Capítulo Dois: 19 anos

Eu estava almoçando. Era meu aniversário de dezenove anos, quando alguém tocou a campainha. Minha mãe se levantou da cadeira na qual estava sentada almoçando comigo e foi até a porta. Pude ver pelo reflexo do espelho da sala, que ficava voltada para a porta de entrada um homem vestido num estilo social: terno, gravata, calça social, sapatos pretos que pareciam brilhar. Ele tinha cabelo grisalho, nenhum pelo no rosto e seus olhos, apesar de esboçarem sua seriedade, carregavam um enorme cansaço. Minha mãe o analisou por um breve segundo e então disse:

— Boa tarde, senhor. Posso ajudar? – Perguntou com seu típico tom sério e jeito agreste do interior da Bahia.

— Boa tarde senhora Joana da Silva – Respondeu. Minha mãe se ajeitou, tentando não transparecer o susto quando o homem falou seu nome. Ele tinha uma voz rouca, pesada. – Me chamo Lucas Cláudio. – Apresentou-se, retirando algo de dentro do terno e a mostrando, provavelmente algum distintivo ou coisa parecida.

Minha mãe respirou fundo e fez um sinal para que entrasse. Ele entrou e foi em direção à cozinha, onde eu ainda almoçava. Foi um pouco estranho ele aparecer e me ver colocando um pedaço de galinha cozida na boca. Eu usava uma camiseta azul e uma bermuda branca.

— Boa tarde. Você é o William? – Perguntou. Sem muitas opções, assenti. Ele sorriu para mim, não aquele sorriso cordial, era mais um sorriso "te achei". Não posso negar que uma coisa se repetia sem parar em minha mente "me fodi, me fodi, me fodi..." – Meus parabéns. 19 anos, não é? – Ele se virou para minha mãe. – Posso conversar com a senhora e seu marido? Ele já deve estar chegando. – Minha mãe assentiu, sem jeito, e se sentou ao lado dele na sala. O tal de Lucas Cláudio começou a fazer perguntas sobre minha família e muitas relacionadas a mim.

...

Meu pai chegou alguns minutos após ele. Ao entrar, não parecia muito surpreso. Eles se cumprimentaram e continuaram a conversar. Mais e mais perguntas, sempre com meus pais. Eu fiquei na cozinha, ouvindo o que fosse possível. Ele estava falando sobre algum projeto governamental para pessoas especiais e eu era uma delas.

Explicou que algumas pessoas conseguem fazer coisas extraordinárias, coisas difíceis de acreditar, e ele trabalhava para uma agência governamental responsável por encontrar e dar auxílio a esses tipos de pessoas. Deu uma aula de história, falando das primeiras pessoas a terem dons especiais, e como elas vinham ajudando em vários momentos do mundo, porém poucas pessoas sabiam.

Também explicou sobre a forma como eles trabalhavam, levando essas pessoas especiais para uma base – ele não falou onde ficava – e ajudava tais pessoas a se desenvolverem cada vez mais. Por fim, disse acreditar que eu provavelmente era uma dessas pessoas e ele queria me levar para me ajudar a crescer e entender melhor minhas habilidades.

Antes que meus pais falassem algo contra ou negassem, ele ameaçou de forma sutil, falando que muitas vezes alguns não compreendiam o quão importante era o que a agência fazia, que infelizmente eram levados sob pressão, com permissão do governo para tal.

Fui até a sala e fiquei lhe encarando. Lucas respirou fundo e sorriu para mim.

— Meu trabalho é descobrir pessoas que fazem coisas como você, William, e os levar para um local seguro para vocês, para ajudá-los. Isso consiste em observar, investigar cada caso que seja considerado paranormal, por mínimo que seja. Até mesmo em pequeninos detalhes, como alguém comentar com algum amigo que fez algo estranho, como entregar dinheiro para um jovem garoto que nunca viu na vida, para que ele pagasse o ônibus, ou agir de modo estranho contra sua vontade. Sei que, pode ser chocante para vocês, pais, mas... tem sido você a fazer aquelas coisas, não foi? Tão jovem e com tamanho talento... é incrível, diga-se de passagem.

— Olha, sinceramente, eu não estou gostando muito disso... – Meu pai se levantou do sofá, falando. – Não estou entendendo e, sendo sincero, não acredito muito nessa sua conversa, então acho melhor você sair da minha casa.

— Senhor, por favor, entenda... – Lucas começou a falar, tentando convencer meu pai. Eu lembrei quando, há mais ou menos dois anos, aquele velho me disse que viriam atrás de mim... pelo visto o que ele havia dito agora estava se concretizando, agora só faltava os tais ataques.

— E... – comecei falando, chamando a atenção de todos. – Se eu negar... me obrigarão a ir contra minha vontade mesmo? Usarão a força? Um camburão cheio de policiais vai me agarrar e jogar lá dentro e depois me levar para o tal lugar? É isso? – Perguntei.

Ele me encarou de uma forma estranha quando perguntei aquilo, como se eu soubesse a resposta... ou soubesse como descobri-la. Fiquei levemente desconcertado com aquele olhar. De forma irônica, até parecia que ele estava invadindo minha mente. Algo dentro de mim dizia que eu não deveria prolongar demais aquela situação.

— Eu irei com você. – Disse, arrancando um sutil sorriso da face de Lucas. Antes que minha mãe e pai falassem algo, os "convenci" de permitir que eu fosse sem muito sofrimento. "Deixe-o ir, será algo melhor e ele voltará em breve" foi a ideia que coloquei em suas mentes. Sendo sincero, eu odiava fazer aquele tipo de coisas com minha família. Desde a primeira vez que aprendi tal habilidade, foram raras as vezes que a usei com eles. Esses raros momentos foram apenas quando extremamente necessários, como aquele.

Minha mãe, com lágrimas nos olhos me abraçou.

— Oh Will... acho que será o melhor para você, meu filho. Vamos ainda definir algumas coisas, tá? Mas eu sempre soube que você era especial. – Ela falava, enquanto me apertava e beijava minha bochecha. Meu pai se aproximou e me abraçou também.

— Will... – Ele ficou me encarando, segurando as lágrimas, sua seriedade inabalável. – Eu não faço a mínima ideia de como agir agora. Mas algo em mim diz que devo permitir que você o acompanhe. Não posso te impedir, você tem dezenove anos, já é livre para decidir por si só. – Me abraçou com força, e então sussurrou em meu ouvido: – Eles sempre têm segundas intenções. – Com certeza apenas eu o ouvi falar aquilo. Segurou meu rosto por uns segundos, sorriu e se afastou.

— Bom... creio que agora... – Começou a falar Lucas.

— Agora vou falar com minha irmã. – Interrompi. Pude sentir ele começar a ficar estressado com o tempo que estava levando. Ergui a sobrancelha para ele, como se o desafiasse. Ele assentiu tranquilamente. Me virei e andei em direção ao quarto da minha irmã mais nova e entrei.

A parede metade rosa e metade branco não fazia nenhum pouco meu tipo. Alguns nichos presos na parede ao lado da porta. A janela do quarto dela, que dava para o quintal estava aberta, uma brisa entrando, assim como a luz do sol. O armário branco dela estava aberto, havia acabado de arrumar as roupas, minha irmã em pé diante dele. Ela olhou para mim, fechou a porta e se deitou na cama dela, pegando um livro e lendo.

Eu me segurei para não soltar um riso. Ela já tinha treze anos, e estava usando um pijama que provavelmente era de quando ela tinha nove. Estava minúsculo, apertado, um pouco engraçado combinado com o cabelo encaracolado dela que formava um enorme Black Power.

Me sentei ao seu lado e ela se sentou, fazendo um olhar curioso ao ver minha expressão sem jeito. Eu não iria entrar na mente dela... se eu já não gostava de usar minhas habilidades com meus pais, muito menos eu gostava com minha irmã. Tudo bem: fiz isso com meus pais, mas a situação exigia aquilo. Mas ela eu talvez conseguisse explicar e falar um pouco sem precisar apelar. Respirei fundo e olhei para ela, mostrando um sorriso.

— O que foi, Will? – Perguntou.

— Ah... – comecei. – Anna... é que assim... terei que fazer uma viagem, tipo... em breve. – ela cerrou os olhos, um pouco intrigada.

— Ué, por quê? Para onde? Volta quando? – Metralhava as perguntas para mim.

— Vamos por partes. O porquê... é que eu sou um cara muito importante. Eu não te disse antes, mas tenho superpoderes, por causa disso o governo quer me levar para saber mais sobre minhas habilidades. – Ela fez aquele olhar "nossa... sério... incrível...". – Ok, eu descobri uma coisa muito importante e agora terei que fazer uma viagem junto com homens importantes para entender mais. Agora é sério, não estou mentindo. Como é algo muito importante e complicado de entender, a gente vai para um lugar lá pro Sul do país, e não sei quanto tempo vai levar, mas a gente vai conversar sempre, virei quando puder, quantas vezes for possível.

— Ah... então tá bom... – Senti que ela tinha ficado triste, mas com certeza conseguiu evitar que qualquer lágrima caísse. Abraçou-me forte, e retribui o abraço. – Você vem quando John vir também? Ele vem daqui a um mês. – John, meu irmão mais velho, tinha mudado de cidade por conta da faculdade e trabalho. Também tinha que falar com ele. Tive uma sensação estranha... uma sensação de que algo daria errado no futuro... mas eu preferi ignorar.

— Já que vamos passar um tempo sem se ver, toma... – Tirei duas das minhas cinco pulseiras e entreguei para ela. – Fica com elas enquanto eu estiver fora, meu presente super adiantado de aniversário. Promete que vai usá-las sempre? – Ela assentiu. – Que bom, assim estaremos sempre juntos. – falei, rindo. Ela beijou minha bochecha bem forte, dei um beijo na testa dela e saí do quarto. Peguei meu celular e mandei uma mensagem ao meu irmão. "Man, eu não tenho tempo para explicar, mas farei uma viagem... com um cara do governo. Loucura, eu sei, mas relaxe, mãe e pai falam com você depois eu te explicarei melhor assim que der".

Fui andando até a sala. Meus pais em pé ao lado do tal agente Lucas Cláudio. As coisas pareciam estar em câmera lenta. Senti minha espinha congelar, minhas pernas ameaçarem tremer, meu estômago revirar. Dezenas de perguntas começaram a surgir em minha cabeça. "O que acontecerá? ", "Será que vale a pena? ", "E se ele estiver mentindo? ", "Se eu não ver minha família nunca mais... ", "Vão me abrir e fazer testes com meus órgãos? ", muitas e muitas perguntas começavam a rondar minha mente.

Minha cabeça começou a doer, pesando toneladas, minha respiração começava a ficar ofegante. Senti que estava sendo observado, e então vozes começaram a surgir, como se estivessem perto e distantes ao mesmo tempo. Olhei para trás e pude ver, se aproximando calma e lentamente: as fumaças negras que eu via de vez em quando. Eu nunca as tinha visto perto daquele jeito. Parecia haver imagens nelas, dentro daquelas esferas de fumaça negra.

Elas iriam me atacar? Queriam se comunicar comigo? O que queriam? Eu deveria estender a mão e tocá-las?

"Se acalme!"

Algo dentro de minha mente gritou aquela frase e então... tudo parou. Eu pude ouvir isso audivelmente, essa voz que me fez relaxar. Parecia minha voz, porém mais fria e mais velha. Quando pisquei, até mesmo as fumaças e as vozes sumiram, junto com todas perguntas e dúvidas que estavam pesando minha mente. Não tinha tempo para pensar nisso, eu já estava ao lado de Lucas.

— Podemos ir amanhã? Um tempo para eu arrumar minhas coisas, me despedir de alguns amigos, um momento com minha família...

— Claro, tudo bem. Amanhã pela tarde passarei aqui.

— Obrigado. Malas, equipamentos, essas minhas coisas, como faremos?

— Não se preocupe. Nós partiremos e uma equipe virá buscar tudo que for seu. Apenas deixe arrumado e separado. – Ele informou.

Minha vida nunca mais seria a mesma a partir dali.

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