1. Era Uma Vez

          "Era uma vez...". Com essa frase clássica que cativou a infância de inúmeras crianças ao redor do mundo em tantos outros livros, Regina começou, pela sexta vez, a leitura de seu livro favorito: Fantasia. A cada releitura, ela se encantava e descobria novos detalhes sobre o universo fantástico criado pelo autor mundialmente desconhecido, Jonathan Francis Lennox. Regina já havia pesquisado muito sobre ele, mas nunca encontrou qualquer informação a respeito desse suposto magnata, conforme descrito na contracapa do livro. Era como se ele nunca tivesse realmente existido.

          Em sua escola, nunca encontrou ninguém que tivesse ouvido falar sobre Fantasia. A ausência de qualquer informação na internet ou nas bibliotecas públicas a fazia se sentir como uma loba solitária; era como se o seu fosse o único exemplar da face da Terra. Quanto valeria no eBay dado a sua raridade? Pelo seu apego emocional a ele, não aceitaria menos do que um milhão. Se sentia agraciada — ou quem sabe até mesmo amaldiçoada, em tê-lo desde que era bem pequena.

          Apoiada no tronco de um imenso pinheiro, Regina apreciava o canto dos pássaros vindos da floresta próxima. Não poderia haver lugar melhor no mundo naquele momento. Com a mão que tinha uma pulseira de prata em seu pulso, ela afastou uma mecha de seu cabelo loiro, enquanto, com a outra, virava a página do livro.

          Ela tentava se mover o mínimo possível, pois odiaria ter que ouvir dos seus familiares que estavam por perto que ela havia sujado seu vestido branco bordado ao "brincar" por aí. Afinal, ela não era uma criança irresponsável como seus primos mais novos, que estavam jogando futebol perto da churrasqueira, um pouco mais adiante. Regina já tinha dezessete anos!

— Regina Monroe da Silva! Já disse para largar os livros! Venha se juntar à sua família! — Uma voz distante, porém, autoritária, a fez sair do mundo fictício do livro, trazendo-a de volta à dura realidade.

          Mesmo vendo apenas o vulto de seu pai ao longe, era impossível não reconhecer sua voz. Desde os seus onze anos, eram apenas os dois, desde que Regina perdeu sua mãe. Ele era um bom pai, mas havia uma distância entre eles. Ele sempre ocupado com o trabalho, e ela entrando na adolescência e preferindo qualquer outra coisa que não fosse passar tanto tempo com sua família

          Agora, ela teria que se juntar ao seu pai e aos parentes distantes no churrasco. Por que seu tio escolheu morar justamente em um sítio dentro da floresta? Não entendam mal, Regina amava a natureza. O céu ensolarado e azul acima dela criava um cenário magnífico, ou pelo menos deveria. No entanto, todas aquelas vozes distantes de seus parentes estragavam o clima.

          Regina não conseguia imaginar um lugar melhor para estar além do livro que estava lendo. Ela poderia estar nesse momento tomando chá no palácio do príncipe Charles ou travando uma batalha marítima contra a temível gangue de piratas liderada pelo capitão Edward Lemoy. Certamente, não gostaria de se deparar com a bruxa Bridget, a mais sombria e maquiavélica bruxa de Fantasia. Por outro lado, passar a tarde ouvindo as aventuras da ex-cavaleira Bárbara Zaira quando ela era jovem não seria um problema para a garota.

          Infelizmente, a vida real era muito diferente do que acontecia dentro das páginas de um livro de fantasia. A contragosto, Regina fechou o livro de capa dura e levantou-se. Como se o destino conspirasse contra ela, um pardal que tinha um ninho acima do pinheiro defecou bem no momento em que Regina passava por ali. Era como se os dejetos do pássaro fossem uma pessoa se jogando em um bungee jump. A sujeira escorreu pelo vestido de Regina, como se essa mesma pessoa estivesse descendo por um enorme escorregador, cheia de alegria.

          Ao contrário desse sentimento, Regina lançou uma série de xingamentos ao pássaro, até a sua décima quarta geração. O coitado voou em direção ao horizonte. Ela olhou apreensiva para seu pai, forçando a visão. No entanto, ele não estava olhando para ela; estava distraído conversando com o seu próprio irmão mais velho. Regina viu nessa uma oportunidade para se limpar antes que levasse uma bronca por ter sujado seu vestido. Segurando a parte de baixo do vestido com as mãos para evitar mais sujeira, Regina também pegou os dois livros que trouxera e adentrou a floresta.

          Não foram poucas as vezes que seu pai, seu tio, sua tia e sua madrinha a alertaram para não entrar sozinha naquela floresta. Se ela soubesse falar a língua dos cachorros, até o velho buldogue alemão do tio teria tentado alertá-la. Ainda assim, Regina lembrava-se claramente que havia um pequeno riacho no meio da floresta. Ela poderia usar sua água para se limpar.

          Caminhando apressadamente pela floresta, Regina levou um susto quando vários pássaros voaram em direção ao norte, batendo suas asas e fazendo barulho, como se algo os tivesse assustado por sua vez.

          "Eu já não passei por aqui antes?", questionou-se Regina, ao notar uma árvore semelhante à que havia visto recentemente. Logo percebeu que estava perdida na floresta. Poderia voltar para o sítio, mas nem mesmo sabia em qual direção estava. Regina encostou a cabeça inclinada no tronco de uma árvore e fechou os olhos.

          Ela não queria chorar, mas ainda assim sentiu seu rosto ficar molhado sem mais nem menos. No entanto, algo não estava certo. Não eram as suas lágrimas que estavam molhando seu rosto e seu vestido. Ela abriu os olhos de repente e notou que o céu azul havia dado lugar a nuvens cinzas e uma garoa intensa começara a cair. Era a mudança de clima mais rápida que já presenciara, literalmente num longo piscar de olhos. Protegendo os livros com o corpo, ela começou a correr, buscando abrigo antes que a chuva se intensificasse. Ironicamente, a chuva limparia a sujeira do pássaro em seu vestido, mas esse já não era seu maior problema.

          Correndo entre árvores, Regina só parou de correr quando chegou em uma clareira. Diante dela, havia um objeto enorme. Era um livro. Um livro gigantesco, um pouco maior do que a loira. Isso a surpreendeu tanto que nem havia se dado conta de que a chuva não estava caindo naquela clareira. Não havia nenhuma cobertura ali, entretanto, em torno do enorme círculo que se formava naquele local nenhuma gota caía. Enquanto ao lado externo dele a atual chuva de granizo se intensificava cada vez mais.

          Protegida da chuva Regina deu passos lentos em direção ao gigantesco livro. A baixa luminosidade do local dificultava sua visão para enxergar as palavras das páginas do livro daquela distância. Ele estava aberto, aparentemente bem no meio da história. A jovem garota chegou diante das páginas abertas, quando uma forte ventania soprou em suas costas. Ainda que ela não tivesse conseguido ler o título do livro, uma vez que a capa dele estava exposta para o outro lado, em um momento não tão distante daquele ela descobriria o seu título.

          Antes que pudesse ler o conteúdo daquelas páginas, uma forte luz azul emanou diretamente do livro. A luminosidade repentina fez com que Regina, em reflexo, fechasse os olhos para protegê-los do clarão. E então seu corpo foi puxado, como se houvesse um grande campo magnético e como se ela fosse um imã. Regina foi arremessada para dentro do livro, sumindo daquela clareira. Assim que Regina desapareceu do mundo real, o livro se fechou. E como se fosse mágica o seu tamanho diminuiu em uma velocidade extraordinária, até ter o tamanho de um livro normal. O livro de capa de couro e inscrições douradas agora estava jogado no chão da clareira, com seu título bem destacado na capa: "Fantasia". 

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