Capítulo Três: 19 anos, 7 meses

— Muito bem William, agora... pode tentar observar o que a doutora Márcia está escrevendo na sala ao lado? – Marcos pediu. Eu estava sentado em frente a uma mesa, dentro de uma sala retangular branca onde, além da cadeira e da mesa, havia um enorme espelho escuro. Era óbvio que tinha alguém me vendo do outro lado. Além disso, havia a porta atrás de mim e, em cima da mesa, havia uma caneta e um caderno onde eu escreveria o que a doutora Márcia, na outra sala, estaria escrevendo.

Pude sentir que mais alguém havia entrado na sala onde me observavam através do vidro. Não custaria nada dar uma olhada. Respirei fundo e fechei os olhos. Senti uma dor incomoda na minha nuca e depois de alguns segundos abri os olhos. Porém, em vez de ver a caneta e o caderno, o que eu via eram cinco caras em frente a computadores que tinham imagens em raio-x do meu cérebro, imagens minhas de câmeras que nunca sei onde estavam na sala, gráficos com duas ondas senoidais, sendo uma a minha e a outra da doutora Marcia. Eu estava na mente de um dos guardas na sala, vendo tudo o que ele via.

— Senhor, as ondas cerebrais dele se alteraram de forma bastante nítida, mas não estão em consonância com as da doutora Marcia. – Um dos homens sentados em frente aos computadores comentou.

Aquelas ondas cerebrais pareciam bem interessantes. Doutor Marcos Valmírio estava em frente ao vidro, seu olhar fixo em mim. Ele era um cara sem expressão alguma. Tão sério e frio que, sinceramente, eu acreditava que ele era uma máquina ou coisa do gênero. Seus olhos eram um de cor verde e o outro azul. Uma mulher entrou na sala, talvez tivesse por volta de sessenta anos. Os cabelos grisalhos, pele negra, rosto enrugado e tão frio quanto o de Marcos.

— E então? Como estamos indo, doutor? – Ela perguntou esboçando as longas horas que passou sem dormir.

— Bom... ele tem tido êxito em todos os testes. Agora estou esperando ele dizer que está vendo o que ela está escrevendo. – Disse, sem tirar os olhos de mim.

Voltei à minha mente. Respirei fundo e novamente fechei os olhos. Senti uma dor incomoda na minha nuca mais uma vez. Ela sempre vinha quando eu utilizava minha habilidade. Quando abri os olhos, o que eu via não era a minha mesa, e sim a da doutora Márcia. Ela estava escrevendo um poema. Peguei a caneta, abri o caderno numa folha vazia e comecei a escrever.

Todas as opiniões que há sobre a natureza

Nunca fizeram crescer uma erva ou flor

Toda sabedoria a respeito das coisas

Nunca foi coisa em que pudesse pegar como nas coisas

Se a ciência quiser ser verdadeira

Que ciência mais verdadeira que a das coisas sem ciência?

Fecho os olhos e a terra dura que me deito

Tem uma realidade tão real que até minhas costas a sentem

Não preciso de raciocínio onde tenho espáduas

Um belo poema, devo dizer. Não sou muito fã de poemas, mas esse achei interessante. Me perguntava o motivo dela ter escolhido aquele poema, mas preferi não vasculhar sua mente para isso. Assim que terminei de copiar, deixei o caderno aberto em cima da mesa. A voz de Marcos surgiu novamente:

— Fantástico. Como sabe, William, repetimos vários testes para ver as reações de suas ondas cerebrais, então pediremos que nem na última vez, para que você copie os desenhos que Márcia estará fazendo, certo? O mais idêntico possível. – Pediu. Ergui o polegar positivamente para ele. – Ótimo, quando quiser. – Mais uma vez fechei os olhos e fui até a mente de Márcia.

Eu não sei se eles podiam ver, mas quanto mais vezes eu fazia isso e em menos tempo, maior era a dor. Ainda não tinha chegado ao ponto daquela dor ser gritante, era ainda apenas um incômodo. Mas piorava cada vez, caso eu não descansasse. Entrei na mente dela e então fiz o que sempre faço: copiei o que ela estivesse fazendo. Terminei todos os desenhos e deixei em cima da mesa o caderno, como sempre.

— Bom... acho que já deu esses exercícios repetidos, não é? Não querendo ser mal-educado, mas... sério, vocês não acham nenhum pouco chato não? – Comentei, impaciente.

— Claro, claro. Já chegamos no fim por hoje. Está liberado. – Marcos disse. A porta atrás de mim se abriu. Me levantei, coloquei a mão nos bolsos da minha calça, mas algo me impediu de me levantar. Eu havia esquecido completamente: eles sempre colocavam um capacete na minha cabeça, um tipo de leitor de ondas cerebrais. Eu já o tinha usado tantas vezes, que nem mais lembrava que estava usando-o. Retirei e saí da sala.

No lado de fora algumas pessoas passavam andando. Eu não gostava de praticamente nenhum deles. Todos aqueles cientistas, pesquisadores e até soldados, todos costumavam me encarar de modo estranho, com receio. Pensavam tanto no quão "estranho" eu era, que sequer precisava tentar usar minhas habilidades para ouvi-los. Marcos veio andando em minha direção do fim do corredor branco. Me olhou de cima a baixo e sorriu.

— Interessante essa roupa... um estilo novo? – Perguntou. Olhei para mim mesmo. Eu estava usando tênis preto com detalhes em vermelho, uma calça jeans azul escuro e uma camisa de manga longa preta.

— É... me deu vontade de começar a usar algo novo. – Respondi. Eu tinha que manter meu olhar um pouco para cima. Marcos era alto, talvez 1,90m. Tinha cabelos grisalhos, bem magro, as bochechas quase afundadas no rosto. Usava aquelas roupas "padrões" de cientista, se é que posso dizer: camisa, calça, sapatos e um jaleco totalmente brancos, além de carregar uma maleta de couro consigo.

— Sabe, eu sempre me perguntei: por quê? Por que você, sabe... não usa suas habilidades para sair daqui de vez em quando? Até mesmo lá fora, antes de vir para cá, por que não aproveitava seus poderes para conseguir melhores coisas? Você sempre agiu tão... simplista. Vaga no ônibus, dinheiro para passagem, evitar confusões, uma ajuda em alguma coisa boba ou em outra. – Falou enquanto coçava a barba rala. Eu sorri.

— Eu... eu não sei te responder, acho que... – Um homem que lia alguma coisa no celular se esbarrou em mim. Me virei para ele, não com raiva, apenas para ver se estava bem e notei que, no momento em que me virei, todos os guardas que estavam andando pelo corredor pararam e colocaram suas mãos em suas armas, preparados para puxá-las e atirar.

O homem, um cara branquelo e careca, usando óculos de grau, ficou me encarando com medo. Fingi não ter percebido a atitude dos guardas, sorri para ele e mostrei meu polegar, mostrando um "legal" para ele.

— Está bem? – Perguntei, tentando me fazer o mais santo possível. Ele sorriu, ainda com medo, e assentiu. Os guardas relaxaram e continuaram a andar.

— Está tudo bem? – Marcos perguntou.

— É, tudo sim, nem percebi a cara de medo daquele maluco. E aqueles guardas que quase sacaram suas armas para me mandar dessa para outra vida? Nem notei. – Comentei, respirando fundo para relaxar. – Continuando... acho que algo em mim dizia que não seria certo, não seria moral, sabe? Não só porque meus pais me ensinaram a ser sempre correto e tal, mas era além... sem falar que cada coisa que eu influenciava os outros a fazerem tinha um peso em suas mentes. Quanto mais pesado, mais difícil. Dinheiro para ajudar um jovem a pagar o ônibus? Tudo bem, algo bonito até de se fazer. Ceder o lugar no ônibus? Tão simples. Agora... fazer alguém dar um soco na cara de outro alguém que nunca viu na vida? Roubar um carro? Me dar o dinheiro da loja sem motivo? Matar? Isso são coisas pesadas. Não é algo simples de levar alguém a fazer. E eu não me sentiria bem obrigando as pessoas a fazerem tais coisas.

— Hum... entendi. Você é do tipo bonzinho... bom saber.

— Ser bom ou mal é algo bem relativo, não acha? – Perguntei. Ele sorriu e assentiu. – Mas, mudando de assunto... e quanto aos experimentos? Resultaram em algo? Já estou aqui há uns sete meses... tem que ter dado em algo novo, certo? Sem falar essa repetição de testes.

— Sim, sim, foi mais interessante dessa vez. Entenda... o que você é, a habilidade que carrega consigo... é algo que está num mundo pouco explorado por nós. Sim, já encontramos outros com habilidades semelhantes, com dons... poderes... mas nunca foi fácil entender, porque os recursos tecnológicos que temos não estão elevados o suficiente para tal... sem falar que sempre que nós achamos e tentamos estudar o poder de alguém como você, bem... – ele respirou fundo –... nem sempre as coisas saem como esperamos. Mas, de qualquer forma, me acompanhe. – Pediu.

O segui pelos corredores brancos sem fim, virando diversas vezes. Havia várias salas naqueles corredores, mas eu nunca cheguei a entrar nelas para saber para onde levavam. Todas as portas brancas e com números em cima delas. Chegamos à sala 419, onde era a sala do doutor Marcos. Ele abriu a porta e entramos em seu escritório.

A sala não era muito grande, suas paredes possuíam um tom amarronzado, como se fosse madeira. Tinha uma mesa grande retangular presa à parede, uma poltrona detrás dela e duas cadeiras no outro lado. Em uma das paredes, havia uma estante com vários livros. Na mesa estavam diversos papeis espalhados. Preferi não prestar muita atenção neles.

Marcos fez um sinal para que eu sentasse em uma das cadeiras e ele se sentou na poltrona atrás da mesa. Assim que sentei notei que, debaixo da mesa havia uma lixeira com vários papeis amassados, porém não era isso que me chamava a atenção, mas sim os dois vasos pequenos de vidro de whisky, já vazios. Olhei de volta para Marcos, que não percebeu o que eu havia visto.

Ele ainda estava bebendo, e eu achando que ele tinha superado isso depois do que aconteceu conosco alguns meses atrás. Ele pôs sua maleta em cima da mesa e abriu. Havia vários documentos, papelada, etc. Tirou os que interessavam e pôs em cima da mesa, deixando a maleta de lado. Nos papéis havia inúmeras anotações, porém o que mais tinha eram linhas e gráficos em forma senoidal.

— Ok... agora explica.

— De uma forma bem simples... essas são suas ondas mentais, nessa forma aqui, e essas são as da Marcia, a mulher que você inv... bom, se conectou. – Ergui a sobrancelha para ele. Não tinha problema se ele tivesse dito invadido, mas acho que evitou foi por causa de possíveis escutas e câmeras na sala... não sei, talvez os guardas não gostassem de saber que invado a mente das pessoas e decidissem me matar.

Em resumo no que ele me disse, cada onda mental tem seu próprio padrão, único, como uma identidade do cérebro da pessoa. As ondas se expandem até uma certa distância. As minhas tinham uma distância, um alcance maior, mas não era isso o que interessava.

Toda pessoa possui uma forma de onda mental com determinados padrões em sua forma senoidal. Mas, pelo o que Marcos falou, eu possuía, de forma constante, duas ondas mentais. Uma delas se mantinha inalterável, enquanto a outra se modificava e se expandia, tornando-se idêntica a onda mental de Marcia. Ao que parecia, essa segunda onda mental sempre se moldava de acordo com a mente da pessoa a qual eu me conectava.

A primeira onda eles não sabiam ao certo se era apenas para impedir que a pessoa visse o que eu via, não permitir que a outra sentisse sua mente sendo "invadida", ou para manter minha identidade sem que eu me sinta influenciado ao entrar na cabeça de outras pessoas. Pelo menos é tudo o que eles tinham interpretado até agora sobre os dados coletados.

— É incrível, não é? – Perguntou. Sua mão foi em direção à gaveta, mas desistiu. O que será que iria pegar ali?

— É... realmente, incrível... você parece ter ficado bastante empolgado.

— Mas é claro! Tenho que estar! É algo que nunca tínhamos conseguido ver antes. Mas, é claro, isso tudo é só o início, ainda não estamos nem perto de terminar. Bom, preciso estudar algumas coisas, você sabe chegar no seu quarto, certo? – Eu fiquei sério.

— Aquilo não se chama quarto. – Comentei, me virando. – Se chama cela... esse é o nome correto. – Marcos ficou tenso, levantando-se devagar.

— William, olha... não exagera...

— O nome daquilo não é quarto, é um fato simples e obvio. Tem câmeras, não posso sair sem permissão, sou vigiado 24 horas por dia. – Uma raiva começou a inundar meus pensamentos.

— É necessário para... – Ele começou a dizer e então não aguentei.

— AINDA ESPERO FALAR COM MINHA FAMÍLIA! FAZ MAIS DE SETE MESES DESDE A ÚLTIMA VEZ QUE OS VI! – Gritei, batendo na mesa, minha raiva explodindo.

Marcos caiu ajoelhado no chão com as mãos na cabeça, rangendo os dentes. No mesmo instante eu me virei para a porta.

— Doutora Marcela, se entrar aqui junto com esses dois guardas ao seu lado, eu juro por tudo o que for sagrado que farei você enfiar essa agulha em sua garganta, e nem digo o que obrigarei os guardas a fazerem! – A raiva começou a passar, comecei a respirar fundo e me acalmar. — Droga... que merda, me desculpa... – Falei indo até Marcos, que estava tentando se erguer, ainda em choque, eu o ajudando a se levantar. A porta da sala se abriu lentamente. A doutora Marcela entrou logo depois de dois guardas com as armas apontadas para mim. Marcos ergueu a mão para eles.

— Saiam, agora. – Pediu. Eles assentiram e se retiraram. – Outro ataque de raiva... esse foi mais fraco do que o da última vez, pelo menos. – ele se sentou com dificuldade.

— É, eu... eu estou aprendendo a controlar melhor. Sério, me desculpa. Sendo sincero, acho que comecei a ter mais crises de raiva desde que desenvolvi esse meu poder. – Comentei, sem graça.

— Está tudo bem, William... pelo menos você está tendo controle, isso é o que importa. Imagina se você está na rua andando e alguém te irrita, você começasse a discutir e todas as pessoas ao redor simplesmente entrassem em curto por conta de sua habilidade? – Perguntou. Eu assenti, imaginando o que poderia acontecer.

— Então eu me conecto com alguém e a faço se sentir como você se sentiu?

— É... as conexões dependem do seu estado emocional. Algo que deveríamos estudar também, mas creio que não seria fácil estudar... acho que ninguém iria se voluntariar para sentir o que você causaria nela. Você conseguiu sentir os dois guardas e a doutora Marcela chegando por detrás da porta quando você estava com raiva? Isso é algo mais interessante ainda... preciso refletir sobre isso, tem problema se você sair do meu escritório agora? – Perguntou. Eu balancei a cabeça, me virando e saindo devagar.

Do outro lado da porta estava a doutora Marcela e os dois guardas, ofegantes. O trio me encarava tenso, algumas pessoas que transitavam pelo corredor observando a situação. Marcela era uma senhora por volta de quarentas anos com rosto e corpo de vinte, morena e de cabelos cacheados longos. Ela segurava a seringa por trás das costas, tremendo.

— Me desculpa, certo? Mas... veja pelo lado bom: eu não fiz você enfiar essa seringa na sua garganta. – Comentei, sorrindo sem jeito. Ela retribuiu com um sorriso sarcástico. Me virei e fui ao meu quarto. Mais um dia comum naquele lugar.

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