro desde a infância, quando as palavras batiam em sua mente e pediam desesperadamente para serem escritas.
Olhou ao redor do salão.
Dois moradores do vilarejo, que tomavam o desjejum oferecido pela hospedaria a todos os hóspedes e residentes de Santillana del Mar, conversavam um com o outro, em um tom que ela podia escutar.
— Parece que o Perez perdeu a colheita também.
— Dios mío, o que está acontecendo com nossa terra? Meu vizinho disse que todo o gado adoeceu.
— E a mulher do Perez jura que viu uma sombra no terreno deles três noites atrás. Ela não sabia dizer se era de uma pessoa ou de um animal.
— Será que ela viu um vulto?
Os dois hóspedes estremeceram e fizeram o sinal da cruz.
Anita cruzou os braços ao atravessar as portas de madeira, buscando por um refúgio nas partes do fundo da hospedaria, onde somente as árvores farfalhantes eram suas testemunhas. A neblina se erguia em espirais, e o sol despertava uma luz pálida e fria.
Antes de continuar suas tarefas diárias, abriu o caderno de poesias, lendo em voz alta os últimos versos que tinha escrito na noite anterior.
— "Há quanto tempo espero, há quanto tempo na janela me debruço... Suspiro, penso, canto... Vento e água, em canção, em comunhão, soprem o que falta para meu coração".
Aquela poesia mais nova ainda precisava ser melhorada. Não que fosse mostrá-las para alguém. Mas gostava da perfeição em sua escrita e...
De súbito, um braço de vento se ergueu, fazendo seu xale voar.
Anita praguejou, fechando o caderno enquanto corria atrás do xale.
No céu, as nuvens se moviam com velocidade, como se ansiassem por descarregar uma carga elétrica que ainda não era percebida, mas que estava ali, apenas esperando seu momento para se revelar.
*************
A viagem do seminário de Madri até Santillana del Mar durou dias.
Miguel não queria ser ingrato ao convite feito pelo seu superior, mas já não aguentava mais aquela carruagem fornecida pela Igreja e o frio hostil que aumentava conforme avançavam para o norte.
Pararam em algumas casas para repousar, foram bem recebidos e alimentados pelos fiéis. Mas, conforme o caminho se tornava mais familiar em suas lembranças, uma agitação crescia em seu estômago.
Já fazia anos desde que deixara as raízes para trás e fora para o seminário, atendendo ao desejo final de sua mãe.
Era estranho estar de volta.
Tinha a impressão de que, assim que a carruagem atravessasse a névoa densa, ele voltaria a ser o garoto que um dia fora.
— Por que seu vilarejo é conhecido como vila das três mentiras? — padre Hernando indagou, arrancando-o de seus devaneios.
Miguel se ajeitou no banco da carruagem. O crucifixo que pendia do pescoço do padre balançava de um lado para o outro.
— Por causa do trocadilho que os viajantes fazem com o nome. Santillana del Mar não é santa, não é plana e nem tem mar. As praias mais próximas estão a dez quilômetros.
O vento aumentava do lado de fora, chacoalhando a carruagem.
— Você ainda tem familiares aqui?
— Apenas minha avó, que ainda vive na antiga residência da minha família, rodeada por bons empregados e bem cuidada. Escrevi sobre nossa vinda para cá. Ela se alegrou e disse que podemos ficar na casa quanto tempo for necessário.
— Muito gentil da parte dela.
Quando Miguel sentiu que tinham adentrado nas ruas de paralelepípedo, tocou a cortina de veludo da janela com a mão enluvada.
A noite havia caído do lado de fora, enegrecendo as construções de pedra cravadas no tempo e na memória.
Um raio cortou o céu, iluminando as sombras retorcidas de Santillana del Mar
Miguel arqueou as sobrancelhas.
— É impressão minha ou o tempo mudou subitamente?
— Não devemos contestar os mistérios de Deus.
Ele mordeu a língua, tentado a falar o que não deveria.
Antes que sua mão libertasse a cortina, uma água pesada já tinha começado a cair do céu.
Os cavalos relinchavam, as rodas ziguezagueavam pela rua.
O cocheiro bateu à porta.
— Padre, teremos que parar. Os cavalos não vão vencer essa água. Há uma hospedaria logo à frente, com estábulos e boa comida.
Padre Hernando olhou para Miguel.
— Estamos muito longe de sua residência?
— Um pouco. Ela fica do outro lado da vila.
— Então pararemos esta noite, e seguiremos viagem pela manhã.
Apanhando as malas, eles desceram. Miguel precisou proteger os olhos. Sentia-se no meio de um redemoinho de água e vento.
A hospedaria feita de pedras e madeira ficava do outro lado da rua, a placa emoldurada batendo às rajadas incontroláveis.
La Rosa de la Noche.
O nome familiar fez o sangue de Miguel esquentar e se esquecer por um momento das roupas encharcadas que se grudavam em seu corpo.
Quando ele empurrou a porta da hospedaria, um braço violento de vento se ergueu, acompanhado de trovões ribombantes.
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