5 - Pacto entre estranhos

(Wilmara)

Ficamos em silêncio. É perfeitamente normal que uma pancada na cabeça provoque amnésia. Ele levou um tiro na cabeça. Pegou de raspão, mais... Fora o estresse da situação... Ele tem marcas de luta... É normal que fique desorientado.

Zé Ninguém respira fundo, então seu rosto se franze numa careta de dor.

- Costelas - informo.

- Quebradas?

- Possivelmente trincadas ou luxadas.

- Droga... Dá no mesmo.

Então, ele agora entende de costelas...

- Quantas?

- Possivelmente duas. O cara do Raio-X vai levar alguns dias para chegar aqui e fazer o exame. Mas com as faixas de imobilização e repouso à risca, você vai ficar bom logo.

- Acontece que eu não posso ficar aqui.

- Por quê? Se não se lembra de nada...

Ele passa a mão pelo rosto. - E não me lembro, mesmo. Só sei que não posso ficar aqui. Se não tenho digitais, é por uma boa razão, presumo.

Atordoado. Machucado. Desmemoriado. Mas, definitivamente... Inteligente.

Ele faz menção de se apoiar na grade da maca. Eu prontamente o impeço, pressionando gentilmente seu ombro de encontro ao travesseiro.

- Escute... Se está metido em encrenca, posso ajudá-lo. Mas preciso de ajuda também.

Nem acredito que eu digo aquilo, mas a ideia surge assim, do nada...

Ele estreita o olhar.

- O que você quer de mim?

- Nada demais. Só de alguns conselhos.

Ele fez cara de confusão.

- Tudo na hora certa - desconverso. - Assim como está, com os pulmões recém drenados, costelas quebradas, perda de sangue e a cabeça rachada, você não me serve de nada. Por hora, basta saber que estou em posição de te ajudar. Mas você tem que prometer que vai repousar até diagnosticarmos as costelas.

- O que sugere que eu faça? - ele ergue as sobrancelhas grossas.

A ideia impulsiva logo se torna um plano tão louco que chega a ser brilhante. Subitamente animada, tenho consciência de que estou ajudando alguém que precisa e talvez resolvendo os meus próprios problemas. Claro que tenho consciência de que devo estar ajudando um criminoso, assassino serial, ou estuprador...

Resolvo ignorar essa possibilidade.

É um risco que vou correr. Além do mais, se ele me ajudar... Ao menos, se me der uns bons conselhos, vai valer a pena! De bandido para bandido... Sabe, de assassina de marido para... Seja o que ele faça da vida.

Terei uma chance! E o legal é que ele não pode me dedurar, porque também tem o rabo preso. Nós dois estamos atrelados um ao outro. Por enquanto, podemos nos aliar. E só Deus sabe o quanto estou precisando de um aliado agora; um que saiba jogar pesado e me ensinar a mesma coisa para sair da fria em que me meti.

Ele também está numa fria e não pode sair da ilha sem a minha ajuda.

Tenho um sobressalto ao perceber que ele está me olhando fixamente.

- Doutora?

- Eu... Você pode ficar na ala em construção do hospital. Está desativada. Ninguém vai lá. Permanece trancada. Mas eu tenho acesso à chave. Posso cuidar de você lá, no contraturno. Ninguém vai saber. E quando você estiver bom o suficiente, poderá partir. Além do mais...

- Além do mais...

- Se fugir agora, do jeito que está não vai muito longe. Além do mais, Brett irá mandar fechar a ilha.

- Brett?

- O delegado que veio aqui tirar as suas digitais.

Agora ele se dá conta da gravidade da situação. Talvez nem soubesse que estamos numa ilha. Um pesadelo logístico para qualquer bandido em fuga.

Com ou sem digitais, o delegado pode cavar mais fundo com o DNA e despertar alguns tubarões adormecidos, que virão atrás dele. Por outro lado...

- Ok - responde ele devagar. - Eu concordo, não tenho escolha. Mas quero saber exatamente o que espera de mim.

- Alguns conselhos, nada mais. Eu também me meti numa encrenca, mas não vamos falar disso agora. Tenho que dar um pulo na sala do vigilante e pegar as chaves da ala em construção, sem despertar a atenção dele.

Olhou no relógio de pulso.

- Se eu quiser tentar, tem que ser agora. - Com o ânimo renovado, guardo o lanche e o livro na gaveta do criado-mudo. - Quanto a você, se alguém aparecer, finja que ainda não acordou.

- Doutora - ele me chama, quando estou quase saindo. - Não está tão encrencada assim. - Zé sorri, diante da minha confusão. - Se estivesse, não adiaria a nossa conversa.

- Acredite, estou muito encrencada. Mas até agora, consegui ganhar tempo. E você não me serve de nada assim, debilitado, muito menos preso. Nossa prioridade é esconder você dos tubarões que rondam as águas atrás do seu sangue.

Nossa, mandei bem na metáfora... Acho que vou chamar a minha súbita criatividade de "o renascimento da esperança".

Saio rapidamente para o corredor, deixando-o matutando qual pode ser a encrenca em que me meti, e para a qual ele prestará... Consultoria. Sabe, eu matei o meu marido e joguei o carro com o corpo dentro, do alto de um penhasco. Não sou uma bandida de primeira?

Saio da penumbra para a luz brilhante do corredor principal, com a mente fervilhando em estratégias para pegar aquele molho de chaves sem que ninguém veja. Não me ocorre nenhuma, de modo que decido agir conforme as coisas se apresentem.

As coisas não se apresentam muito bem, de cara. O vigia que devia estar na guarita, não está. Normalmente, eu consigo enrolar o cara, pois é um rapaz boa gente... Mas o que está na guarita hoje não é nenhum dos vigias que eu conheço.

Não posso entabular uma conversa com ele, como sempre faço. Decido improvisar. A guarita fica bem no centro do prédio, para onde todas as alas convergem. O vigia desvia os olhos frios da televisão pequena, preto e branco. Não fala nada.

- Oi, você é novo aqui? - pergunto, sentindo-me a Martha/Ruby Handhouse de Jumanji. Algo do tipo: "Oi, rapazes! Parece que me perdi!"

Ele não responde. Fica lá sentado, me encarando... Nada promissor. Parece que vai dizer a qualquer instante: "Oi, mocinha, o que está fazendo aqui sozinha?"

Não, eu não vou jogar o cabelo... Cheia de autoridade, endireito as costas.

- Sou a Dra. Wilmara Arriaga. Estava passando pelo corredor da Ala Sul II e percebi que a janela da tesouraria está aberta. O vento da noite balançou as cortinas, por isso eu reparei. Pode ser que a pessoa que trabalha lá já tenha fechado tudo, mas com o adiantado da hora, não seria bom você dar uma olhada?

Ele continua sentado, sem se mexer.

- Bom, o outro vigia que trabalha no seu lugar, o Altir, nunca deixa de fazer a ronda. Mas se você não quer deixar de assistir a sua TV, para trabalhar... E acho que é para isso que você é pago... Quem sou eu para atrapalhar.

E continuo andando rumo à próxima ala.

Não demora muito, e o vigia mal educado se levanta e sai. Dou um tempo para ele se afastar e volto correndo. Pego o molho de chaves e disparo pelo outro corredor. Tenho que dar uma volta mais longa para alcançar a ala desativada, se quiser evitar o vigilante no retorno.

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Volto correndo e começo a pegar as coisas que o paciente vai precisar. O Zé leva o maior susto quando abro a cortina assim, de supetão. Como uma louca, pego bandagens, sacos de soro, agulhas e seringas, e vou jogando tudo em cima da maca. Em cima dele, para ser mais exata.

- Segure isto para não cair - digo, ao jogar os esparadrapos. Eu me posiciono por trás da maca e começo a empurrar, com uma manobra brusca. Zé tem que agarrar as coisas em cima dele, para não caírem no chão.

Lembro-me do sanduíche e do livro e coloco em cima dele, também. Então, saio correndo para fora da UTI. Tenho que aproveitar que a enfermeira sumiu para dar o seu cochilo da noite, ou... Seja lá o que ela faz. Normalmente não tem ninguém a postos na enfermaria àquela hora.

Empurro a maca sem muita delicadeza pelo corredor. Lembro-me da Cameron Diaz levando o Tom Cruise para fora do hospital, em Encontro Explosivo. No meu caso não é um homem de tamanho médio, é um mastodonte. Um... Jack Reacher, tal e qual o ator Alan Ritchson... Só que careca e tatuado. Eu avanço sem muita delicadeza pelo corredor, a caminho da ala em construção. É com alívio que encontro as portas duplas de acesso. Perco algum tempo testando as chaves do molho. Zé levanta a cabeça da maca e me encara, com a testa franzia. Atrás, uma lâmpada pisca, fazendo tremular a luz. Finalmente consigo destrancar a corrente grossa e as portas duplas se abrem quando eu empurro a maca para dentro.

- Fique aí quietinho, que eu já volto. Tiro a chave que serve do molho e volto correndo para colocar o molho de chaves na guarita do vigia. Estou com sorte, ele ainda não voltou da ronda. Penduro as chaves e saio de lá correndo. Já estou suando de correr pelo prédio de um lado para o outro.

Vou para ala em construção e fecho as portas, puxando a corrente e trancando para o lado de dentro. A maca está atrás de mim. Zé assiste a minha movimentação, pensativo

- Sentiu minha falta? - brinco, enquanto empurro a maca devagar pelos enormes corredores desertos, alguns novinhos em folha.

Ele apenas levanta os olhos para mim, com um quê de cinismo.

Levo a maca para o extremo oposto da construção, cantarolando baixinho. O homem levanta os olhos para mim com incredulidade, por um instante, mas nada diz.

Aquela parte do prédio tem a melhor vista do mar... As janelas amplas de vidro permitem que se possa ver toda a extensão da praia, além do penhasco. Encosto a maca de modo que ele tenha a vista para entretê-lo, mas que não possa ser visto do lado de fora.

Aquele é ponto mais próximo do banheiro coletivo da ala.

- Já volto! - aviso, enquanto verifico se o banheiro está funcionando. Abro a torneira e sai água. O chuveiro também está ok. O botão da descarga faz um barulhão, mas a água desce.

O lugar está sujo, mas graças ao Bom Deus Misericordioso, é habitável!

Imagino que o Zé logo vai começar a se exercitar, andando do quarto ao vaso sanitário, sozinho. Não agora, claro, mas em breve... Por ora, preciso ajudá-lo com tudo o que eu puder. Volto para o quarto e me deparo com ele sentado na maca, observando o mar lá fora.

O homem não espera por ninguém, não é mesmo? Dou uma tossidinha e me aproximo. Ele apenas inclina a cabeça, demonstrando que está consciente da minha presença.

- Depois vou trazer alguns produtos de higiene pessoal - informo em tom ameno.

Um homem como aquele há de querer se barbear, para não destoar da careca... Franzo o nariz só de pensar nisso. O que tenho eu a ver com a careca do homem? Mas é engraçado imaginá-lo com uma barba enorme e desgrenhada, sem nenhum cabelo em cima do côco.

Apoio o quadril na maca.

- Está tudo seguindo nos conformes - tento animá-lo. - Tenho que ir, mas volto logo. Só peço que não ande por aí no começo, sem ajuda, pois pode cair e não conseguir mais se levantar.

Ele me lança um olhar vazio.

Engulo em seco

- Tenho que ir, Zé.

- Macário - ele me corrige de pronto.

Meu queixo vai ao chão.

- O que você disse?

- Acho que meu nome é Macário - ele explica, piscando um pouco.

Sorrio de orelha a orelha. - Vejo que está começando a se lembrar.

Ele balança a cabeça, muito sério. - Talvez... Por que sinto que não é meu nome verdadeiro?

- O que quer dizer?

Ele fica calado um tempo, olhando para o mar lá fora. - Taí, eu não sei o que quero dizer.

- Não esquenta a cabeça, apenas trate de descansar - dou-lhe um tapinha amigável na cabeça e me afasto. Ele fica perplexo.

O meu querido Zé pode não se lembrar de quem é, mas de uma coisa tenho certeza: ele não faz o tipo que permite tapinhas na cabeça.

Paro no corredor para olhá-lo uma última vez. Tenho medo de não encontrá-lo, quando voltar. Ele fica lá, parecendo solitário e um tanto perturbado por algo em seu passado nebuloso... Deve ser triste ter apenas o mar por companhia.

A luz da Lua começa a iluminar o interior da construção, deixando o ambiente fantasmagórico. O lugar completamente vazio e inacabado torna tudo mais triste.

"Não, Macário não estará sozinho", eu me corrijo. Terá a companhia de seus fantasmas pessoais. Mas prometo que será por pouco tempo. Estou decidida a voltar e tentar animá-lo. Não sei exatamente o que me move, mas quero dar conforto a alguém que precisa, já que quando precisei, eu mesma não tive conforto algum.

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