3 - Alguém ronda
(Wilmara)
Permaneço ocupada no ambulatório até o final da tarde, quando Alan aparece para me render. Ele prefere o turno da noite, porque paga mais. Por mim, está ótimo. Prefiro dormir à noite. Além do mais, gosto do ambulatório. Gosto da oportunidade de ajudar as pessoas da vila.
Termino o meu expediente com o coração mais leve, especialmente porque consegui resolver a questão da tomografia, junto ao instituto. Falei com o responsável técnico por volta do meio-dia; duas horas depois, ele entrou em contato para dizer que basta o diretor do Hospital agendar com o pessoal da Cruz Vermelha para trazer o técnico e o aparelho até Tilly-Ati.
Antes de partir para o sossego do alojamento, decido fazer uma última ronda junto aos pacientes internados. Entre eles, quero dar uma boa olhada no Zé Ninguém. É o único paciente na ala intensiva, portanto, está sozinho. Sinto que devo dar a última verificada.
Tomo o maior susto quando vejo o delegado ao lado da maca do paciente; trazendo para a ala intensiva todas as bactérias e vírus da rua.
- O que pensa que está fazendo aqui? - pergunto, indignada. Sinto uma vontade irracional de defender o paciente daquela presença ameaçadora.
- Estou fazendo o meu trabalho - ele continua imóvel diante da cama, apenas sua cabeça inclina e ele me olha de lado. A sobrancelha alteando ligeiramente.
- Sei... - respondo, zangada. - Como pode ver, o paciente está desacordado. Agora saia!
Ele abre um sorriso asqueroso para mim, medindo-me com o olhar.
- Se pensa que vim até aqui sem permissão, engana-se redondamente. Alan, o médico responsável por este paciente, foi quem me autorizou.
Disfarço o espanto.
- Ao contrário de você, ele entende que preciso de informações para fazer o meu trabalho. O seu Zé Ninguém pode ser um assassino.
Ele se aproxima de mim, contorna devagar e segue rumo à saída. - Em todo o caso, - acrescenta, antes de sair - eu já fotografei as tatuagens. Podem constar em algum banco de dados. Além das placas...
- Placas? - franzo as sobrancelhas, sem compreender.
- Sim, as placas militares. Já mandei as imagens para a Interpol. - Brett para no umbral da porta e comenta: - Não acha curioso que o seu misterioso paciente não tenha digitais?
Não tem? Eu me viro para encará-lo. - Como você mesmo disse, o paciente é de Alan, não meu.
Brett ignora o comentário.
- Conheço alguns tipos que não têm digitais... Espiões, agentes, assassinos profissionais, mafiosos... Eles tiram para não serem identificados ou localizados. Geralmente, são bandidos de ficha longa. - Ele dá uma risadinha. - Muito longa.
Brett sai sem esperar qualquer resposta.
Viro-me para o paciente imóvel na maca. Vejo que os dedos de suas mãos estão sujos com o material que Brett usou para tentar coletar as digitais. Pego gaze, álcool e começou a limpá-lo. Então, penso, porque não dar um banho nele? Assim, posso examiná-lo melhor.
Na sala ao lado, pego sabão antisséptico, duas toalhas, esponja e uma bacia que encho com água da torneira. Na gaveta do criado mudo, encontro tesoura e esparadrapos. Corto as bandagens feitas pela equipe da noite. Abro a camisola de hospital, de par a par.
O desconhecido está ali, nu. E eu fico sem fala... Uau. Eu estou babando. O Zé Ninguém é um baita Zé Ninguém... Um belo espécime, bem dotado...
Sou tomada pelo medo de ser surpreendida babando em cima dele. Ou o que é pior, que o Zé acorde durante o banho. Pensando nisso, eu me apresso em terminar. O tempo todo acossada pela culpa, já que lavar e secar o paciente é função da enfermeira, ou de um acompanhante, em casos extremos. No entanto, sinto que não devo deixá-lo aos cuidados de outra pessoa, ou alguém pode se machucar. Ele, ou a pessoa - eu ainda não sei quem corre mais risco.
Aproveito para analisar as tatuagens. Eu o viro para lavá-lo nas costas. Passo um trabalho e só consigo virá-lo meio de lado. Quer dizer, inclinado. Ele é muito grande. Eu tenho prática em lidar com pacientes, mas este é muito pesado mesmo.
Consigo ver a mais proeminente das tatuagens. Localizada abaixo do pescoço, na parte de trás, entre as omoplatas. É a face elaborada de um dragão vermelho com olhos verdes cor de jade, apenas olhando... Na minha direção. Uma das asas recolhidas e a cauda, viradas para trás; a outra asa esticada, abrangendo o ombro. Parece estar à espera de algo, ao invés de expelindo fogo, como a maioria.
Limpo rapidamente as costas dele, antes que o corpo volte à posição e minha mão fique presa. Pressiono o seu corpo de volta à posição original e mergulho a toalha na bacia. Desfaço os curativos da cabeça, depois trato dos cortes e lacerações. A impressão que tenho é que este homem foi atacado brutalmente. E que revidou na mesma medida.
Lavo e enxugo o peito dele... Entretida novamente pela tatuagem do dragão que vem das costas e se insinua até a frente - a asa aberta tomando todo o lado direito do ombro e do peito, na frente. É como se o abraçasse pelas costas e o protegesse.
O Zé Ninguém tem a pele lisa, mas quando olho mais para baixo, vejo os pelos em forma de triângulo invertido ao redor do... Proeminente equipamento.
Sou acometida por um impulso maluco de lavar aquela parte da sua anatomia com reverência e muito, muito carinho. Ai, senhor... Procuro me controlar e cubro sua nudez até a cintura.
Ele tem outras tatuagens espalhadas pelos braços, tão emaranhadas, mal consigo identificá-las isoladamente. Formam um mosaico colorido e ininteligível. No alto do peito, a tatuagem de um símbolo estranho e elaborado me chama a atenção. Sinto um arrepio diante daquele peitoral enorme e trabalhado. Termino de limpá-lo, abreviando o contato.
Estou colocando um novo saco de soro com nutrientes, no acesso do braço, quando Alan entra de repente. Que sorte que já acabei.
- Olá! - diz ele, espantado. - Ainda por aqui?
- Estou terminando - respondo, afastando-me para que Alan possa examiná-lo.
- Alguma novidade? - ele pergunta, inclinando-se para o Zé Ninguém.
- Não, continua inconsciente. A única novidade foi você ter deixado o maluco do Brett Andrews importunar o paciente sem que alguém o supervisionasse.
- Não pensei que eu precisasse prestar contas a você. - Alan franze a testa. - Desculpe não ter avisado. É que eu estava no consultório, e você sabe como o Brett pode ser um purgante quando quer alguma coisa.
Analiso rapidamente a situação. Primeiro Alan demonstra raiva. Depois, tenta se desculpar e se justificar. Que sujeito de caráter fraco.
- Sei. - Cruzo os braços - Você autorizou o delegado para se livrar dele. Pensa, ele entrou numa unidade de terapia intensiva, e tirou até as digitais do cara. E sem ao menos uma enfermeira presente.
- Tá, já foi! Você fala como se ele tivesse tentado quebrar a mão do sujeito de propósito!
Fico chocada pela falta de perspectiva do outro médico. A primeira coisa que deveria passar pela cabeça dele são os germes que o delegado trouxe para dentro da UTI. O que acontece com aquela gente que deixa Brett fazer tudo o que tem vontade? Ah, sabemos a resposta. Brett é filho do homem mais poderoso do Caribe, um ditador que deu o golpe em Tilly Aty há décadas. Conhecido como El Presidente.
Alan tem um consultório particular frequentado pela família Andrews e os amigos ilustres e poderosos. Então, antes de ser representante da lei, Brett Andrews é filho da única lei que aquele lugar conhece.
Sacudindo a cabeça, lanço um último olhar para o paciente antes de sair; me incomoda deixá-lo sozinho com Alan ou qualquer outro. Atravesso os corredores e alcanço o alojamento. Quando toco a maçaneta, porém, congelo de susto. A porta está entreaberta. O gancho ligeiramente torto. Respiro fundo e empurro até escancará-la. Procuro o interruptor de luz e acendo de imediato.
O meu quarto se ilumina. Eu olho ao redor.
Tudo. Quase. Normal.
Tento controlar a minha respiração rasa. A bicicleta continua encostada na parede, só que numa posição diferente. Óbvio que alguém mexeu nela. As gavetas estão abertas; os papeis dentro, revirados; as calcinhas emboladas e penduras para fora. Isso por si só me causa um calafrio de nojo - as mãos de algum doente tocaram nas minhas calcinhas. Peguei-as numa braçada e joguei no cesto de roupa suja.
De repente, eu me lembro da chave do cofre de banco, e corro para o colchão. Fiz um pequeno rasgo embaixo, onde escondi a chave. Agacho-me do lado da cama e tateio a parte inferior por angustiantes segundos até que meus dedos tocam na peça fria.
Não acharam, que alívio! Solto a respiração devagar, endireito as costas e me levanto. Onde vou esconder a chave, agora? Caminho até a caixa de bijuterias. Pego a corrente de platina que ganhei de minha falecida mãe e penduro a chave ali, como um pingente. Não vou mais tirar do pescoço.
Arrumo as coisas, com a certeza de quem foi o invasor. Brett Andrews é o único com interesse em vasculhar as minhas coisas. Pego a nécessaire e vou para o chuveiro coletivo. Durante o trajeto, rezo para que o delegado não tenha encontrado o que estava procurando. A boa notícia é que se revirou o meu quarto, é porque não encontrou nada na casa que deixei para trás... O que significa que consegui limpar bem os vestígios de sangue. Também significa que ele não conseguiu uma testemunha ocular. Nem imagina onde foi parar o carro de Nelson.
Por sorte, não tinha GPS.
Uma coisa é certa, o delegado não fez questão de disfarçar que está na minha cola. Claro, ele está sentindo a falta do grande amigo. Das festas e orgias em que participavam. Um escondendo os segredos do outro. Aposto que ele vai ter mais trabalho para trair a esposa, daqui para frente.
Estremeço de medo do que virá a seguir. Ele está me cercando. Estou desesperada. Não sei quanto tempo vou aguentar sem largar tudo e pegar a primeira balsa... Fugir para qualquer lugar... Qualquer uma das ilhas...
Ideia maluca, eu sei. Mas situações desesperadas exigem medidas desesperadas. Preciso de um plano de fuga, para o caso de ter que debandar da ilha rapidamente. A consciência do fato não torna tudo mais fácil. Não é automático pensar como uma criminosa experiente - a maneira correta de agir para escapar das autoridades.
Preciso de ajuda.
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