7 - Amarrando as pontas soltas
(Macário)
Alguns dias se passam... A memória ainda não voltou, mas imagens soltas começam a pipocar em minha cabeça.
Sinto que está na hora de me exercitar com mais empenho. Começo pelos alongamentos, dos simples aos mais complexos e sigo para os exercícios localizados, as baterias de repetição, como abdominais, levantamentos, e depois, parto para os golpes... Claro que sinto as costelas, mas se a médica não tem certeza absoluta de que estejam quebradas... E pela minha experiência eu sinto que não estão... Preciso me fortalecer o quanto antes. O tempo conta, no jogo da sobrevivência.
Não faço ideia de como aprendi aqueles golpes, mas eu os executo com eficiência e precisão. Quando termino, estou suado e exausto, precisando de uma boa ducha.
Por sorte tem uma funcionando num dos banheiros.
No entanto, há mais uma coisa que preciso fazer. Foi algo que me ocorreu quando Wilmara comentou sobre as câmeras de segurança e como ela vinha evitando-as. Eu lhe disse para não se preocupar com outra coisa, senão fingir que está tudo bem e trazer comida. Eventualmente, eu pretendia fazer uma lista de coisas que ela poderia buscar para mim no comércio local, sem dar bandeira. Mas até lá, temos o problema das câmeras de segurança para resolver.
Calculo o horário e o movimento local, então, saio da ala segura e circulo como um fantasma pelo hospital até alcançar o posto de vigilância. O vigia está sentado, entretido com um jogo de futebol em sua pequena televisão com antena. O corredor está vazio. Olho para os lados e avanço.
Enquanto o guardinha mequetrefe assiste o seu programa, eu entro por trás dele, verifico onde estão os aparelhos de gravação das câmeras, então, eu me aproximo do cara por trás e acerto um golpe preciso em sua nuca, com a mão em curva. Como uma concha.
Se eu tivesse mudado a posição dos dedos um pouquinho só, teria matado o sujeito. Mas eu não quero matá-lo... Só deixá-lo fora de combate.
Enquanto o guardinha jaz nocauteado em sua cadeira, eu coloco o rádio que ele derrubou em seu colo, assim, quando acordar, poderá achar que teve um pesadelo. De repente, alguém aparece no fim do corredor. Deve ser um médico, porque está com jaleco e pose de médico.
Eu me abaixo, e sem perda de tempo, lido com o aparelho de gravação. Apago todas as imagens da minha chegada e permanência no hospital usando as horas aproximadas para localizar as gravações. Também apago o período em que Wilmara aparece empurrando a minha maca em direção à ala desativada; apago quando ela sai e quando ela volta com comida e itens de higiene.
Dali para frente, eu deixo as gravações como estão. Mas creio que devo sabotar as câmeras próximas da ala desativada, no meu caminho de volta.
Como eu não tenho digitais (e sei disso antes de olhar para os meus próprios dedos), eu não me preocupo em limpar os aparelhos em que toquei. Levanto a cabeça acima da linha do balcão e percebo que o corredor está livre novamente.
Saio do posto, fecho a portinhola com cuidado e me esgueiro de volta ao meu esconderijo, usando os pontos cegos entre as câmeras.
Com um suspiro de satisfação pela tarefa cumprida e bem sucedida, entro na enfermaria deserta, pronto para aquele tão ansiado banho de chuveiro.
Quando vou para debaixo da água, percebo que um dos curativos está empapado de sangue. "Melhor maneirar, Zé ruela". Eu me lavo com cuidado, troco os curativos, sozinho, e no processo, percebo um pequeno ferimento recém-costurado no meu quadril. Com o rosto franzido, eu me enxugo e vou tomar café. Quer dizer, tomar o todinho e comer a banana que Wilmara me deixou.
Não é suficiente para suprir um homem do meu tamanho. Estou certo de que costumo me alimentar muito mais, devido a minha constituição física e gasto de energia... mas por hora, é um banquete dos deuses.
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(Wilmara)
Sei que Macário é um homem ativo. Basta olhar para os músculos, para a pele curtida de sol sob as tatuagens. Basta olhar para as mãos fortes e cheias de calos.
Mas não é fácil descolar uma refeição completa no refeitório, sem dar bandeira. Poderei fazer isso com mais facilidade à noite, com a desculpa de levar o jantar para o meu quarto.
Sim, Macário é um cara forte e decidido, isso tá na cara...
E eu sou invadida por uma miríade de sentimentos conflitantes: desespero, alívio (por avistar uma luz no fim do túnel)... Alívio por intuir que o meu misterioso paciente sabe fazer as coisas... Sabe escapar de situações como a que estou metida.
Bom, ele quase se deu mal. Alguém atirou nele. Mas, passado é passado e nós dois precisamos nos ajudar.
Tento manter a calma e fazer de conta que está tudo certo. Cumpro a rotina de trabalho e me esforço para fingir que não entendo nada do que está acontecendo; especialmente diante do reboliço provocado pelo desaparecimento do Zé Ninguém.
Alan corre pelo corredor, o jaleco se agitando levemente, quando passa por mim e avisa num tom agitado:
- O Zé Ninguém sumiu. Brett está tomando depoimento de todo mundo.
Brett? Assim, tão rápido? Alguém o teria notificado? Eu me dou conta de que o delegado não tem só comparsas, mas olheiros dentro do hospital. Alan, com certeza... Só Deus sabe quem mais. Preciso tomar muito cuidado com o que digo ou faço daqui para frente.
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- Como você não sabe de nada? - Brett muda de posição, ainda recostado sobre a mesa, ao invés de se sentar na cadeira. Uma forma flagrante de intimidar o depoente. Eu, no caso.
Já vi disso naqueles programas de televisão policiais.
- Não sei, não sabendo - respondo com sarcasmo. Mas acrescentou em seguida, a fim de não despertar a sanha de um policial vingativo: - Não aconteceu no meu turno.
- Mas você dorme aqui no hospital, agora - ele me lembra, de um jeito esperto.
- Isso não significa que eu fico zanzando pelos corredores em minhas horas de folga. - É exatamente o que venho fazendo, mas ele não precisa saber disso.
- Estava no quarto, entre o período das seis do dia anterior até as seis da manhã seguinte?
- Estava no quarto, entre as nove da noite anterior até as seis da manhã seguinte. Fui jantar no refeitório. O pessoal é testemunha, se duvidar.
O delegado estreitou os olhos. O desgraçado é dotado do famoso faro policial que tanto vem me atormentando no último mês. - Pode ter visto algo, digamos, suspeito, que quisesse relatar? Como boa cidadã que é...?
-E como boa cidadã que sou, gostaria de saber se posso ir, pois tenho pacientes me esperando...
Ele me mantém no suspense por mais alguns segundos, antes de dizer: - Sim pode...
- Ah, Wilmara? - Ele espera que eu me vire da porta, para acrescentar com perversa satisfação: - Não quer saber como anda a investigação sobre o sumiço de Nelson?
- Se tivesse alguma novidade, creio que você já teria falado. Já que é amigo dele e está tão preocupado com o seu bem estar quanto eu.
Não escapa a Brett que eu tenha dito: "é amigo" e não "foi amigo". Essa é uma armadilha comum que os investigadores da polícia plantam, para ver se o suspeito cai em contradição. Se eu tivesse dito "foi amigo", então seria uma vacilada. Quase uma confissão de que eu sei que Nelson está morto.
Mesmo assim, ele força um pouco mais: - Parece que alguém viu um carro cair do penhasco... Temos uma testemunha que indicou o ponto exato onde devemos dragar a baía.
Eu me viro, simulando uma expressão de horror. Mas não preciso fazer muita força, pois estou mesmo apavorada.
- Acha que ele caiu no mar? - pergunto, num fio de voz.
- Acho que ele foi jogado no mar! - ele responde, em tom contundente. Não desvia os olhos de mim nem por um segundo.
- Mas que coisa horrível! - Eu me apoio no batente da porta. - Não posso acreditar! Meu Nelson... Morto? Mas quem poderia ter feito uma barbaridade dessas?
Percebo em seu olhar que ele quer me bater. Sabe que estou representando. Mas quando tiver todas as provas, aí, ele vai não só me bater, mas fazer outras coisas que vejo em seu olhar animal. E vejo há muito tempo.
Ele quer me fazer implorar para me tornar sua puta, para escapar de ser presa como assassina. Ele prova a minha suposição ao estender a palma da mão virada para mim.
- Conhece o termo: a arte da emboscada civilizada? - Ele não espera que eu me manifeste e acrescenta: - Você ainda vai cair bem aqui, na palma da minha mão, doce Wilmara. E quando cair... Ah, tem muita coisa que quero fazer com você, quando chegar a hora.
Giro nos calcanhares e deixo a sala que Brett está ocupando a fim de interrogar a equipe do hospital. Fica no corredor administrativo. Passo pelo diretor e pela secretária, forçando um sorriso. Eles me acenam de volta. Sigo a passos rápidos para longe daquele monstro. Estou com os nervos à flor da pele e exausta.
Viver assim, tendo que cuidar com o que digo vinte e quatro horas por dia, está consumindo muito da minha energia. Agora entendo porque alguns criminosos sucumbem e se entregam à polícia, antes de serem apanhados. Não aguentam a pressão... Ficar imaginando como e quando será apanhado...
Lembro a mim mesma que não sou uma criminosa, que caí numa fatalidade do destino. Se não tivesse me defendido, agora seria eu quem estaria morta. E se não seguisse em frente, estaria perdida. Ninguém acreditaria em minha inocência. Muito menos aquele tarado.
Sigo para o consultório e procuro me concentrar no que faço de melhor: cuidar das pessoas que precisam de cuidados. Quando estou trabalhando, sinto-me útil e relaxo um pouco. Depois do terceiro ou quarto paciente, porém, vejo uma movimentação anormal no corredor.
Minha assistente me conta que Brett requisitou todas as imagens das câmeras de segurança. Eu fiz todo o possível para evitar as câmeras, mas... E se tivesse deixado algum rabo para ser puxado? Apavoro-me, imaginando que eles vão descobrir tudo o que fiz.
Quando Brett passa pelo corredor xingando alto, tenho a certeza de que escapei mais uma vez. Macário tinha dito para não me preocupar com nada mais do que lhe trazer comida e fingir que tudo está bem. Imaginei que ele estivesse falando da boca para fora, pois está fraco demais para fazer qualquer coisa. Além do que, como ele iria fazer desaparecer as imagens, andando por aí, sem ser apanhado? Claro que não.
Agora, diante da reação do delegado, desconfio que foi exatamente o que o meu misterioso paciente fez. Ele já está mostrando que o nosso pacto de ajuda mútua é para valer. Está cuidando de mim... Cuidando de nós.
Mesmo aliviada, levo um tempo para acalmar o coração. Por quanto tempo mais ficarei levando aqueles sustos? Será assim para o resto da vida? Preciso dar o fora daquela ilha. Desaparecer. Só espero que Macário possa mesmo me ajudar.
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