26. O Autor
Regina encontrava-se em uma sala de paredes graciosamente brancas e iluminadas, com uma única e pequena janela retangular ao seu lado direito, oferecendo uma visão deslumbrante do mundo além das nuvens. Uma mesa de madeira de tamanho moderado ocupava o centro da sala, enquanto um espelho misterioso cobria um terço da parede lateral, refletindo sua própria imagem. No entanto, não havia sinal de vida além dela mesma naquele ambiente solitário.
Incredulidade refletiu-se de igual forma em seu rosto. Não era possível que não houvesse ninguém no local. Aquele era o ponto final, o mais longe que poderia chegar. Com um misto de expectativa e, de certa forma, esperança a garota loira se inclinou buscando algo ou alguém abaixo da mesa, sendo o único local onde sua visão periférica não tinha acesso até então.
No momento em que Regina se inclinou, surpreendeu-se ao avistar um rato preto de bigodes escondido sob o móvel. O susto foi tamanho que, involuntariamente, ela bateu a própria cabeça na mesa. Levando a mão até a nuca em sinal de dor, Regina se ergueu, permitindo que o roedor saísse furtivamente de onde estava escondido.
O rato, habilmente, subiu por uma das quatro pernas da mesa, até que chegasse em cima dela e se erguesse sobre suas duas patas traseiras. Diante de Regina, o roedor passou por uma metamorfose surpreendente, revelando-se como um simples garotinho de aparência jovem, com cerca de treze anos de idade. Vestido com uma bata branca que ia até a altura do quadril e uma bermuda da mesma cor, o garoto revelou-se como Larry. Sentado na mesa, balançando suas pernas e com um sorriso radiante, ele segurava em suas mãos seu diário de capa azul.
— Larry?! Isso não é possível! — Regina olhava com incredulidade para o aprendiz de Edward Lemoy. — Por favor, me diga que não era você o informante do Autor.
— Gina, Gina... — Larry permanecia balançando as pernas, sob o olhar assustado da mais velha. — Sempre buscando encontrar o melhor dentro daqueles que, mesmo em situações adversas, lhe apunhalam pelas costas. Bom, o que posso dizer a priori é que: não. Eu não sou um informante do Autor.
Regina soltou um suspiro de alívio, sentindo seu sorriso voltar a tomar forma em seu rosto. Já que ele não era um informante do Autor, e já que ele também não estava mais congelado, significava que ela teria um aliado ao seu lado na busca pelo Autor.
Contudo, a expressão de alívio de Regina logo se transformou em desespero ao ver Larry remover a sobrecapa de seu diário. À medida que a jacket caía no chão, revelava-se que o que ela acreditava ser o diário de Larry era, na verdade, um livro de capa de couro com inscrições douradas, ostentando o nome "Fantasia".
— Eu não sou um informante do Autor — Larry repetiu. — Eu sou o próprio Autor — Seus olhos faiscavam diante da loira.
A incredulidade estampou o rosto de Regina, refletindo uma profunda decepção. Muito além da traição da princesa Jasmine ou do Fauno Cello, a proximidade que ela tinha com Larry era muito mais significativa. Ele esteve ao seu lado durante a maior parte de sua jornada em Fantasia, compartilhando segredos íntimos e momentos de pura diversão. Regina confiou no menino rato, acreditando genuinamente que ele fosse seu verdadeiro amigo.
Mas tudo não passou de pura atuação dele. O homem que ela mais odiava havia enganado sua confiança, infiltrando-se em seu círculo de amigos. Ele sempre esteve tão próximo, bem debaixo de seu nariz. Nesse momento, a possibilidade de perdão era inexistente. Com uma fúria intensa e sem precedentes, Regina correu em direção ao menino, erguendo os braços com intuito de capturá-lo.
Antes que as mãos de Regina pudessem alcançá-lo, o menino desapareceu da superfície da mesa. Como por magia, ele reapareceu alguns metros atrás dela, um sorriso malicioso estampado em seu rosto, enquanto batia suas botas de camurça no chão com um ar provocador.
— Depois de tudo o que o Lemoy fez por você...! Depois do tanto que me abri e compartilhei meus sentimentos. Eu te considerava um irmão mais novo, seu maldito!! — Regina esbravejou, seu rosto avermelhado de tanto ódio, correndo mais uma vez atrás do metamorfo.
Novamente, Larry desapareceu quando as mãos de Regina estavam prestes a tocá-lo, surgindo dessa vez ao lado da janela. Ele parecia se divertir com a situação, mantendo um ar brincalhão.
— Irmão mais novo? Desculpe, "Regininha", mas nossa relação é na realidade um tanto quanto diferente disso.
— Regininha? — Em êxtase, Regina franziu o cenho e semicerrou seus dentes em cólera. — Lave sua boca antes de me chamar assim. Apenas uma pessoa no mundo tem o direito de me chamar desse nome!
Antes mesmo que Regina pudesse correr mais uma vez em sua direção, Larry se teletransportou dessa vez para diante do espelho que estava atrás dela. Foi nesse momento em que ela girou bruscamente em frenesi. Quando se virou completamente, levou o maior susto de toda sua vida. O que viu refletido no espelho foi mais assustador do que qualquer outro susto que já havia experimentado em suas aventuras pela terra da imaginação.
O reflexo no espelho mostrava um homem de meia-idade, por volta dos quarenta anos, com uma aparência descontraída e debochada. Ele usava uma roupa casual, com as mãos enfiadas nos bolsos da sua calça caqui. Seus olhos eram adornados por um óculos de armação quadrada, e uma barba por fazer contornava seu rosto. Regina ficou atônita diante dessa imagem. O homem refletido no espelho era o seu próprio pai.
Enquanto Larry permanecia com a aparência de uma simples criança, ele se observava atentamente no espelho. No entanto, o reflexo revelava a imagem desse homem do outro lado do vidro. Regina sentiu uma confusão avassaladora tomar conta de sua mente, incapaz de compreender o que estava presenciando.
— Você aprisionou o meu pai dentro desse espelho? — Tentou, buscando uma explicação lógica para o fato, pensando na possibilidade de aquele ser um espelho mágico. Larry se virou para ela, e, para sua surpresa, o reflexo também se virou como se fossem a mesma pessoa.
— Você ainda não entendeu, Regininha? Eu sou o seu pai — Com as mãos no bolso, o metamorfo revelou sua verdadeira identidade para sua filha.
Conforme a revelação ecoava em sua mente, Regina sentiu o ambiente ao seu redor se transformar. A sala branca desapareceu e deu lugar a um cenário de chuviscos cinzentos, como se estivessem dentro de um televisor antigo fora de sintonia. Larry e Regina flutuavam juntos naquele emaranhado de interferências, imersos em uma dimensão vazia. Não havia nada além daquele estranho espaço, onde pai e filha pairavam em um estado de levitação, perdidos em meio àquela atmosfera surreal.
A mudança de cenário se tornou insignificante para Regina diante das recentes revelações. Larry, o menino metamorfo capaz de se transformar em um rato, não era apenas o informante do Autor, mas o próprio Autor em pessoa. Ele era Jonathan Francis Lennox. Mas, muito além do seu pseudônimo, ele também era o seu pai.
— Sei que você deve estar confusa, sem entender nada — Larry disse enquanto se mantinha no ar a certa distância da filha. Não importava que ele ainda estivesse com sua aparência infantil, Regina já não conseguia mais o ver como uma criança.
— Você sabe pelo tanto de coisas que eu passei?! — Com os olhos marejados, Regina sentiu sua voz embargar. — Por que eu ainda pergunto? É claro que você sabe... Eu corri perigo inúmeras vezes!
— Eu não deixaria que nada te acontecesse! — Larry disse de forma convicta. — Ao menos, na maior parte do tempo eu estava lá te vigiando. Quando não estava literalmente ao seu lado, estava acompanhando através das páginas do livro. Podendo mudar o roteiro e te salvar caso algum perigo se aproximasse de você. Nunca foi minha intenção te colocar em perigo, minha filha.
"Por conta disso, nunca quis que adentrasse as Páginas em Branco. Era o único local onde eu não poderia interferir se algo te acontecesse".
— A Feiticeira... — Regina disse, enquanto as lágrimas fluíam de seus olhos. Se recordando do maior trauma de sua vida em Fantasia. — E ela?! Ela arrancou minhas asas naquela vez! Nunca senti tamanha dor...
Larry baixou os olhos, uma expressão de tristeza e remorso se instalou em seu rosto. Ele recordou o que considerava ser uma de suas maiores falhas como pai, um momento que o atormentava até aquele instante.
— Eu lamento, Regina. Naquela ocasião não tive tempo de evitar que ela te machucasse. Ocorre que, mesmo podendo te resgatar a qualquer momento que precisasse, você nunca precisou. Todas as situações que havia sobrevivido, conseguiu por conta própria. Devido a isso, eu talvez tivesse relaxado em minha vigilância, e em meu momento de descuido esse episódio ocorreu. Eu realmente sinto muito.
À medida que a compreensão das revelações se instalava em Regina, o ritmo acelerado de seu coração gradualmente se acalmava. As lágrimas haviam cessado, mas isso não significava que tudo estava resolvido. Ainda havia um mar de dúvidas dentro dela, e era seu pai quem tinha a responsabilidade de respondê-las.
— Por quê? Por que me mandou para dentro do livro?
— Esse livro — Larry ergueu o livro de Fantasia em sua mão mostrando sua capa para a mais jovem. Era inacreditável que quando ela achou que ele estivesse escrevendo em seu diário, na realidade estava mudando a narrativa do próprio livro de Fantasia —, ele é um livro mágico passado por gerações em nossa família. Não me pergunte como ele funciona, pois isso nem eu sei lhe dizer. Só sei que ele está em posse de nossa família há no mínimo muitos séculos.
"O motivo pelo qual nunca encontrou nenhuma informação sobre o livro de Fantasia, ou sobre o seu autor Jonathan Francis Lennox, é justamente porque ele é um exemplar único. Podendo ser reescrito quantas vezes o portador quiser com uma tinta mágica, mantivemos como tradição em nossa família apenas manter o pseudônimo do primeiro Autor.
"Você não deve se recordar, mas fui eu quem lhe dei o livro quando você era bem mais nova. E, agora, depois de crescida, achei que era o momento de oficialmente dá-lo a você de forma verdadeira e lhe contar seu verdadeiro poder".
— Isso não explica o porquê de você ter me mandado para Fantasia! Poderia ter me contado sem mentir para mim. Não sabe o desespero que eu passei dia após dia preocupada como o senhor estava lidando com meu sumiço — Regina ainda se mostrava resiliente mediante a abordagem de seu pai.
Um sorriso suave iluminou o rosto de Larry enquanto ele fitava Regina, como se imaginasse que ela já soubesse a resposta para a pergunta que acabara de fazer.
— Você tem pleno conhecimento de como era nossa relação antes de você entrar no livro. Criou-se uma boa distância entre nós dois desde que perdemos sua mãe — Larry falava, enquanto Regina olhava para a pulseira de prata de sua mãe em seu pulso esquerdo. — Você simplesmente se sentaria e ouviria o que seu velho pai teria a lhe dizer? No mínimo acharia que eu estava louco.
"Eu queria quebrar essa distância entre nós. Você só se abriu comigo, quando não sabia que era eu de verdade. Você só entendeu o quanto minha falta lhe causava, quando experimentou a sensação de nunca mais me ver".
Regina fixou seu olhar em seu pai. Apesar de não concordar com todos os métodos que ele havia praticado, conseguia enxergar a lógica por trás de suas ações.
Enquanto refletia sobre as revelações, Regina chegou à conclusão de que Larry havia forjado o naufrágio de seu próprio navio para enganar os piratas Lemoy, e com isso fingiu ter perdido a memória. Toda a história que ele havia contado sobre seu passado era uma farsa cuidadosamente arquitetada para manter sua verdadeira identidade em segredo.
— Após sua aventura contra a Feiticeira e sua viagem no tempo, de fato estava planejando te mandar de volta para casa. Mas, decidi adiar a viagem. Pois, no Pântano da Calamidade, você me confidencializou que reataria sua relação comigo. Mas, em contrapartida, você evidenciou que abandonaria o seu amor por livros e tudo o que faz de você a garota especial que é.
"Esperei que você chegasse sozinha a conclusão. A resposta correta para poder voltar para casa. E você conseguiu obter essa resposta há pouco, no labirinto junto ao Narrador. Seu amor por livros, não deve estar acima de sua família. Mas sua família não deve ser um impedimento para você desfrutar do que você ama".
Conforme o menino rato falava, sua voz parecia ecoar de longe, como se se distanciasse cada vez mais. Sua figura se tornava cada vez mais etérea, quase desvanecendo diante dos olhos de Regina. Ao mesmo tempo, o ambiente chuviscado ao seu redor começava a se transformar lentamente em um branco brilhante, cobrindo tudo ao redor. Regina sentia seu corpo descer suavemente, embora não conseguisse discernir um chão sólido para seus pés pousarem.
— Agora que você concluiu seu aprendizado, você pode voltar para casa — A voz e a presença de Larry cada vez se tornavam mais escassas. O menino rato agora parecia apenas um vulto aos olhos da jovem. — Posso ter tido métodos nem um pouco ortodoxos como pai. Por conta disso, espero que um dia possa me perdoar.
Com os pés finalmente tocando o chão da sala branca do arranha-céu acima das nuvens, o ambiente ao redor de Regina voltou ao seu estado normalizado. O chuviscado desapareceu por completo, revelando a sala em toda a sua nitidez. Ela lançou um último olhar em direção à figura quase invisível de seu pai, que parecia cada vez mais opaco aos seus olhos. Era como se ele estivesse se dissipando lentamente, deixando apenas uma lembrança frágil e fugaz de sua presença em Fantasia.
— Antes que me esqueça. Com o tanto de tempo que está nesse mundo, você deve ter perdido a noção do tempo. Mas aqui, em nosso mundo, hoje é um dia especial. O dia em que você completa dezoito anos. Feliz aniversário, Regininha — Larry terminou de dizer, desaparecendo de vez da sala branca.
Logo após o desaparecimento de seu pai, um tremor avassalador começou a sacudir a estrutura do prédio. Um estrondo ensurdecedor ecoou pela sala quando o espelho colossal tombou no chão, estilhaçando-se em milhares de fragmentos que se espalharam por toda parte. O edifício começou a inclinar perigosamente, fazendo com que a mesa retangular colidisse com a parede atrás dela. Regina lutava para manter o equilíbrio em meio ao caos, enquanto o arranha-céu parecia desmoronar ao seu redor!
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