Capítulo Único

Dorcas batia o pé contra o assoalho do corredor que dava para o escritório da diretora McGonagall.

Ela nunca tinha sido chamada para a diretoria, não desde que iniciou os estudos na Hogwarts High. A única vez foi quando ela e seus pais foram apresentados à escola, mas em relação a comportamento, sempre tinha sido uma aluna exemplar.

Não exemplar no nível Lily Evans, mas no estilo invisível da palavra.

Ela não causava problemas para os professores, estava com as notas sempre na média ou pouco acima dela, não ficava de recuperação, mas não era a primeira da turma e evitava responder às perguntas que não fossem direcionadas para ela. Não fazia diferença.

Naquele momento, se perguntava o que tinha feito de errado para que aquele pesadelo estivesse acontecendo.

Tinha criado uma conta no Twitter quando tinha ainda 13 anos. Era natural que usasse a rede social como forma de desabafar sobre como a escola era difícil... e sobre outras questões também.

Tinha 15 anos de idade quando descobriu que não era perissexo. Muitas mulheres cis — e homens trans e pessoas não binárias também — menstruavam tardiamente, mas mesmo assim a sua mãe, Alichia, pareceu preocupada demais com esse assunto, já que as mulheres da família costumavam menstruar aos 12 anos, e então a levou para um ginecologista.

E então descobriram que ela não tinha útero.

A notícia tinha sido mais fácil de receber do que qualquer pessoa imaginaria. Afinal, ela era uma mulher, ela deveria querer ter filhos biológicos quando estivesse mais velha. A propósito, tendo 15 anos, ela já deveria ter sonhado com isso várias vezes e começaria a explorar a sua sexualidade logo.

Só que... não.

A verdade é que Dorcas nunca sentiu vontade de se casar e ter filhos. Isso nunca foi um sonho ou uma prioridade para ela. Inclusive, quando descobriu como acontecia um parto, ela sentiu menos do que a sua vontade já inexistente de parir um ser humano. Algumas pessoas poderiam considerá-la fria por causa disso.

Era bom não precisar se preocupar com cólicas menstruais, remédios para a dor, absorventes, roupas manchadas e emoções à flor da pele. Mas por outro lado... Sentia-se estranha, diferente. Aos poucos, cada uma de suas colegas foi menstruando e isso parecia criar uma conexão esquisita entre mulheres, que ia desde compartilhamento de absorventes a comparação de medicamentos para cólica. E ela apenas repassava o que sabia por conviver com suas primas diariamente.

Não sabia como de repente passou a ter contato com a comunidade LGBTQIAP. Supunha que era inevitável quando se acessava o Twitter todos os dias. Um dia, ela aprendeu o que significava "intersexo" e se questionou se a agenesia Mülleriana se encaixava. Algumas pessoas diziam que não, outras diziam que sim. Podia parecer ridículo, mas saber que tinha outras pessoas como ela... era bom.

E isso a levava a aquele momento, sentada no sofá de espera para a sala da diretoria, onde a professora McGonagall conversava com sua mãe.

Há exatamente dois dias, uma garota chamada Emma Vanity descobriu o user de vários alunos LGBTs da Hogwarts High, e resolveu expor para todo mundo.

Dorcas supunha que era culpa sua, por não ter censurado o nome da escola em seus desabafos, mas nunca imaginou que iam descobrir quem estava por trás da @whyasterin se nunca divulgasse fotos suas.

Não importava se tinha sido descuidada, se tinha ocorrido um ataque maciço de hackers ou se alguém era digno de um emprego no FBI, a questão era que se sentia exposta. Agora ela tinha passado de ser a invisível da escola para uma das chacotas da Vanity, e não gostou da mudança nem um pouco.

E a escola tinha chamado a causadora de tudo para uma reunião? Não. Tinham chamado os que foram expostos.

Passou as mãos pelo rosto, tentando se acalmar. Por fim, decidiu levantar-se para pegar um copo d'água do filtro de parede da secretaria. Assim que o copo de plástico encheu e ela começou a beber, a porta do escritório se abriu e ela pôde ouvir com maior clareza a tonalidade na voz de sua mãe.

— Senhorita Meadowes, por favor — a diretora McGonagall a chamou da porta.

Já estava no seu último ano de escola, aquilo era ridículo.

Obrigou-se a não surtar e então entrou na sala, fechando a porta atrás de si. Só tinha uma cadeira à frente da mesa, então ela teria de ficar de pé, o que não considerava uma posição muito favorável, por mais que tivesse fácil acesso à porta caso quisesse fugir. Na cadeira, pelo menos, ela poderia se encolher e fingir que não existia.

Pensou que não poderia desabafar sobre isso no Twitter mais, teria que criar outra conta para poder usar. Que merda, odiava exposed.

— O que aconteceu contigo e seus colegas foi inaceitável e, em nome da escola, eu peço desculpas — começou a professora.

— Acho que quem devia se desculpar não está presente — a sua mãe interrompeu-a.

— É claro. Quanto a senhorita Vanity, conversaremos depois — McGonagall moveu algumas pastas em cima da enorme mesa de mogno — No entanto, é nosso dever como educadores prestar assistência aos alunos que foram afetados também.

— Eu tô bem — Dorcas garantiu, mesmo que fosse mentira.

A escola não queria que aquele assunto parasse na polícia, e ela nem sabia se teria como processar Vanity por danos morais ou cyberbullying. O problema é que não importava o que fizessem com ela, não seria suficiente. Advertência? Detenção? Suspensão? Talvez uma expulsão, mas duvidava muito.

Nada disso ia desfazer o modo como as pessoas agiam ao seu redor. A sua vontade era a de mudar de escola, não faria muita diferença. Ela não tinha muitos amigos mesmo, e mesmo que ser a "aluna nova" fosse uma droga, era algo que ela podia superar.

O problema seria convencer seus pais disso.

A diretora tirou os óculos e olhou-a fixamente. Não possuía os olhos azuis do antigo diretor, mas mesmo assim era como se estivesse lendo a sua mente, tentando identificar a mentira por trás de suas palavras. A diferença era que ela tinha um ar mais rígido, mesmo que tivesse um pote aberto cheio de balas em cima da mesa para qualquer um que quisesse pegar.

— Mesmo assim, me sentiria mais confortável de saber que estão tendo algum apoio — ela disse — Por esse motivo, terão sessões de terapia em grupo com a psicóloga da escola uma vez por semana.

Só podia ser piada.

— Eu não preciso de psicóloga — retrucou Dorcas.

— Bobagem, todos precisamos — a professora descartou seu protesto, voltando a pôr os óculos no rosto — Além do mais, é um orçamento previsto na mensalidade escolar, não custará nada a mais.

— Minerva — sua mãe interveio com o seu jeito conciliador —, é claro que os alunos têm o direito a visitar o psicólogo, e eu certamente aconselho Dorcas a falar com ela quando sentir que precisa, mas não parece uma punição? Os alunos serem obrigados a ir em uma reunião de grupo toda semana, como se estivessem no Alcoólicos Anônimos. Além do mais, muitos deles não se sentem à vontade para conversar sobre isso abertamente com outras pessoas.

McGonagall ficou em silêncio, parecendo considerar o argumento.

— O espaço estará aberto, caso alguém sinta-se à vontade para participar — ela declarou, por fim — No entanto, eu gostaria que Dorcas fizesse uma coisa.

Não sabia o que era, mas já não tinha gostado.

— Toda essa situação é uma clara falta de informação dos alunos — a idosa pegou uma caneta para assinar alguns papéis enquanto falava — Eu gostaria que Dorcas e alguns de seus colegas envolvidos fizessem uma apresentação para a aula de sociologia, onde ela possa explicar o que é intersexual.

— Intersexo — ela murmurou por baixo da respiração, sem conseguir se conter.

— Pode fazer isso por mim? — McGonagall levantou o olhar para ela.

Suspirou, sabendo que não conseguiria escapar daquela impune.

Pensando bem, um trabalho sobre intersexo era muito melhor do que reuniões semanais em grupo com pessoas com quem ela não tinha contato, e que talvez fossem preconceituosas em relação a outras letras do acrônimo LGBT. E ela faria sozinha, é claro, era a única intersexo da escola. Só precisaria se reunir com os outros para resolver algumas coisas básicas que, sinceramente, poderiam ser facilmente resolvidas por mensagem de WhatsApp.

— Okay — Dorcas respondeu.

— Que bom que ficamos resolvidos — Alichia declarou, apoiando-se na sua bengala verde para poder se levantar da cadeira — Se nos der licença, Minerva, preciso voltar ao trabalho.

Acompanhou sua mãe em silêncio até o estacionamento, aliviada por finalmente poder sair de dentro da escola.

— Você não me contou — ela disse, procurando por algo na bolsa.

Era a parte ruim de ter uma mãe muito próxima. Qualquer coisa que escondesse dela geraria uma mágoa quando descobrisse.

— Não era importante — respondeu em voz baixa.

— Se você não se abrir com a sua própria mãe, eu serei obrigada a concordar com Minerva e te fazer vir para a reunião em grupo.

— Mãe, é sério — ela odiava quando as pessoas a obrigavam a falar quando não queria — Eu só tô irritada porque a escola não vai fazer nada sobre a Emma Vanity, e que eu sei que as coisas vão ser muito piores lá fora.

Alichia aproximou o seu rosto do da filha, tentando enxergar com dificuldade se ela estava sendo sincera, mas por fim desistiu.

Então, sem mudar de escola, pensou desanimada.

As coisas teriam sido mais fáceis se aquilo tudo tivesse acontecido alguns anos depois, quando estivessem todos trancados dentro de casa por causa de uma pandemia.

Com o passar do tempo, as pessoas parariam de falar. A cada instante, via alguns professores se esforçando para acabar com as conversas sobre isso, enquanto alguns de seus colegas se isolavam cada vez mais.

Estava estudando para geografia, que era o seu calcanhar de Aquiles, quando o seu celular vibrou em cima da mesa.

Marlene McKinnon tinha criado um grupo para a apresentação e a tinha adicionado.

Certo, então existiam pessoas que queriam socializar no meio daquela história toda.

Para ser sincera, Dorcas não tinha procurado saber mais sobre a tal lista, só sabia que estava nela e que as pessoas começaram a agir estranhas com ela por causa disso, principalmente os garotos com a mentalidade infantil intacta. Então não tinha ideia de quem tinha sido exposto, além dela, e o porquê, mas não era segredo para ninguém que Marlene era LGBT.


Trabalho de Sociologia

Emmeline, Kingsley, Lily, Marlene, Tonks, Você


[Hoje]

Marlene criou o grupo "Trabalho de Sociologia"

Marlene adicionou você


Marlene

Lene, tá preparada pra responder a diferença entre pansexual e

bissexual? Tô nãão (17:42)


Emmeline

King, tá preparado pra falar por 30 segundos e depois ficar mudo

o resto da apresentação? É nóis (17:43)


Marlene

Lily, tá pronta pra falar por duas horas sem parar? (17:43)


Lily

Olha aqui, eu não entrei nesse grupo pra sofrer bullying (17:43)


Kingsley

Podia ser pior (17:44)

Podíamos estar juntos falando sobre nossos sentimentos (17:44)


Tonks

Não entendi (17:44)

Eu amo falar sobre os meus sentimentos (17:44)


Eu acho que podemos resolver o trabalho aqui pelo grupo (17:45) ✔️✔️

Não tem necessidade de ficarmos nos encontrando (17:45) ✔️✔️


Lily

Não acho que a McGonagall vai nos deixar agir tão livremente (17:45)


Tonks

Pensa o seguinte: é só um trabalho (17:46)

Depois disso ninguém mais vai falar sobre isso (17:46)


Emmeline

A apresentação vai ser por powerpoint ou por vídeo? (17:47)


Kingsley

Se pelo menos a gente recebesse nota por isso... (17:47)


Estava prestes a desligar o celular e voltar aos estudos quando recebeu uma notificação no outro aplicativo, aquele que esteve evitando o dia inteiro, o que estava se provando bem difícil.


Marlee ⚐

@clovesamos

Eu percebi que você se sente mais confortável no Twitter

Descobri que nós somos mutuals kk

Enfim, sinto muito pelo que aconteceu e espero que você fique bem ♥️

5:48 PM


Ficou observando a mensagem por alguns segundos.

Era Marlene McKinnon?

Ela não tinha desabafado sobre a lista com ninguém, tinha desaparecido totalmente das redes sociais. A única forma de terem descoberto era terem visto o exposed, o que achava meio difícil, já que nem tinha saído direito da bolha da escola. Ou aquela era Marlene McKinnon e elas se falavam há algum tempo sem saber quem era a outra.

Nunca saberia como Emma Vanity descobriu o perfil de todas elas com tanta facilidade.


Marlee ⚐

@clovesamos

Obrigada ♡

E você? Como está com tudo isso?

5:50 PM ✓

Pensando se vale a pena levar uma suspensão

A mão pra dar uma coça na radfem da Vanity coça

5:50 PM

KKKKKKK ela é radfem?

5:50 PM ✓

É

Em um passado obscuro, nós fomos amigas

Tive uma fase que não me orgulho

5:51 PM


Seria inútil tentar lembrar-se em que momento tinha decidido seguir @clovesamos, já que seguia 5 mil pessoas diferentes, todas escondidas por trás de fan accounts. Não era muito criteriosa, seguia quem a seguia e aparentava ter os mesmos gostos que ela.

A questão é que conversar com ela escondida por trás de um icon da Rihanna, em vez da sua foto em um grupo no WhatsApp, era mais confortável, e nenhum estudo conseguiria explicar essa relação.


Marlee ⚐

@clovesamos

Eu preciso estudar pra geografia

Nos falamos depois

5:52 PM ✓

Okay

Bom estudo ♥️

5:52 PM


Com o passar dos dias, como tinha previsto, as pessoas foram falando cada vez menos sobre o exposed, mesmo que o assunto não tivesse desaparecido completamente. A psicóloga ficava no auditório às quinta-feiras após a aula, mas Dorcas não ia às reuniões em grupo, apesar de ter visto alguns alunos frequentando. Continuou conversando com Marlene e, aos poucos, sentia que ia se soltando um pouco mais no grupo.

Já tinha feito a sua parte sobre o trabalho, não era algo tão difícil, só teria de resolver com os colegas se iriam pôr tudo em um slide e apresentar como se fosse um seminário, ou então editar um vídeo com as informações para que não precisassem falar.

Duvidava que ia mudar alguma coisa.

Fechou ruidosamente a porta do armário do vestiário feminino, pegando a sua mochila para poder pôr o uniforme de educação física ensacado.

Estava sentindo um nó na garganta e uma vontade de chorar absurda.

Sentia os olhares em sua nuca, e sabia muito bem o que todo mundo estava se perguntando.

Ela tinha um pênis?

— Ei, oi! — Marlene aproximou-se dela, falando com um tom de voz anormalmente baixo para os seus padrões — Eu estive pensando e seria legal se ensaiássemos a apresentação em grupo. O que acha?

Ela esteve tentando aproximar-se insistentemente desde o exposed, e Dorcas apreciava isso.

— É, acho que seria bom — respondeu, engolindo em seco para tentar se desfazer do insistente nó.

— Lily tomou a liberdade de fazer os slides. Ela gosta de fazer essas coisas — Lene revirou os olhos — Ela faz slide para literalmente qualquer coisa, como você vai descobrir. Aí se tiver alguma coisa errada, ou algo que queira acrescentar, você avisa pra ela.

— Tá bem.

Puxou o zíper, fechando a mochila e então foi em direção à saída.

— Vamos então?

— O quê? — perguntou Dorcas — Agora?

— O auditório está vazio, as aulas acabaram — ela deu de ombros — Tem coisa melhor para fazer?

Não considerava estudar como "algo melhor".

Deu de ombros timidamente, resolvendo aceitar aquela breve reunião.

Como eram apenas seis, o auditório estava fracamente iluminado na parte do palco, deixando o restante do ambiente escuro. Não conseguia imaginar como eles conseguiram a chave, talvez com algum aluno do teatro.

— Não, Emmeline, "espectro" não é só autismo — explicava Tonks impaciente, balançando as pernas, que não alcançavam o chão abaixo do palco, enquanto Marlene e Dorcas se juntavam aos outros — Espectro significa uma variação, então, no espectro de cores, você não tem apenas vermelho, azul e verde, você tem tonalidades. É a mesma coisa com o autismo, você tem graus de autismo.

— E é a mesma coisa com assexualidade — Lily completou — Você tem graus variados de atração sexual.

— Então por que a comunidade não-binária não é um espectro? — ela perguntou.

— Cara, presta a atenção — Tonks a interrompeu — É sobre variação. Tonalidades de cores, graus de autismo, graus de atração sexual. Não faria o menor sentido não binários serem um espectro! Não existe um grau de identificação com tais gêneros, é sobre quais gêneros você se identifica.

— Mas e quanto a genderfluid?

Marlene lançou um olhar exasperado a Dorcas.

— A gente ainda pode desistir do trabalho? — Tonks dirigiu-se a elas.

Emmeline tomou um gole de um líquido azul em um copo de plástico, parecendo se divertir em irritá-la.

— Okay, chega de bagunça! — Marlene exclamou, como se fosse a professora — Dorcas, por que você não começa?

Isso ia contra a ordem das letras.

Tonks jogou o corpo para a frente, caindo em pé e sentando-se ao lado de Kingsley nas poltronas do auditório.

— Tá bem — Dorcas coçou o braço, pensando que queria a sua cama quentinha naquele momento — A letra "I" da comunidade pertence aos intersexo. Sexo, não intersexual, porque nós não somos uma orientação sexual.

Lily sorriu para ela. Sabia bem como era quando erravam um termo que dizia respeito a si mesma.

— Basicamente, intersexos são pessoas que não se encaixam anatomicamente, hormonalmente ou geneticamente aos padrões estabelecidos para pessoas ovariadas ou testiculadas — continuou.

— Eu nunca tinha ouvido esses termos — comentou Tonks — Geralmente falam "pessoas com vagina" ou algo do tipo, mas simplifica as coisas, não?

Kingsley deu uma cotovelada nelu para que não interrompesse.

— Então, em resumo, é quem nasceu com genitálias ou órgãos sexuais internos ambíguos, parciais, duplicados ou ausentes, composição hormonal, variações genéticas e cromossômicas diferentes do padrão. Tem vários exemplos dessas alterações, uma delas é chamada de "Variação de MRKH", ou Síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser.

Marlene soltou um assobio baixo diante do nome enorme.

— Quem tem variação de MRKH tem uma falha no desenvolvimento dos ductos de Müller, o que nos faz nascer sem útero e com hipoplasia vaginal. Se eu ficasse aqui comentando sobre todas as variações genéticas existentes, demoraria muito tempo...

Tonks concordou com a cabeça, provavelmente pensando que elu também teria que falar sobre várias identidades não-binárias durante a apresentação.

— Bom, quem não é intersexo é chamado de perissexo — ela continuou, sem saber muito bem como concluir — Não usem "hermafrodita" para se referir a nós, é extremamente ofensivo. O termo "hermafrodita" foi criado para se referir a anomalias em espécies de animais não-mamíferos. Até mesmo na biologia esse termo não é mais usado, eles são chamados de "espécies monóicas" agora. Não nos confundam com transgêneros também, são coisas diferentes. Pessoas intersexo podem ser transgêneros, é claro, mas nem todos são. Quem não é transgênero, no nosso caso, é chamado de "ipsogênero". Bem, acho que é isso, eu vou indicar uns artigos e livros para quem quiser se aprofundar no assunto. Pensem nisso da próxima vez que falarem que LGBTs não nascem LGBTs, porque nós nascemos assim.

Marlene puxou os breves aplausos do grupo.

— Ah! Droga! Eu esqueci de falar sobre a cirurgia — Dorcas pôs a mão na testa logo que sentou-se na poltrona.

— Relaxa, você se saiu muito bem! — ela pôs uma mão em seu ombro — Lily, sua vez.

— E lá vamos nós de novo... — a ruiva resmungou, levantando-se da poltrona para ir à frente dos outros — A letra "A" da comunidade se refere aos assexuais e arromânticos. Assexuais, não assexuados. Como Tonks terá dito anteriormente, porque a letra delu vem antes da minha, "agênero" é um gênero não-binário e, portanto, é parte da comunidade trans.

— Que é dividida entre binários e não-binários — Tonks completou rapidamente.

— Agora não é a sua vez — Marlene repreendeu.

— Antes de tudo, precisamos estabelecer os conceitos de atração. Existem diversos tipos de atração, sendo as principais para a nossa discussão as atrações sexual e romântica. Quem sente atração sexual, que são os heterossexuais, homossexuais, bissexuais e pansexuais...

— Acho que faltam alguns "sexuais" aí — murmurou Emmeline.

— São chamados de allossexuais. Enquanto que, quem sente pouca, nenhuma, parcial ou condicional atração sexual é chamado de assexual — Lily continuou como se não tivesse sido interrompida — A mesma coisa acontece com a atração romântica. Quem sente atração romântica é chamado de allorromântico, enquanto que quem sente pouca, nenhuma, parcial ou condicional atração é arromântico.

— Você não estava brincando quando falou de discurso — Dorcas sussurrou para Marlene.

— Tonks e Lily são as que mais têm o que dizer — ela respondeu no mesmo tom.

— Eu devia ter dito mais... — murmurou.

— Para com isso! Você foi ótima, Doe.

Ela voltou a prestar atenção no monólogo de Lily enquanto Dorcas estava distraída, a voz de Marlene repetindo "Doe" sem parar em sua cabeça. Depois, foi a vez de Tonks repassar o que ia dizer, e então a parte de Kingsley e Emmeline foi bem rápida, como já era esperado.

— A gente podia mostrar as bandeiras que existem em cada letra — opinou Tonks, mexendo no celular enquanto falava, parecendo procurar alguma coisa.

— Eu já pus nos slides — respondeu Lily — Inclusive algumas bandeiras ultrapassadas, como a lipstick.

— Ninguém vai nos levar a sério — resmungou Emmeline após outro longo gole do líquido azul.

— Bom, isso não é problema nosso — Marlene retrucou, ríspida.

— Eu só queria que as pessoas parassem de me associar com pessoas como a Emma Vanity — a latina voltou a resmungar e então dirigiu-se a Tonks — Como é mesmo a nova definição?

— Pessoas alinhadas ao feminino que se sentem atraídas a pessoas alinhadas ao feminino — elu respondeu prontamente — E não se esquece de explicar a diferença entre "sáfica" e "lésbica". King, você podia contar um pouco sobre a história da comunidade no geral, já que não tem nada pra falar.

— Você está com inveja — ele brincou, mas a sua expressão estava séria como sempre.

— Por que será que a McGonagall nos escolheu?

As conversas silenciaram depois da pergunta de Dorcas.

— Como assim? — Emmeline perguntou.

— Tiveram mais alunos além de nós que foram envolvidos — ela explicou — E, mesmo assim, ela nos escolheu.

— Bom, temos aqui uma lésbica, um gay, uma pansexual, uma assexual e uma intersexo — respondeu Marlene, franzindo o cenho — Não é muito difícil de fazer a matemática.

— Ei! — Tonks protestou ao ter sido esquecide.

— Ah! E ume trans não-binárie. Desculpe — ela acrescentou rapidamente.

— Ainda faltariam duas letras — observou Lily.

— Eu não me lembro de ter algum queer na lista — comentou Emmeline, pensativa — E considerando que não existe uma diferença entre bissexual e pansexual que não seja histórica, pelo que você me disse...

— Eu acho que é muita responsabilidade falar por uma comunidade inteira — resmungou Kingsley, apoiando a nuca contra o encosto da poltrona — Porque imagino que tem uma parte da comunidade que discordaria dessa afirmação...

Marlene também suspirou, parecendo repentinamente cansada.

— Acho que fomos bem por hoje, deveríamos ir descansar — ela disse.

Dorcas então olhou para o relógio do celular e se surpreendeu ao descobrir que estavam há mais de uma hora e meia ali.

— Nossa, eu preciso ir! — exclamou, pegando a sua mochila de cima da poltrona.

— Eu vou contigo — Marlene jogou as chaves do auditório na direção de Kingsley.

— Vai que é tua, Tafarel! — Emmeline gritou levemente alcoolizada, enquanto caminhavam entre as fileiras de poltronas rumo à saída.

Dorcas sentiu-se bem. Tinha esquecido completamente dos comentários que tinha escutado durante o dia, mesmo que estivesse falando justamente sobre o assunto que todos conspiravam. Não sentiu julgamentos por parte do grupo conforme falava, apenas curiosidade, a mesma curiosidade que sentiu ao escutar Lily explicar por mais de 10 minutos sobre o que era assexualidade e arromanticidade, ou quando Tonks discorreu sobre as pautas da comunidade transgênero. Queria que outras pessoas agissem mais dessa forma, não tinha tido experiências muito boas com a comunidade LGBT no geral.

— Foi bom, não foi? — Marlene puxou assunto no meio do caminho.

— É, foi — respondeu — Não como teria sido uma terapia em grupo.

— Ah não, não mesmo — ela riu — Já participei de uma, era só sobre LGBTfobia e essas coisas. Pessoas que foram expulsas de casa, agredidas, ofendidas... A energia é bem diferente.

— Não que não seja importante — Dorcas acrescentou — É só que... às vezes é bom esquecer.

Ela balançou a cabeça, concordando silenciosamente.

— Bom, acho que vamos poder tirar algo de bom disso tudo — Marlene mordeu o canto do lábio — Nós nos conhecemos.

Dorcas sentiu uma sensação curiosa na boca do estômago.

— Nós já nos conhecíamos — ela respondeu com um sorriso.

— Sim, mas nós não sabíamos disso. E se conhecer pelo Twitter é diferente do que se conhecer pessoalmente...

Não soube o que responder, então ficou em silêncio, tentando entender as reações de seu próprio corpo. O que estava acontecendo com ela?

— O que acha se a gente saísse algum dia desses? — perguntou Marlene, conforme aproximavam-se do ponto de ônibus — Não em grupo, só... nós duas.

— Seria legal — tentou agir naturalmente.

— Legal — ela repetiu, dando um sorriso estonteante — É o meu ônibus, preciso ir.

Então deu um beijo em sua bochecha antes de afastar-se em direção ao transporte.

Já Dorcas ficou paralisada, certamente com uma expressão ridícula no rosto enquanto o ônibus partia.

O que estava acontecendo?

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