Dia 05: Destino

Desejo, Dia 05: Destino

Jorge acordou com os raios solares incidindo diretamente sobre seu rosto através do vidro da janela. Incomodado, virou-se de forma instintiva para o lado oposto, buscando dormir mais... Porém logo se deu conta de que tinha de se levantar. Erguendo o tronco, conseguiu raciocinar melhor, esfregando os olhos... e estranhou o fato de não ouvir o toque do despertador do celular... Intrigado, apanhou o aparelho ao lado do colchão e fitou seu visor...

11:17

Droga! Havia perdido a hora! O despertador provavelmente fora acionado no horário previsto, mas o cansaço o impedira de se levantar! Não estava acostumado a andar tanto como no dia anterior, já que até então passara a maior parte de seus dias no conforto de sua casa, e assim seu corpo tivera de passar mais tempo em repouso do que o normal. Saco... Lá se ia uma manhã cujo tempo deveria ter sido gasto na procura de emprego...

Bufando, o calouro calçou seus chinelos e atravessou o corredor até o banheiro. Os demais quartos se encontravam com as portas fechadas – Baloo e Marcos tendo chegado tarde da festa e faltado à aula para dormir. Seria melhor fazer o mínimo de barulho para não acordá-los, principalmente o primeiro: a fúria de um urso retirado de sua hibernação poderia ser catastrófica...

Escovou os dentes, trocou de roupa e colocou a correntinha. Pretendia subir ao centro para almoçar, e passar as primeiras horas da tarde em busca de trabalho. Talvez descesse de volta ao apartamento para tomar banho mais tarde do que o planejado, visando compensar as horas da manhã perdidas dormindo... Ou teriam sido ganhas? De qualquer modo, Jorge tinha de reconhecer que precisava mesmo repor as energias, ou não teria disposição para seguir em sua demanda aquele dia. Antes passar uma metade dele descansando para poder aproveitar a outra, do que perder as duas em letargia. Morar sozinho realmente era fonte de aprendizado...

Trancou o apartamento e subiu determinado a avenida. Com persistência acabaria por conseguir o que tanto queria.

Almoçou no mesmo restaurante de antes; porém achou que talvez fosse proveitoso começar a variar, pois o cardápio, nas três vezes que comera ali, havia sido praticamente o mesmo. Concluindo a refeição e sentindo-se satisfeito, partiu então pelas imediações do centro em busca de lojas e outros estabelecimentos que ainda não houvesse visitado. Expandiu agora a área de busca, deslocando-se até a Avenida Major Nicácio, que também congregava vasto comércio. A impressão inicial em relação aos negociantes da cidade, no entanto, vinha se mantendo: de poucas palavras, não muito educados, e nada dispostos a empregarem unespianos. Não seria aquele dia que retornaria para a república empregado, ou ao menos com uma esperança mais sólida disso...

O lance mais interessante da tarde não tivera nada a ver com trabalho. Ao adentrar uma lanchonete, em dado momento, para beber um copo de suco – dada a imensa sede que o acometia devido a ter de andar no sol – Jorge, esperando junto ao balcão, acabou tendo sua atenção desviada para um aparelho de TV ligado numa parede, exibindo naquele momento um noticiário regional. Na tela surgiu uma repórter bonita que, tendo ao fundo uma espécie de fábrica, informou diante da câmera:

- Continuam as investigações da perícia sobre o provável vazamento de gás dentro de uma indústria de calçados em Franca esta madrugada. Os funcionários trabalhavam normalmente quando foram acometidos de repentinas tontura e fraqueza, perdendo a consciência instantes depois. Alguns, encontrando-se em estado mais grave, foram enviados para a UTI. Os proprietários da fábrica alegam que a infra-estrutura do local, vistoriada recentemente, estava em ordem, e as causas do incidente ainda devem ser apuradas.

Vazamento de gás? Mais uma coisa para ser somada aos assassinatos em via pública, campi antigos sinistros de universidades e corvos num ambiente divergente por completo de seu original. O que mais Franca poderia reservar àquele "bixo", que já não sabia bem se ter se mudado para ali era bom ou não?

Antes, entretanto, que começasse a dar razão à mãe, o jovem terminou seu suco, pagou e deixou o estabelecimento disposto a procurar encargo em mais alguns lugares antes de descer de volta ao apartamento. Aquela urbe parecia ser hostil e amedrontadora consigo... mas ele não se deixaria intimidar. Encontraria ali seu sucesso.

As demais horas de procura mostraram-se igualmente infrutíferas, e por volta das cinco e meia o rapaz, mais uma vez na república, tomava uma ducha para logo subir à faculdade. Apesar do horário um pouco apertado, decidiu levar um tempo a mais embaixo do chuveiro lavando a cabeça – ou seus cabelos logo sofreriam os primeiros efeitos da falta de tratamento. Isso só denotava como Jorge tinha apreço por aqueles fios, estando disposto a tudo para não serem raspados pelos veteranos.

Dando conta de que acabaria perdendo o ônibus, o estudante deixou o box com pressa, logo após desligar a água. Devido ao caráter descuidado de sua correria, acabou escorregando no piso molhado do banheiro, caindo de volta para o interior da estrutura... e resvalando dolorosamente um dos braços na pequena e fina maçaneta metálica da porta.

- Ai!

Caído dentro do cubículo, o chuveiro recém-desativado ainda liberando algumas gotas sobre si, o calouro olhou para as costas do membro, com o intuito de medir o estrago nele feito... Tratava-se de um comprido rasgo que, embora não muito aberto, ardia como nunca e liberava fios de sangue. Xingando mentalmente, Jorge botou-se de pé e dirigiu-se até a pia, abrindo o armarinho acima dela em busca de algo que pudesse usar para improvisar um curativo. Nada encontrou. Baloo poderia possuir esparadrapos no armário de seu banheiro, porém nenhum dos dois veteranos estava em casa e não seria bom mexer em suas coisas sem permissão. Conformado, o "bixo" estendeu uma mão até o rolo de papel higiênico ao lado do vaso sanitário, líquido rubro precipitando-se pelo chão no processo, e limpou a ferida como pôde, lavando-a também com sabão para não infeccionar. Reprovando-se mais e mais pelo crescente atraso, pegou a seguir suas roupas e a correntinha, até então deixada sobre a pia, e dirigiu-se rumo ao quarto. Antes de começar a se trocar, todavia, ao tocar sem perceber o pendente de couro do colar, notou algo bem estranho...

Ele estava quente.

Imaginando que poderia se tratar de um efeito causado pelo vapor liberado dentro do banheiro durante a ducha, apesar de não se lembrar de nada similar no dia anterior, Jorge vestiu-se, calçou velozmente os coturnos e, como um raio, deixou a república trancando a porta.

Chegando ao ponto, o ônibus acabara de encostar junto à calçada. Subiu correndo, levando ainda uma reprimenda do motorista para que não se atrasasse mais. Franca e seus serviços exemplares...

Quando deu por si, já descia em frente ao campus da Unesp.

A universidade parecia mais movimentada do que na noite anterior, provavelmente devido à chegada de mais alunos depois das férias e também de novos bixos. Como logrou ali chegar novamente às seis e meia, haveria tempo de sobra para jantar no R.U. e ainda relaxar um pouco antes do início da aula.

A refeição correu sem problemas, Jorge gradualmente se acostumando ao esquema do bandejão. A comida, no entanto, lhe pareceu mais plástica dessa vez do que antes. Talvez fosse uma característica que se mostrasse mais nítida conforme degustada pelo paladar... O suco, ao menos, estava melhor. O gosto lembrava laranja. E esse constituía seu sabor favorito.

Terminando de comer, o rapaz dirigiu-se diretamente ao bloco de salas. Faltavam ainda alguns minutos para a chegada do professor ou professora – isso se viesse – e achou que seria agradável tentar se entrosar com os colegas de turma enquanto isso. Na noite prévia não dialogara com ninguém – na verdade nem ao menos cumprimentara. Uma interação básica mostrava-se necessária; sem contar que, naquela nova etapa de sua vida, quanto mais amigos melhor.

Assim, deixou seu material em cima da mesma carteira em que sentara na aula anterior e, voltando para fora, aproximou-se de um grupo de bixos que conversavam. Eles abriram um espaço na rodinha para que o recém-chegado também participasse, sorrindo amistosamente.

- E você, como se chama? – indagou uma linda garota de cabelos castanhos e olhos azuis.

- Jorge! – replicou o "bixo" um pouco sem jeito.

- Bem-vindo! – acolheu um rapaz loiro de porte um tanto musculoso. – Sou o Hector. E essa é a Amélia.

- Eu sou o Geraldo! – apresentou-se um terceiro indivíduo, baixinho, de cabelo preto curto e óculos. – Prazer!

- O prazer é todo meu – afirmou Jorge olhando para o trio.

- Estávamos comentando sobre a aula de hoje – explicou Amélia. – A matéria será Metodologia da História, pura teoria. E o pessoal dos outros anos fala que a professora é um carrasco!

- É bem por aí... – murmurou Hector. – Meus veteranos só descem a lenha nela. Deixou metade do atual terceiro ano de dependência. Uma megera!

- Às vezes ela é assim por conta de todas as desgraças que aconteceram na vida dela, né? – cogitou Geraldo.

- Como assim? – inquiriu um intrigado Jorge.

- Ah, nós estávamos falando a respeito antes de você chegar... – disse a moça do grupo. – Essa professora é cadeirante, perdeu o movimento das pernas quando era nova. Além de ser cega de um olho e ter o corpo cheio de cicatrizes.

- Foi um acidente de carro, acho... – especulou o loiro.

- Que nada! – discordou o baixinho moreno. – Ela foi presa e torturada durante o regime militar! Um dos meus veteranos inclusive falou já ter visto a ficha dela do DOPS!

- Nossa, e eu ouvi que ela teria sido severamente espancada pelo ex-marido! – Amélia arregalou os olhos, impressionada diante da diversidade de relatos.

Jorge, assustado com tudo que escutava sobre a docente, perguntou após um breve instante silencioso:

- Como se chama essa professora?

- Não lembro bem, é um nome meio italiano... – resmungou Geraldo.

- Daniela – esclareceu Hector, voz firme. – Daniela Petruglia. Parece que ela pertence a uma das famílias mais tradicionais aqui de Franca.

Nisso, o fluxo dos demais alunos até então no corredor em direção ao interior da sala revelou que a dita professora havia chegado. Nenhum dos participantes da rodinha em que se inseria Jorge conseguiram notar a figura dela do lado de fora, optando por adentrar a classe como os demais e aguardar sentados sua aparição. Se ela fosse mesmo severa como diziam, todo cuidado era pouco. Ainda mais se soubesse que seus novos pupilos já a tinham como tema principal em suas conversas...

Passaram-se alguns segundos, todos atentos à porta do recinto... Até que uma cadeira de rodas surgiu, sendo impelida adentro por uma mulher idosa nela sentada. Na casa dos setenta anos, possuía cabelos grisalhos compridos e encaracolados que aqui e ali, surpreendentemente, ainda ostentavam alguns tons naturais de castanho. A face encontrava-se muito bem-cuidada, apesar de algumas rugas e do olho vazado que, constituindo órbita completamente cinza, contrastava tristemente com seu vizinho ainda portando uma brilhante pupila esverdeada. Os traços gerais de seu corpo levavam a crer ter sido linda moça quando jovem, seu corpo prejudicado apenas pelas várias cicatrizes que o cobriam, principalmente marcas de cortes. Estas se encontravam visíveis em seus braços, expostos devido à camiseta sem manga azul que usava, e em parte das pernas, abaixo de sua saia marrom. Os pés calçavam sapatos de salto alto pretos, e via-se algumas correntinhas presas ao seu pescoço e pulseiras em suas mãos.

Dirigindo-se para trás da mesa próxima à lousa, a docente girou a cadeira na direção dos estudantes, encarando-os por um momento com semblante extremamente sério. Seus ares, até o momento, confirmavam por completo as histórias tratando de si contadas há pouco no corredor. Cada um dos calouros, incluindo Jorge, sentia como se o olho intacto da professora o fitasse unicamente, fazendo-os se esquecer de todos os outros ao seu redor na sala e se retraírem com a sensação de serem avaliados sozinhos naquela matéria que apenas pelo nome já aparentava ser tão difícil. Até que, sem mais nem menos, Petruglia abriu um sorriso... ou algo que parecia um sorriso, e questionou à classe:

- Por que vocês prestaram este curso?

Silêncio sepulcral. Todos olhavam de forma fixa para a mulher, porém ninguém ousava responder, principalmente a uma pergunta por vezes tão complexa num período em que ainda titubeavam a respeito de insistir ou não naquela carreira. A ausência de falas se estendeu por quase um minuto, a docente não insistindo na indagação, até que uma garota de óculos sentada numa das primeiras carteiras respondeu:

- Porque é uma área que gosto muito, e não consigo me imaginar trabalhando com outra coisa.

- Bem, na sua idade eu jamais imaginava estar um dia aqui, diante de vocês, ministrando uma aula de Metodologia da História. A vida é cheia de surpresas, querida. De qualquer modo, você tem um ponto. Agora eu lhe faço outra pergunta: existe um período histórico que lhe chame mais atenção, cujo estudo lhe interesse mais?

Se a questão houvesse sido feita a Jorge, ele sem pestanejar replicaria "Idade Média". Era a desconhecida colega, no entanto, que se encontrava na berlinda. Nada deveria fazer, por enquanto, a não ser ouvir e observar...

- Acho que História Contemporânea – revelou a moça. – A partir da Revolução Francesa.

- Uma contemporanista! – a professora rotulou-a. – Pois bem. Então me diga, senhorita...

- Marília – a aluna informou seu nome.

- Certo, Marília. Você, gostando tanto assim de História Contemporânea, empolgando-se com a Marselhesa e os canhões de Verdun, descartaria as outras áreas de estudo da História? Acha sem importância pesquisar a respeito dos Césares ou a Acrópole de Atenas?

- De modo algum! Tudo tem sua importância na História.

- Ah, é? Pois alguns de seus colegas de paixão não pensam assim, minha cara. Neste exato momento, enquanto falo com vocês, há diversos projetos em andamento, tanto em universidades quanto no âmbito dos ensinos fundamental e médio, visando a alteração das grades curriculares para a remoção das matérias de História Antiga e Medieval. Propõe-se no lugar programas de estudo que se iniciem a partir do Renascimento e das Grandes Navegações, com o argumento de que a Antigüidade e o Medievo nada têm de relevante para nosso presente.

Diante da alegação de Petruglia, transmitida em grande parte num tom de desabafo, a sala assumiu postura de profundo espanto. Para aqueles recém-ingressos estudantes do curso de História a proposta descrita pela professora parecia absurda, porém ela sabia que ao longo dos quatro anos de graduação, com o perigo de aqueles alunos se fecharem em determinadas correntes teóricas e repudiarem tudo que fosse diferente delas, muitos poderiam acabar concordando com aquilo. Segundos mais tarde, a vivida educadora deu seguimento à sua exposição:

- Para quem não sabe, o próprio termo "História" vem do grego "ἱστορία", que significa "investigação" ou "conhecimento pela investigação"; utilizado pela primeira vez pelo filósofo Aristóteles em seu texto "História dos Animais", se já formos traduzir o título todo. Ele viveu entre os anos 384 e 322 antes de Cristo. Caso isso seja História Moderna ou Contemporânea, por favor, queiram me informar, pois estarei desatualizada.

A sala riu da ironia. E boa parte dos alunos, entre os quais Jorge, criava sincera admiração pela professora que até então se mostrava tão sábia e inteligente. Movendo-se um pouco com a cadeira em torno da mesa, disse em seguida:

- Para esta matéria e para este curso todo em si, desejo que vocês, baseando-se nesse exemplo que dei, tentem compreender a abrangência da História e como ela encontra-se atrelada a cada mínimo aspecto da existência de vocês, para que também possam vivenciá-la conforme a estudam. Entender que coisas do dia-a-dia como comentar com seus amigos que seu time de futebol ganhou mais títulos que os deles e postar fotos em sites de relacionamentos na Internet constituem ações de cunho histórico inegável, ainda que muitas vezes passem despercebidas. Juntos aprenderemos a estudar o passado, analisar suas fontes e não desmerecer qualquer tipo de método de análise. Aqui saberão de conceitos e técnicas importantíssimos que lhes servirão tanto para quando pesquisarem quanto para darem aulas.

E, após breve pausa, completou:

- Podemos começar?

Uma classe quase sem ar diante da majestosa fala da docente assentiu com a cabeça.

As horas passaram e Jorge nem percebeu – tão boa fora a aula. Para ele a mesma pareceu um todo contínuo, já que durante o intervalo a professora Petruglia permaneceu na sala batendo papo com os alunos sobre assuntos diversos, e por conta disso quase ninguém quis perambular pelos corredores ou ir embora mais cedo. A mulher só dava amostras e mais amostras do quanto era competente e perspicaz, sua matéria prometendo e muito. Era certo que exigia bastante das turmas: cobraria, ao longo do semestre, duas provas e uma apresentação de seminário – tudo valendo nota, que ao final seria dividida por três. Talvez viesse daí sua fama de carrasco, porém o "bixo", assim como a maior parte da classe, realmente não se importava. Num curso tão bom, justo seria estudarem ao máximo para terem o melhor aproveitamento possível.

O único problema decorrente da excelente exposição da docente foi sua grande duração: quando Jorge deu por si, ao final da aula, já eram vinte e duas e meia, e teria de esperar o ônibus das vinte e três horas para retornar à república, ao invés do circular das vinte e duas que pegara na noite anterior. Nada que importasse, no entanto – parando no mesmo ponto de antes, ele não precisaria andar muito até o prédio, evitando assim quaisquer perigos que a escuridão pudesse reservar. Ao menos assim esperava...

Deixando a sala, tomou um dos corredores do térreo do bloco rumo ao portão, quando esbarrou em alguém – justamente com o braço que machucara na porta do box mais cedo... O ferimento ardeu, Jorge soltou uma pequena exclamação de dor, e virou-se para ver em quem trombara...

Tinha de ser. Era o rapaz de terno e expressão arrogante que compunha alvo de sua antipatia desde a aula de História Medieval. Ele aparentava não ter gostado nem um pouco de colidir com o colega, fitando-o com o desdém que lhe era característico enquanto falava, passando os dedos de forma esnobe pela roupa com o intuito de limpá-la:

- Cuidado por onde anda...

- Irei ter! – o outro rebateu de maneira grossa, voltando a caminhar e evitando olhar para trás.

O sujeito só comprovava ser mesmo bem antipático. Jorge descobrira, quando a professora fez a chamada nos últimos minutos, o nome dele: Régis. Combinava perfeitamente bem com um sujeito que parecia ter um rei na barriga... Monarca o qual esperava poder ignorar até o final do curso.

Sentindo a brisa noturna contra seu corpo, refrescando-o de maneira agradável, o calouro avançou para fora da faculdade, apressando-se em atravessar a rua e sentar-se num dos bancos de metal e plástico do ponto de ônibus coberto.

Ali passou a esperar pelo transporte que o levaria de volta ao apartamento. Mais estudantes, aos poucos, aglomeraram-se junto à parada, conversando animados enquanto também aguardavam seus respectivos circulares. Já outros, pelas calçadas próximas, rumavam a pé até suas repúblicas – tratando-se do crescente número de unespianos que já se mudara para aquelas imediações. Alheio às falas de terceiros e outros sons ao redor, Jorge, sentado distraído, pensava em todos os vários acontecimentos que já lhe haviam ocorrido em tão pouco tempo vivendo em Franca. Era incrível quantas coisas aprendera e a quantidade de desventuras e eventos estranhos pelos quais passara; vários deles provavelmente nunca sendo compreendidos por si – ou ao menos assim acreditava. Convencia-se cada vez mais de que não haviam passado de devaneios de uma mente ansiosa e preocupada diante de todos os novos desafios que se desenhavam diante de si. Junto a esses obstáculos, todavia, também despontavam oportunidades de se empreender conquistas, sendo isso que mais tranqüilizava o garoto...

Um ônibus encostou, mas rumava para o terminal no centro – não era o que Jorge pegaria. Metade do local se esvaziou, os alunos subindo no veículo ainda a conversarem e o mesmo, lotado, contornando a rotatória em frente ao campus e desaparecendo na rua clareada esparsamente pela luz de postes. Ainda pensativo, até a voz estridente de uma menina que fofocava com uma amiga ao seu lado não conseguindo desviar sua atenção, o calouro passou a refletir sobre as coisas e pessoas que deixara em sua cidade natal... Sua emotiva mãe, o pai misterioso, os amigos... Cíntia... Sentiu borboletas no estômago ao lembrar-se da garota, um sorriso involuntário brotando em seu rosto. Nunca namorara a sério antes, e talvez a primeira oportunidade para isso estivesse surgindo, mesmo que atrapalhada pela distância entre os dois... Valeria a pena tentar. Aquela moça era um sonho para si, e lutaria por ela se preciso fosse...

Mais um circular – este fazendo uma rota diferente em direção ao centro, porém não passando pela Avenida Alonso y Alonso. Também não era o que Jorge aguardava. Mais estudantes subiram no transporte, este se foi... E, subitamente, o "bixo" viu-se sozinho no ponto. Aliás, sozinho numa boa área, já que as calçadas próximas encontravam-se todas vazias e ninguém tampouco transitava pelas imediações do portão da Unesp, fosse pelo lado de dentro ou de fora. Até mesmo os carros percorriam as vias adjacentes numa freqüência cada vez menor, o clarão de seus faróis e o ruído de seus motores rareando...

Jorge olhou para o relógio de seu celular: vinte e três horas e trinta e dois minutos. O tempo passava rápido, e nem sinal do ônibus. Começava a se arrepender de não ter pegado os anteriores e andado um pouco mais até a república... Por certo os calçadões e praças do centro não estariam tão vazios quanto aquela parte mais isolada da cidade. Seus temores pareceram ser endossados pelo clima quando a brisa noturna tornou-se mais fria, chegando a ficar gelada. Num movimento instintivo, o rapaz depositou seu material sobre o banco e abraçou o próprio tronco, tremendo ligeiramente. Maldito circular... Por que tanta demora? Será que o último a percorrer a linha desejada passava ali às vinte e duas horas, e agora só voltaria na manhã seguinte? Receoso, quase aflito, Jorge já pensava até em tentar voltar andando para o prédio, julgando não errar o caminho devido aos pontos de referência que já memorizara...

Ergueu então os olhos para o céu estrelado. As constelações encontravam-se bem visíveis àquela noite. Procurando se distrair identificando-as enquanto o transporte não chegava, pôde delinear claramente o Cruzeiro do Sul e o planeta Júpiter com seu brilho amarelado. Baixou então a visão para a altura da rua, e seus medos começaram a brincar com suas percepções, como sempre costumam fazer com os humanos que se encontram sozinhos perante as sombras. Em meio a elas o calouro começou a discernir contornos macabros, silhuetas assustadoras. Garras espectrais pareciam se projetar das paredes das casas visando agarrar auras esqueléticas esguias que se arrastavam junto aos meio-fios. Um complô imaginário aparentava se unir para cercar e subjugar o pobre Jorge, quando um barulho alto e totalmente inesperado fez, de susto, seu coração bater tão forte a ponto de quase explodir dentro do peito:

FFFFFFUUUUUUÓÓÓÓÓÓÓNNNNN!

Em primeira instância achou se tratar da incômoda e indiscreta buzina de um caminhão passando pela avenida, porém – por mais estranho que pudesse parecer – o som viera do telhado de uma construção ao lado do terreno baldio em que se situava o ponto de ônibus. Alguém tocando um berrante? Àquela hora da noite? Trêmulo, tomado pelo temor antecipado do que veria na direção indicada, Jorge para lá voltou suas pupilas... estremecendo.

Havia um vulto claramente humano em cima do pequeno prédio, mas não aparentava, ao menos de longe, vestir trajes considerados normais. De pé, elevada estatura, erguia algo em sua mão direita, que há pouco soprara com a boca... Uma espécie de corneta? Nisso o garoto já era atormentado por uma incrível vontade de correr, porém a curiosidade selou grilhões em torno de seus braços e pernas. Teria de permanecer ali, sentado, para constatar quem era a misteriosa pessoa.

De repente a silhueta saltou do telhado... caindo de pé sobre o chão de terra do descampado sem aparentemente nada sofrer. Aquilo por si só já era espantoso, pois mesmo uma pessoa com anos de prática correria sérios riscos de sofrer lesões caso pulasse de uma altura daquela – que não era pouca. Quando suas pernas tocaram o solo, um ruído estranho ecoou pelos arredores... Uma batida metálica. O indivíduo pôs-se então a caminhar numa pose imponente rumo à parada de circular – Jorge suando frio – enquanto o mesmo som férreo se repetia a cada passo que efetuava. Sob a luz das estrelas, da lua e dos postes, finalmente, os detalhes do pitoresco personagem tornaram-se nítidos...

O rapaz, não muito mais velho que o estudante, tinha cabelos castanhos curtos bem-cortados, numa forma que lembrava alguém alistado em severo regimento militar. A pele era muito clara, e a face de traços finos englobava um par de olhos azuis. O corpo, forte e bem-proporcionado, encontrava-se revestido... por uma armadura medieval. Pesada à primeira vista, mas que na prática não parecia atrapalhar em nada os movimentos de seu portador, fora esculpida no mais puro metal e possuía, aparentemente, numerosos detalhes em ouro e prata – entre os quais insígnias e emblemas de tempos passados. Na mão direita carregava a corneta anteriormente observada, agora sendo possível perceber que fora talhada, por mãos hábeis, no suposto chifre de algum tipo de animal. Jorge sabia o que era aquilo: um "olifante", instrumento sonoro da Idade Média feito geralmente do marfim de elefantes – daí vindo seu nome. À cintura, o desconhecido trazia uma extensa bainha por cuja extremidade superior se revelava o cabo dourado e incrustado de jóias de uma espada. Foi esta que, ao mesmo tempo em que guardava a corneta, apanhou com sua outra mão, a lâmina afiadíssima refletindo o brilho sobre ela lançado pelos astros celestes e a iluminação pública da rua.

Estacado, o garoto perguntou-se se a festa daquela segunda noite da Semana do Bixo era à fantasia, ou se aquela aparição fazia parte de algum tipo de trote. Num pensamento absurdo causado pelo desespero, aguardava que Baloo e Marcos saíssem rindo de trás de algum muro ou árvore para zoar com sua cara... Mas ninguém mais veio. E o espadachim, com semblante sério, só chegava mais perto com sua arma em punho.

- Q-quem é você? – balbuciou Jorge, ainda imóvel.

- Ah, vai ser mesmo mais fácil do que a mademoiselle disse que seria! – afirmou o desconhecido com um forte sotaque que o estudante sabia provir da França, graças aos filmes épicos que já assistira.

E, sem mais nada dizer... O suposto cavaleiro ergueu seu sabre... investindo-o em seguida com toda força contra o "bixo".

Este, graças a seus reflexos mais ou menos apurados, conseguiu escapar do ataque se jogando para frente – o fato de já aguardar uma ação hostil, é claro, também o tendo favorecido. Jorge caiu de barriga sobre o asfalto, soltando um gemido de dor enquanto constatava que ralara os joelhos. Temendo por sua vida, coração frenético, o jovem rolou sobre o próprio tronco, voltando a cabeça para cima... E, erguendo de leve o pescoço, viu que o encosto do assento ao qual estava até então acomodado se encontrava agora partido em dois – a lâmina da espada do agressor, já livre, preparada para mais um golpe.

- Pare! – berrou o rapaz, desnorteado. – O que eu te fiz?

- Você é oponente da mademoiselle, por isso tem de morrer também!

A arma voltou a singrar o ar noturno rumo ao corpo de Jorge... que conseguiu girar novamente pela rua e assim se desviar, a lâmina colidindo com o asfalto num estalido metálico. Botou-se então de pé o mais rápido que pôde, suas pernas ardendo – mas tinha de ignorar. Tentou correr, porém tropeçou devido à fraqueza nos membros inferiores. Pousando mais uma vez de barriga sobre a via, ralando agora o queixo e rasgando parte da camisa, conseguiu ouvir os passos apressados do adversário atrás de si, desejando aproveitar o momento para um ataque fatal...

Rolou de novo pelo asfalto...

E o sabre, errando o alvo, tornou a bater contra ele.

Bufando, o calouro ergueu-se novamente. O cavaleiro, todavia, encontrava-se perto o suficiente de si para atingi-lo com a lâmina ao mínimo descuido que cometesse. Foi assim que, numa idéia insana, mas que julgou favorável à sua sobrevivência, Jorge, de pé, se voltou para o inimigo, encarando-o enquanto recuava andando de costas através da rua. Urrando, o atacante manuseou a espada mais uma vez, e outra, visando rasgar o peito do estudante. Este saltou para trás nas duas investidas, a arma passando a poucos centímetros de sua roupa e deixando, pelo ar, um breve rastro luminoso. O terceiro ataque, no entanto, foi direcionado à sua cabeça. Conseguiu se esquivar no último instante... mas logo depois fios de cabelo caíram lentamente ao redor. Uma mecha de sua preciosa cabeleira fora arrancada pela lâmina do francês.

- Droga! – bradou o frustrado calouro.

Cada vez mais enfurecido, o agressor aumentava a intensidade de suas investidas contra o garoto. A rapidez com que manejava a espada após cada desvio de Jorge era espantosa. Chegava, na verdade, às vias do sobre-humano. Como aquele sujeito podia fazer aquilo?

Acabaram atravessando a rua inteira, chegando à outra calçada sem que o cavaleiro houvesse conseguido infligir qualquer ferimento no estudante com seu sabre. O agredido, no entanto, ficava sem fôlego; e logo, sorte e um desesperado ímpeto de manter-se vivo não mais bastariam para ludibriar o habilidoso oponente. Este se posicionou para mais uma investida que buscava dessa vez amputar as duas pernas do garoto, quando um par de faróis iluminou, subitamente, a via... O som de uma intensa freada fazendo doer os ouvidos do "bixo"...

Um volume veloz, colidindo violentamente com o espadachim, que então estava fora da calçada... arremessou-o vários metros adiante pela rua.

Enchendo os pulmões de ar, músculos ainda estalando de tensão, Jorge viu surgir à sua frente um carro preto, modelo do ano. A janela do assento ao lado do motorista se retraiu automaticamente para o interior da porta... tornando visível, junto ao volante, um rosto familiar: a professora Daniela Petruglia.

- Entre! – ela exclamou, enérgica.

- Senhora, eu...

- Entre logo, vamos!

O rapaz lançou um olhar para a direção em que o cavaleiro voara: tendo aterrissado da pior forma possível em cima do asfalto, a figura, manifestando mais uma vez resistência fora do comum, já se levantava usando sua espada como apoio. Logo estaria pronta para tornar a atacar...

- Certo! – anuiu Jorge, deixando imediatamente de hesitar e acomodando-se no veículo ao lado da docente.

Cantando pneus, a mulher tornou a acelerar – fazendo-o por meio do sistema do qual o automóvel era dotado para que não necessitasse mover as pernas para isso. Avançaram pela rua numa velocidade por certo acima do permitido, mas àquela altura o calouro acreditava que nem a polícia seria capaz de fazer algo contra um sujeito como aquele. Percorreram o quarteirão, chegando ao ponto em que o cavaleiro caíra... e nada mais viram. Teria ido embora?

TUMP!

O baque viera de cima do carro.

- Que foi isso? – inquiriu o garoto, amedrontado.

- Maldito! – praguejou Petruglia, olhos atentos à direção. – Ele saltou em cima de nós!

Mal terminou a frase, a lâmina da espada do agressor atravessou o teto do automóvel, descendo pelo espaço existente entre os dois assentos. Em seguida foi retirada, passos sendo ouvidos acima do veículo enquanto o inimigo preparava mais um ataque. Cerrando os dentes, Daniela passou a girar o volante para lá e para cá, mergulhando o carro num zigue-zague frenético pela rua na tentativa de se livrar do elemento indesejável. Jorge, sem cinto de segurança, teve de se agarrar ao painel para não ser ele aquele que acabaria arremessado para fora. O estratagema, porém, aparentou não surtir efeito, quando mais um buraco foi aberto no teto pela espada, que por pouco não foi cravada no crânio da professora – esta, ágil, logrando abaixar a cabeça a tempo.

A rua transformou-se em descida... O veículo aumentou ainda mais sua velocidade... O zigue-zague continuando...

O sabre rompeu a cobertura do automóvel pela terceira vez, agora em cima de Jorge. O infeliz rapaz, pego desprevenido, não pôde desviar...

- Ahhhhhh!

A lâmina da espada recuou logo em seguida... embebida em sangue. O líquido vermelho também foi espirrado sobre Petruglia, além dos assentos e do painel... Quase desmaiando de dor, o estudante levou uma das mãos à parte direita da cabeça, junto à testa... Olhando brevemente para o câmbio entre os dois bancos, a motorista enxergou algo próximo dele que parecia uma concha cartilaginosa... Uma das orelhas do rapaz, decepada.

- Não se preocupe, em casa cuidaremos disso! – ela tentou tranqüilizá-lo. – Até lá, apenas agüente a dor!

Ele não teve opção senão concordar num gesto.

Estavam chegando ao final da via, que terminava num pequeno largo cortado por um córrego. Avenida Dr. Hélio Palermo, uma das artérias da cidade.

- Segure-se! – alertou Daniela.

Quando a lâmina da arma ia perfurar novamente o teto do carro, a professora freou de forma brusca, Jorge vendo-se mais uma vez obrigado a se agarrar onde conseguisse...

E um vulto, voando de cima do veículo, foi lançado feito um bloco de concreto para dentro do curso d'água, sua armadura colidindo com uma das muretas, em meio a um gemido, antes de despencar de barriga sobre o fundo pedregoso. Petruglia achou melhor não esperar para conferir o estrago: rasgando mais uma vez pela noite, direcionou o carro rumo ao centro, tomando uma rua que desembocava na avenida e subia pela colina.

Em seu assento, Jorge via-se quase em estado de choque. Zonzo, vista embaçada, ferimentos doendo como nunca e sangue a empapar-lhe os cabelos e os dedos que ainda protegiam o ouvido. Que frenesi! Que diabos havia sido tudo aquilo? Por um momento julgou estar sonhando, preso dentro de um baita pesadelo. Mas não, era tudo bem real – principalmente as pontadas dos machucados. Fitou a professora: dirigindo atenta, não parecia nem sequer ter se abalado. Envolvido pelo vento do início de madrugada que adentrava o carro através dos furos em seu teto, resolveu indagar a Petruglia, a qual aparentemente sabia mais do que si:

- Você poderia me explicar o que acabou de acontecer?

A mulher suspirou, como se tivesse dificuldade em encontrar as palavras certas para responder. De fato, era bem difícil imaginar explicações plausíveis para cada uma das nuances bizarras que os últimos minutos haviam possuído.

- Você acredita em magia? – Daniela acabou, por fim, replicando com outra pergunta.

- Como assim? – Jorge estranhou o questionamento. – Quer dizer coisas como tirar um coelho da cartola?

Continuando a dirigir, a docente deu um meio-sorriso. Seria uma longa noite...

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