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Eu já amei o natal, mas isso foi há muito tempo. Numa outra vida.
Havia uma época, essa muito distante, em que eu contava os dias para dezembro chegar, quando ele enfim dava as caras, eu saltava da cama pronta para montar a árvore natalina no terraço da nossa antiga casa.
Era pequena, eu me lembro, mas enfeita-lá enchia-me de alegria.
O natal também era uma data especial para dona Helena. Minha mãe costumava gastar todo o seu décimo terceiro para comprar o peru e todos os ingredientes para uma receita especial. Passava o dia inteiro cozinhando, mesmo sendo apenas nós duas.
Éramos felizes naquele tempo, muito mais do que sou hoje. Admito.
Quando minha mãe morreu, a felicidade em ver o natal chegar diluiu-se, tornou-se amarga; uma lembrança dura de uma vida vivida. Tudo o que restava era saudades.
Hoje eu tinha uma casa enorme, dinheiro o suficiente para enfeitá-la com luzes natalinas até o teto; Hugo havia comprado uma árvore de natal gigantesca para colocar na sala, passou a manhã inteira a enfeitando para a noite natalina.
Eu limitei-me a apenas observá-lo brincar com as bolinhas de natal e o pisca-pisca. Quando ele olhava para mim com o olhar que dizia estar me chamando para participar da diversão, eu me limitava a um sorriso gentil e uma desculpa qualquer.
Ainda era difícil para mim, eu esperava mesmo que Hugo entendesse. Esse seria o meu primeiro natal de verdade sem a minha mãe, o último passei anestesiada com remédios e analgesicos numa clínica de reabilitação, quando acordei o natal já havia passado.
No hospital eles não costumavam enfeitar os corredores ou montar uma árvore. Os dias eram quase todos iguais.
Hugo e sua família não eram tão adeptos às tradições natalinas quanto minha mãe e eu éramos, talvez graças à descendência judaica do pai de Hugo (apesar de, hoje em dia, eles não seguirem mais a religião).
Hugo começou a adorar o natal quando se envolveu comigo. Diferente da minha família, a tradição natalina dos Cassius consistia em um jantar sem graça para toda à família.
Um jantar que à primeira vista poderia parecer comum entre membros de famílias ao redor do mundo, mas para os Cassius era uma oportunidade para fechar acordos e fazer negócios.
Exatamente tudo era frio e cinzento, não se ouvia sorrisos verdadeiros ou conversas minimamente interessantes e comiam pouco, mesmo numa mesa farta.
Os membros da família Cassius e seus convidados passavam praticamente a noite de natal inteira com uma taça de vinho ou champanhe na mão e beliscando poucas porções do que os garçons traziam.
Hugo e eu chegamos quase três horas atrasados para aquele jantar. Havia iniciado às 19 horas, chegamos um pouco depois das 22hrs.
Meu atraso foi proposital, mesmo eu dando, diversas vezes a desculpa para Hugo de que não sairia quando o meu cabelo estivesse perfeito.
Mudei o penteado umas oito vezes, só para no fim escolher aquele que havia deixado antes de começar a tentar me atrasar. Hugo já estava impaciente no carro, buzinando sem parar.
Atrasar... Ou melhor: Decepcionar o pai, era uma falta grave no relacionamento de Hugo com Kriudis. Bufou algumas vezes enquanto tentava manter a atenção na estrada.
Hugo estava tenso, eu sentia aquilo. Seu nervosismo vinha do fato de que agora ele estava trabalhando ao lado do pai.
Os tios com certeza iriam morrer de orgulho, Hugo havia finalmente se tornado um Cassius. Agora era um homem de verdade.
Chegamos na portaria do condomínio de seus pais. O porteiro já nos conhecia, por isso entramos sem precisar de toda a formalidade.
Hugo estava suando por baixo do traje esportivo fino que vestia. Eu escolhi um vestido tomara-que-caia preto e vermelho, meus decotes estavam espremidos; um cordão de pérolas enfeitava o meu pescoço e, logicamente, em meus lábios estava o batom vermelho sangue da minha linha Fatal!
- Então, recapitulando, ok? - ele estacionou o carro, puxou o freio de mão, tirou o sinto e virou os olhos para me encontrar - O tio Saulo vai estar no jantar, então já sabe, não é?
- Nada de falar sobre a empresa dele - eu murmurei.
Hugo estava realmente preocupado com aquilo. Saulo, o seu tio por parte de pai, fora pego num esquema de fraude no ano passado. A empresa foi forçada a falência e Saulo fora proibido de abrir ou participar de uma nova sociedade empresarial pela junta comercial do Brasil.
- Papai o quer na Valentine - Hugo saltou do carro - Então não vamos constrangê-lo, certo?
Eu apenas acenei.
O apartamento do casal de dementadores ficava no oitavo andar. Mudaram-se para aquele condomínio quase dez meses depois que Hugo e eu começamos a morar juntos.
A desculpa dada por eles para abandonar o casarão que tinham num bairro luxuoso fora a saudade de Cirlene e a incapacidade deles de viverem longe do filho.
Não é segredo para ninguém que o meu maior medo era de que Cirlene acabasse comprando uma casa no nosso novo condomínio, aproveitando-se da mesma desculpa.
Ouvia-se o barulho de música clássica tocando mesmo com a porta fechada, foi uma das empregadas que veio nos atender. Hugo entrou primeiro, alguém gritou o seu nome e veio abraçá-lo, quando entrei na casa a tia Maria já havia entrelaçado os seus braços rechonchudos no corpo de Hugo.
- Laurinha, meu amor, você está perfeita! - ela também veio me abraçar.
A falsidade era um dos principais requisitos para fazer parte da família Cassius, então não fiquei surpresa ao ouvir a chuva de elogios recebidos, os sorrisos alegres e os abraços acalorados.
Metade das pessoas naquela sala falavam mal de mim em algum momento de suas vidas.
Hugo tinha quatro tios por parte de pai e mais dois por parte de mãe. Todos tão parecidos que eram facilmente confundidos.
Caucasianos, altos e com olhos coloridos, sempre cochichavam algo em idiomas diferentes cujo eu não compreendia.
Os olhares eram, em sua maioria das vezes, atravessados para mim.
Além dos tios, Hugo possuía quatro primos, três deles por parte de seu pai e meia dúzia de primos-sobrinhos, onde o mais velho deveria ter uns doze anos e o mais novo pouco mais de seis meses.
E toda a família encontrava-se ali, pai, mãe, tios, primos, sobrinhos e cônjuges de seus primos, sorrindo para mim enquanto parabenizavam Hugo pelo noivado recente.
Nos eventos dos Cassius eu passava o tempo todo afastada de todos, geralmente num canto qualquer da casa ou brincando com as crianças. Elas eram mais singelas, não tinham uma película de falsidade encobrindo quem realmente eram.
E se não gostavam de mim, falavam, pois não eram tão bons quanto os seus pais em mentir.
Assim que chegamos e cumprimentamos a todos, Hugo foi-se enfiar no meio do grupo de homens da família. O seu pai sorria orgulhosamente do filho que seguia os seus passos e Hugo devolvia o sorriso, um tanto envergonhado, um tanto constrangido.
Assim que entrou na roda foi recebido com tapinhas nas costas e aperto de mãos.
Fui para a varanda, longe do barulho e da falação. Inclinei-me no parapeito e olhei a vista do condomínio.
Era a minha vista favorita, se olhasse para a esquerda poderia ver o terraço do apartamento onde Hugo e eu moravamos. Estava escuro e a vidraça da varanda estava fechada, por isso não pude ver o que havia lá dentro.
- Cuidado, querida, é alto demais.
Ouvi uma voz e virei na direção dela, Margutti, irmã de Cirlene. Aproximou-se do parapeito só para olhar a queda.
Ela tinha um vestido verde mar com brilhantes, segurava uma taça de champanhe. Loira e rechonchuda, tal como a irmã, tão baixa quanto. Olhou para baixo, depois para mim e sorriu.
- Inclinada do jeito que estava, poderia acabar caindo - ela disse - A música está alta, as crianças gritando muito. Ninguém iria te ouvir gritar. Ninguém saberia quando exatamente você se espatifou.
- Eu tinha apoio para voltar - disse, voltando os olhos para o interior do apartamento - Não iria cair.
Senti que Margutti ainda me encarava. Sentia que ainda mantinha aquele sorriso no rosto.
- É bom te ver tão... Como posso dizer? Saudável - ela deslizou os dedos gelados em meu braço - As coisas horríveis que ouvi sobre você, imaginei que estivesse mais acabada.
- Já faz tempo. Eu estou bem.
Me afastei do seu toque delicadamente, esperando que ela não notasse o meu desconforto.
- Está. Eu vejo que está - ela usou um tom de voz que dizia estar mentindo - E como foi a sensação?
Finalmente virei o rosto para ela. Um longo silêncio caiu naquela varanda.
- Você sabe? De quase morrer? Me pergunto quase sempre o que teria acontecido com o meu sobrinho se você tivesse ido. Como ele estaria hoje.
- Eu tento não pensar sobre isso, Dona Margutti.
- Ele é um menino forte - ela tinha os olhos fixos em Hugo - Iria se recuperar. Hoje, provavelmente, estaria bem... Bem melhor. Feliz. Teria te esquecido. Acredito que estaria com uma nova namorada. Uma boa...
Hugo deve ter sentido o olhar que ela estava lhe lançando, pois olhou em nossa direção, espremeu o sorriso, passou a mão pelos cabelos e veio até nós.
- Tia, amor, o que fazem aqui? Tá tão frio hoje.
Margutti sorriu para ele.
- Laurinha e eu só estávamos conversando, querido - ela se afastou - A noite está maravilhosa. Vou pegar mais champanhe. Vai querer, Laura? Não tá bebendo nada.
E ela entrou, sem sequer esperar uma resposta.
Hugo manteve-se parado onde estava, olhando a tia se afastar. Quando Margutti entreteu-se com uma bandeja de canapés posta em sua frente, Hugo virou-se para mim.
- Você está bem?
Eu confirmo com a cabeça.
- Só estou vendo a noite - disse - As estrelas estão lindas.
Ele olhou para cima, chegou perto do parapeito e olhou para baixo, depois disso olhou para mim.
- Quase tão lindas quanto você - ergueu a mão e acariciou a minha bochecha - Mas eu quero você lá dentro, tá? E não aqui fora. Sozinha.
Eu não queria entrar. Ouvir as suas tias fofocando me fazia revirar os olhos, mesmo tentando não parecer óbvio, o movimento tornava-se quase um espasmo involuntário.
Também haviam as esposas de seus primos, que eram tão fúteis quanto as megeras do Paraíso Parque.
- Não quero ficar com a sua mãe e as suas tias - eu fui sincera - Eu quero ficar com você, Hugo.
Eu o abracei pela cintura, encostando a cabeça em seu peito. Se não fosse pela roupa que ele vestia, provavelmente teria ouvido o seu coração batendo.
Hugo sorriu, envolveu meus ombros em seus braços e me beijou na testa.
- Só tem homens onde estou - ele disse - E a conversa não deve te agradar.
- Ainda assim deve ser melhor do que aquilo - apontei para as mulheres fofocando numa roda.
Nos separamos, ele jogou o braço por cima dos meus ombros e me guiou para dentro, não me levou para a mesa das mulheres, mas também não fui levada para a rodinha de homens.
Sentou-se no sofá com as crianças e abriu espaço para que eu sentasse ao seu lado. Três crianças saltaram sobre ele, uma delas agarrou forte o seu pescoço e uma das gêmeas escalou o sofá com uma agilidade emocionante, só para dar um salto triunfante nas costas de Hugo.
Hugo gritou, numa emoção imbuída pela gargalhada que ele e as crianças tinham. Saltou do sofá e rolou pelo carpete de um lado a outro, enquanto a gêmea que faltava unia-se à festa, somando as suas forças com as dos outros para manter Hugo no chão.
Hugo sempre foi bom com crianças, nunca tive dúvidas quanto a isso. O sonho de ser pai nunca foi recente, ele citava nomes para futuros filhos desde o nosso primeiro ano de namoro.
Queria que seu primogênito fosse um menino, mas se viesse uma menina ele não reclamaria. Quando me perguntava o que eu queria, sempre dei de ombros.
Meu plano era engravidar depois dos 35, já Hugo queria estar no seu quarto filho quando estivesse com essa idade.
A ideia me deixou aterrorizada. Hugo queria ter no mínimo seis filhos, tinha recursos e dinheiro para tanto, mas depois de muita conversa, negação minha e teimosia dele, concordamos que 3 crianças bastavam.
Um filho era pouco para ele, talvez pelo fato de ser filho único. Nunca gostou da solidão e do vazio que era não compartilhar seus brinquedos com alguém.
Eu já tive uma irmã mais velha. Eloisy tinha 22 anos quando foi atropelada enquanto voltava da faculdade. Na época eu tinha apenas dez, mas lembro-me do desespero no olhar de minha mãe quando recebeu a notícia.
Eloisy passou 42 dias no hospital, em coma. Não havia expectativas para que viesse a acordar e mesmo se, milagrosamente, acordasse, não havia esperanças de uma vida normal.
No quadragésimo segundo dia os médicos declararam morte cerebral, e os aparelhos foram desligados.
Aquilo destruiu a minha família.
Foi a desculpa perfeita para o meu pai abandonar minha mãe, dizendo que ela era uma péssima mãe.
Nos trocou por uma mulher bem mais nova, com quem teve outras duas filhas, esquecendo da minha existência. Até que eu comecei a fazer sucesso na internet e ele voltou com falsos sorrisos e elogios.
Do dia para a noite tornei-me a sua filha favorita.
Hugo o expulsou algumas vezes do hospital enquanto eu estava doente. Lembro-me das discussões acaloradas nos corredores e de Hugo chamando os seguranças para ele.
Encolhi na poltrona sem perceber.
Agora estava triste, triste e com raiva. A sensação de solidão me atingiu como um raio. Tudo o que eu queria agora era estar com minha mãe, receber um abraço quente de verdade e palavras de amor que realmente significariam algo.
- Meia-noite - alguém disse no meio da sala - Cadê todo mundo? Vamos tirar uma foto!
As crianças correram até seus pais. Hugo ainda estava deitado no chão, ofegante, me encarou e lançou-me um sorriso amável. Eu devolvi o seu sorriso, estendi a mão e o ajudei a levantar.
- Você está bem mesmo? - me perguntou.
Eu confirmei com a cabeça.
- Pensando na minha irmã e, consequentemente, no meu pai.
Hugo me puxou para mais perto, beijou meus lábios e me abraçou por um bom tempo.
O calor foi bom, revigorante. Ficamos assim até eu me sentir segura novamente.
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