Capítulo Cinco: 19 anos, 4 meses

Quatro meses haviam se passado desde que eu tinha chegado a esse lugar. Cinco horas de viagem de avião para chegar nessa base isolada onde eu sequer tinha noção de onde ficava. Senti uma raiva crescendo dentro de mim. Não podia ligar nem ver minha família, a única comunicação com eles era pelo Facebook, que depois de alguns dias utilizando começou a ser bloqueado, assim como outras redes sociais.

A raiva só aumentava com a minha relação com o doutor Marcos. Ele brigava comigo se eu não fizesse o que pediam, me dava lições de moral, dizia que eu só poderia fazer uma coisa ou outra se eu fizesse o que pedissem ou se eu estudasse. Parecia que eu era seu filho. Parecia que ele queria tomar o lugar do meu pai para eu me sentir em casa, não sabia dizer ao certo. "Como ele pode querer me tratar desse jeito? Deve agir assim para me controlar melhor. Acha que sou idiota? Não faz sentido ter que agir assim comigo"

Foi quando, em um dos testes, tive meu primeiro surto de raiva. Uma onda de ódio e furor inundou minha mente e então senti... senti todos em minha mente. Eu podia ver o que viam, ouvir o que diziam, ler o que pensavam. Dezenas de pessoas, os cientistas, pesquisadores, alguns médicos, guardas, todos eles. Eu podia vê-los, através das paredes que nos separavam. Algo dizia que eu deveria puni-los por me tratar de tal forma. Eu sabia que não deveria, mas algo mais forte me levava a pensar assim e, no fim, deixei que aquilo tomasse o controle.

Dois guardas no outro lado da porta da sala carregavam suas armas com tranquilizantes, preparando-se para atirar. As mãos deles começaram a tremer. Se encaravam, sem entender o que acontecia, enquanto seus braços não os obedeciam, erguendo as armas um para o outro e então atirando simultaneamente, ambos caindo no chão, sedados.

As pessoas começaram a tremer de medo. Me virei em direção a falsa parede, que na verdade era um vidro no qual me observavam do outro lado. Uma mulher correu em direção à uma mesa cheia de botões e estava prestes a apertar um deles.

Eu sabia o que era: a sala seria trancada, logo em seguida doze pequenas aberturas se abririam no teto, e um gás sonífero invadiria a sala, o que me deixaria inconsciente em poucos instantes. Eu não iria deixar que ela fizesse isso.

Eles tinham que entender, precisavam aprender que eu não sou um brinquedo, um mero item a ser estudado. A mulher começou a tremer, enquanto ela gritava se perguntando o que estava acontecendo e logo em seguida bateu a cabeça contra a porta, com toda a força que tinha.

— William! Pare com isso, agora! – Ouvi a voz de Marcos através da caixa de som no canto da sala. Me virei em sua direção. Mesmo não o vendo, eu sabia exatamente onde estava, lhe fitando nos olhos. Senti ele ficando tenso, o coração disparando de medo.

— Você... quem é você para me dizer o que fazer? Estou cansado de todos vocês! Principalmente de você, agindo como se fosse... fosse meu pai. Me dando ordens, testes, desculpas esfarrapadas... acha por acaso que pode brincar comigo? Então que tal eu brincar com você?! – Minha raiva me levou a entrar na mente dele, mas de um jeito que nunca tinha feito antes.

Antes que eu fizesse algo de ruim com ele, tudo ficou escuro. Senti um vento passar pelo meu corpo. Me vi no meio do nada. Um abismo sem fim. Algo dizia que eu deveria seguir em frente caminhando.

Onde eu estava? Não fazia a menor ideia. Senti uma brisa soprar na minha nuca. Quando me virei, eu o vi novamente: aquele fantasma, aquela presença feita de uma espécie de fumaça roxa num formato humanoide, dois olhos dourados brilhando como se fossem ouro. Apesar de tudo, era difícil vê-lo, como quando escrevemos com um lápis numa folha de caderno, apagamos e vemos apenas a fraca linha do que estava ali escrito.

— Quem é você? O que quer? – Perguntei, ainda irritado. Ele continuou sem falar nada. – Por que diabos me trouxe aqui?!

— Precisa se acalmar. – Disse. Sua voz era distante, como um sussurro.

— Me acalmar... tá, tá bom. Vou me acalmar quando eu explodir a cabeça de todos eles! – Gritei, me virando para seguir para onde quer que eu pudesse ir.

— William... – me chamou, pondo sua mão em meu ombro. A sensação era estranha. Eu sentia algo me tocando, mas era como se não tivesse nada ali. Difícil descrever. Fiquei parado, virando de lado meu rosto para vê-lo. – Pare e preste atenção. Esse não é você. Precisa se acalmar. Apareci porque vi o motivo pelo qual Marcos age assim contigo. – Comentou. Respirei fundo, tentando manter a calma.

— Tudo bem... estou mais calmo. Agora, que tal dizer onde estamos? – Perguntei. Ele olhou ao redor.

— Creio que entre sua mente e a dele. Consegui te segurar nesse limbo. Se você invadisse a mente dele no estado em que estava, mesmo que fosse apenas para fazê-lo passar mal, você perderia o controle... e não acho que ele sobreviveria.

— Ok, eu não queria que fosse tão longe assim. Olha... eu estou ferrado. Só me deixa voltar para minha mente, acho que devo desculpas a todos eles... e me preparar para correr bastante caso queiram me matar. – Comentei, enquanto olhava ao redor procurando algum caminho para seguir.

— Não dá. Você começou, terá que terminar. Não se preocupe com o tempo que passar aqui... deve ter se passado pouco menos de um segundo nesse tempo em que estivemos conversando. – ele falou.

- Tudo bem então. Como faço para continuar? – perguntei.

- É só eu te liberar que você seguirá em frente. Tenha cuidado com essas suas crises de raiva. Elas te cegam e fazem você perder o controle, fazem você ser fácil de controlar, como eu estou fazendo agora, te prendendo no meio do caminho. – Disse, flutuando calmamente ao meu redor. Pude sentir que ele iria dizer mais alguma coisa, porém, por algum motivo, decidiu terminar sua fala ali.

— Eu... eu estou bem mais calmo. Obrigado. – Comentei, suspirando. – Podemos ir? – Ele assentiu, erguendo o braço para minha frente. Uma porta surgiu aberta, e dela vinha uma luz forte e clara. Comecei a caminhar em direção à luz.

— Só uma coisa: é apenas você. Eu só apareci agora, porque... bom, já falei o porquê.

— Isso quer dizer que não nos veremos de novo? – Indaguei. Eu não queria que ele sumisse. Não sabia ainda, mas sentia como se ele fosse a coisa mais próxima que já tive em toda minha vida. Eu sentia que sequer precisava perguntar o que ele era. Ao menos, não era o momento.

— Nos veremos outra vez ... em algum momento. Digamos que ainda não tenho forças o bastante. Mas quando aparecer a oportunidade, eu retornarei. – Ele respondeu, fazendo um sinal para que eu continuasse. Quando estava prestes a atravessar a porta, olhei novamente para ele

— Até depois, Tahl. – Ele assentiu e então atravessei a porta.

...

O sol queimava um pouco minha pele, porém a doce brisa que me rodeava diminuía a sensação de calor. A luz começou a diminuir, até que eu podia ver sem dificuldade. Estava numa fazenda, um gramado verde se estendendo ao horizonte.

Era o meio da tarde. Por volta das 15 horas. Enquanto eu olhava ao meu redor, avistei ao longe uma casa. Eu demoraria alguns minutos até eu chegar nela caminhando. Mas, quando dei pouco mais de dez passos em direção a casa, apareci em frente a porta.

Com calma, pus minha mão na maçaneta, a girei e abri a porta. Era uma casa de tamanho mediano feita de madeira. O verniz fazia com que a madeira tivesse um brilho único naquele marrom escuro. Havia um lustre na sala principal, que era o primeiro cômodo a ver assim que se entrava na casa.

Três sofás formavam um "U". Dois de dois lugares nos lados e um de três lugares encostado numa das paredes. Em outra parede, uma televisão estava presa. Havia também uma mesinha de centro, com algumas fotos. O chão era coberto por um belo tapete vermelho na borda e com flores amarelas, azuis e vermelhas que o preenchiam.

No canto esquerdo da sala, uma escada levava para o primeiro andar, enquanto na direita havia um corredor curto que dava para três outros cômodos. Andei até o corredor e entrei no primeiro cômodo: a cozinha. Vozes vinham dali. Quando olhei para dentro da cozinha, eu vi: Marcos.

Ele estava vestindo uma camisa listrada azul, branco e preto, uma bermuda branca e sandália croques. Estava sentado numa mesa de jantar, junto à outras três pessoas. Em frente a ele, no outro lado da mesa, estava uma mulher branca, de cabelos negros e longos, amarrados num rabo de cavalo.

Ela usava um vestido florido e tinha um sorriso que me desconcentrou durante alguns segundos. Havia também dois jovens sentados na mesa. Uma menina com cerca de cinco anos, e um garoto mais velho, talvez dezoito ou vinte. Ele estava de costas para mim. Algo me fez olhar para ele. Havia algo diferente. Uma sensação estranha inundou meu coração e caminhei lentamente ao redor da mesa até que fiquei frente à frente ao garoto. Meu coração gelou quando vi seu rosto. Ele era... eu. Não exatamente eu, mas podemos dizer que era meu sósia. Até o jeito de se vestir fazia com que parecêssemos mais. Eles estavam lanchando, conversando e rindo. Não podiam me ver. Era uma lembrança, feita para se assistir, eu sequer podia interagir.

A cena de repente mudou.

O garoto acabava de chegar em casa, jogando a mochila no chão e subindo para o outro andar, indo para seu quarto, nervoso. Marcos ouviu o barulho da porta batendo forte e subiu para entender o que estava acontecendo.

— Jonas... o que houve? – Perguntou. Jonas não respondeu. Marcos ficou parado alguns minutos em frente a porta, então a abriu lentamente. Não pude deixar de admirar o quarto de seu filho. Era o quarto típico que víamos de jovens em filmes estadunidenses. Havia até uma bola de futebol americano jogada num canto. Marcos se sentou ao lado do filho. – Qual é cara... sabe que pode contar comigo. – Jonas se virou devagar, sentando-se logo em seguida ao lado de Marcos. – Bullying? Alex terminou com você? Notas medianas? – Jonas riu.

— Sério? Notas medianas, pai? Eu? – Perguntou e Marcos riu.

— Tudo bem, excluamos notas medianas. Seja lá o que for... pode contar comigo. Sabe disso, não é filho? – Perguntou. Jonas assentiu, o abraçando logo em seguida.

— Foi só uma briga que tive com o Alex. Nós não terminamos. Mas... foi aquele mesmo assunto...

— Os pais dele não aceitarem seu namoro, não é? – Marcos perguntou, Jonas assentindo, com lágrimas nos olhos.

— Eu... eu não entendo, pai. Tudo bem a pessoa não "gostar" de outra que seja diferente de sua orientação sexual, mas... sentir raiva, repulsa? E ainda mais naquele lar em que eles se dizem "cristãos", que "amam e respeitam a todos". Repulsivo é a forma como eles nos tratam, e...

— Hey, relaxa, filho! – Marcos disse, o abraçando. – Respira fundo, tá certo? Sei que é difícil, eu sei. O ser humano tende a rejeitar qualquer coisa que seja diferente do que elas acham "certo e errado", de seus valores éticos e morais... com o tempo, elas abrem os olhos e percebem que o mundo não gira ao redor do que só elas acham ser o certo ou o errado. Se quiser, posso falar com o pai do Alex mais tarde. Uma conversa de homem para homem, tudo bem?

Mais uma vez, a cena mudou.

Era manhã. Estavam todos deitados no campo verde que eu havia visto no lado de fora da casa. Estavam fazendo um piquenique. Jonas brincava com a irmã mais nova, enquanto o Marcos digitava algo no celular, alguma coisa relacionada ao seu último estudo, sobre pessoas que possuíam habilidades extraordinárias.

Sua esposa conversava com um rapaz negro e franzino, vestindo uma calça jeans e camisa bege. O mesmo olhou para Jonas e lhe mandou um beijou, Jonas mandando um de volta. Marcos terminou de digitar para seja lá quem fosse, abraçou sua esposa, deu-lhe um longo beijo e ficou conversando com sua esposa e o rapaz, provavelmente o Alex.

Me sentei alguns metros atrás deles e fiquei observando aquela cena. Uma bela cena de se apreciar. Meu coração se enchia de alegria diante daquilo. As coisas estavam tão... em paz. Era bonito de ser ver. Quase como se não existisse nenhum problema que destruísse aquela família.

Foi quando ouvi um estrondoso som vindo de longe. Um forte vento chegou de repente, as nuvens ficaram negras, uma tempestade tomou conta da bela paisagem. O clarão de um raio iluminou o ambiente, e quando olhei novamente, estava no meio da estrada.

A chuva era impiedosa. Algumas árvores caídas nos lados. Os postes de iluminação ao longo da estrada estavam ou desligados ou foram derrubados pela força da tempestade. Era um cenário assustador e por estar de noite, apenas aumentava a tensão.

Ouvi um gemido estranho, uma tentativa de gritar, um gemido de dor e tristeza. Olhei para trás de mim e vi Marcos caído no chão. Era ele quem gemia de dor. Se eu conseguia ver bem... o osso de sua perna estava para fora. Ele levantou com bastante dificuldade.

Por que ele estava levantando? Olhei para o outro lado da estrada e então vi, capotado, quase invisível na escuridão e na tempestade, um Land Rover. Em vão, tentava se aproximar do carro, sempre caindo sem forças. O que tinha lá?

O vidro do banco de trás quebrou, e um braço se pôs para fora, quando percebi que, quem tentava sair do carro, era Jonas, seu filho. Ele estava muito ferido, mais do que o pai que ia ao seu encontro.

— Pai! – Jonas gritava de dor e angustia. Ele não conseguia sair do carro, por mais que se esforçasse. Algo o prendia, talvez o cinto de segurança, não sei. Marcos não conseguia pronunciar o nome do filho, em meio a tanta dor.

Eu não podia interagir, apenas assistir ao que estava prestes a acontecer. Cheguei perto do carro e vi, inconscientes, a sua filha e esposa. Uma luz forte surgiu na virada da estrada. O barulho forte da buzina de um caminhão que avançava em direção ao carro.

Mais uma vez, Marcos caiu no chão, o osso se projetando mais para fora de sua perna, lhe fazendo agonizar de dor. Mesmo assim, ele conseguiu reunir forças e continuar indo em direção ao carro, enquanto o caminhão se aproximava.

Marcos finalmente chegou ao carro. Ele segurou a mão de seu filho e começou a puxá-lo para fora, porém era inútil, pois algo ainda prendia seu filho no carro. Jonas segurava com força o antebraço do pai, que puxava com toda a força. Ele olhou para o fim da estrada, a luz do farol do caminhão começando a aparecer.

A luz do caminhão ficava mais forte a cada segundo, o choque sendo inevitável. Jonas começou a gritar assustado e seus gritos se misturaram aos gritos de Marcos. O caminhão estava a poucos segundos de dobrar na curva onde o carro estava. Quando os visse, poderia até tentar frear, mas seria em vez.

Jonas olhou para seu pai, com lágrimas nos olhos. Eu sabia o que estava prestes a fazer. Num simples gesto, soltou o antebraço de seu pai. Marcos escorregou, cambaleando para trás e caindo de costas a alguns metros do carro, os olhos voltados para o céu da noite tempestuosa, ouvindo apenas um enorme barulho de colisão que tomou o ambiente.

A noite começou a ficar cada vez mais clara, sua luz me cegando aos poucos. Os gritos e lágrimas de Marcos foram ficando cada vez mais distantes, até finalmente sumirem. A luz tomou toda minha visão e depois de alguns instantes começou a diminuir. Eu estava de volta àquela base secreta. Estava caído no chão, meu coração apertado e eu podia sentir as lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Me levantei devagar. Dois guardas entraram, as armas erguidas. Eu já estava ajoelhado, com as mãos na nuca. Não precisava ler a mente deles para saber que iriam me colocar para dormir, mas pelo menos mostrando rendição eles pegariam leve. Por sorte, pegaram bem leve, de fato. Um homem de jaleco entrou com uma seringa em mãos.

— Acho que não adiantaria se eu dissesse que não precisa disso, não é? – Eu falei. Eles ficaram me encarando. Decidi fechar os olhos e esperar, até sentir os guardas segurarem minhas mãos e o homem injetar a agulha no meu pescoço, sentindo meu corpo amolecer e então, dormi.

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