1 - Insetos e lâmpadas
(Wilmara)
Eu já fui descrita como a alma da festa. Gostava de dançar, cantar, mas principalmente, de rir. Todos desejavam estar perto de mim - diziam que eu possuía um brilho especial.
Particularmente, eu acho que não era nada especial. Apenas amava a vida e tinha um bom astral. Bem, estamos falando da antiga Wilmara. A versão atual nem lembra aquela. Hoje, sou reclusa, desconfiada, apavorada, vivendo apenas para o meu trabalho... Para os meus pacientes. Que mais posso esperar? Quando chego em casa, só recebo acusações, violência e dor.
Eu não tenho paz em casa. Só no trabalho.
Ah, claro que existe uma história por trás da minha mudança de personalidade. Inclusive explicação: costuma acontecer com mulheres cheias de vida. Fui cobiçada por diferentes homens. Eu não entendia que a minha alegria de viver disparava o gatilho da conquista neles. Sabe... existem caras que desejam a mulher que todos querem ter.
Acontece que o sabor da conquista logo acaba, e o sujeito sente que precisa de mais. De repente, ele quer conquistar outros troféus...
Eu não percebi tudo isso, porque me iludi com o pacote embalado para presente. Diante dos meus olhos sonhadores, Nelson Arriaga parecia um verdadeiro presente para as mulheres. Espirituoso e cativante, ele conseguia fazer qualquer mulher se sentir especial.
O que nos aproximou, presumo, foi o caso da luz que atrai a mariposa.
Hoje sei que ele quer o meu brilho como um parasita que sobrevive sugando a luz de outro organismo... Sugando a minha vida.
O companheiro que elegi para o meu coração revelou-se outro homem, depois que me conquistou. Quis me manter trancafiada e longe da luz... Eu era como um daqueles jardins bonitos que vai se acabando por falta de cuidado e de irrigação, até que o "dono" deseje arrumar outro jardim para explorar. Um jardim novinho em folha com, digamos, 18 anos ou menos, peitos grandes, e bunda firme.
A versão atual de Nelson não tem nada do homem vibrante e gentil que ele foi antes do casamento. Tornou-se um homem instável, possessivo, passou a beber mais (ou a não esconder mais as bebedeiras). A nossa relação se tornou tóxica num curto espaço de três anos.
Não foi de cara que seu pior lado se manifestou. Levou alguns meses, e quando começou, foi por meio dos detalhes, sinais e indícios que me deixavam na dúvida se estava realmente vendo o que estava vendo. Eu me casei com um homem que julguei ser um galante cavaleiro... Mas é pura e simplesmente um ser asqueroso e rastejante.
Num curto espaço de tempo, eu estava sendo atormentada e espancada. Meu marido foi frio e calculista o bastante para não deixar marcas físicas visíveis. As surras de toalha molhada, os socos fechados sob as costelas, os objetos enfiados em minhas partes mais íntimas.
O aborto...
O sexo passou a ser estupro. E ele adorava quanto mais me torturava. Era como ser cozida em fogo lento. Eu só percebia que estava sendo destruída, quando era tarde demais para fazer alguma coisa. Antes, as brigas, seguidas dos pedidos de desculpas mais tocantes, aquietavam o meu coração por um tempo; fazendo com que eu tivesse esperança de que ele fosse mudar.
Até que os pedidos de desculpas não convenceram mais. Até que ele já não se esforçava em esconder o seu lado violento e controlador - e tais comportamentos eram precipitados e/ou amplificados pela bebida. A personalidade de Nelson foi se deteriorando muito rapidamente, na mesma proporção em que o consumo do álcool se intensificava. Foi aí que eu percebi: o brilho inicial; o jeito cativante e especial de Nelson vinha da euforia do álcool.
E como os parecidos se atraem, ao contrário do que diz o ditado, Nelson possui um companheiro de bebedeiras... Não menos canalha. O cara é rico, acostumado a ter tudo, e que ainda por cima ocupa uma posição como homem da Lei.
Brett Andrews é o delegado da ilha de Tilly-Aty.
Os dois são amigos de infância. Unha e carne. Fazem tudo ou quase tudo juntos. Drogam-se juntos. Participam de orgias, juntos. O infeliz não sai da minha casa.
De vez em quando, Brett lança olhares lascivos na minha direção. Nelson já sugeriu que eu deveria agradar o seu amigo... Uma vez, ele me deu uns tapas na frente dele. Os dois riram muito. E quando tentaram me agarrar e rasgar as minhas roupas, eu consegui me libertar por obra de Deus e me tranquei no banheiro.
Nelson tentou me convencer a sair, dizendo que ia ser gostoso... Que eu ia adorar ter dois paus dentro de mim... Quando percebeu que nada do que dissesse me faria sair lá de dentro, ele berrou, chutou a porta e chamou por telefone uma garota de programa. Os dois transaram com ela enquanto eu escutava tudo, trancada no banheiro.
Eu adormeci exausta dentro da banheira, segurando uma navalha.
Eu só saí na manhã seguinte. Eles já tinham partido. O que restou da festa anterior, para eu limpar, foram as garrafas vazias de bebida, camisinhas espalhadas e muito fluídos secos suspeitos nos móveis que eu comprei e paguei a prestação (sozinha, eu paguei tudo sozinha).
Ao longo da semana, os dois agiram como se não tivesse acontecido nada. Mas eu sei que eles estão planejando alguma coisa. O problema é que não posso ir à polícia, porque Brett é a polícia.
Há dois dias, Nelson me disse que eu me acostumaria em receber as atenções de Brett e de todos os amigos que ele quisesse trazer em casa. Porque ele gostava de assistir e se eu o amava, deveria transar com seus amigos para agradá-lo.
O problema, eu lhe disse, é que eu não o amo mais e quero o divórcio. Como resultado, recebi um soco em cheio que me obrigou a cobrir o roxo com maquiagem.
- Você nunca vai me deixar - ele disse, prensando-me na parede. - Se tentar, eu te mato. Nós dois matamos.
Então ele me estuprou. Durante o ato, Nelson envolveu o meu pescoço e me estrangulou. Quase me matou... Queria me mostrar que tinha o poder de vida e morte sobre mim. Eu fiquei dois dias sem conseguir sentar e sentindo a minha garganta. Passei a usar cachecol em pleno verão.
Eu vivo com medo, sem saber se estarei viva para ver o próximo nascer do sol.
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A insatisfação humana tem dessas coisas. Algumas pessoas tentam destruir aquilo que não podem ter, ou que não podem ser. E destroem de diferentes formas: depreciando, criando intrigas, isolando a pessoa, ou fingindo que a ignoram. A luz, seja de onde for, atrai, mas também assusta e causa ciúme, inveja e raiva.
Os insetos não atacam lâmpadas apagadas, certo?
Eu procuro levar a vida da maneira mais simples possível. Trabalho como clínica geral do Hospital Memorial de Tilly-Aty. A única unidade de saúde existente em toda a ilha.
O casarão ocupado pelo hospital foi construído na década de 1950, em formato de "u", com dois andares e duas alas laterais simétricas. Quando olho para a fachada suntuosa e tão antiga, em meio ao despojamento reinante na ilha, isso sempre me faz lembrar do casarão de Scarlett Ohara, em "...E o Vento Levou". Os plantios de cana de açúcar à perder de vista, reforçam o cenário. Formam uma moldura para a construção.
Na ala esquerda, ficam os alojamentos para os profissionais de saúde solteiros. Onde eu morei antes de me casar. Na ala direita, eternamente em reforma, deveria ser destinada aos novos leitos. Mas a economia da ilha é pobre e a construção está parada há anos, com apenas alguns cômodos prontos. Os pombos fizeram melhor uso das dependências.
Eu costumo me esconder lá, quando quero ficar sozinha.
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Acordo de repente com o coração acelerado, e sem ar. Sento na cama, respirando fundo. Mergulhado na escuridão, o quarto pouco contribui para que eu me situe... Mas um barulho vindo da cozinha me põe em alerta no mesmo instante. Levanto-me como uma mola e corro até a porta entreaberta. Vejo pela fresta que a luz da cozinha está acesa.
Nelson deve estar fuçando na geladeira atrás de mais cerveja... Confiro as horas no relógio digital de cabeceira: 3:33h. Fico arrepiada diante de tantos "três". Parece-me um mau presságio.
De repente, sinto uma raiva surda me dominar. Ele chega daquele jeito, sem se importar pelo fato de que eu precise dormir bem para pegar o turno da manhã. (Eu estarei no turno da manhã, com certeza, mas não descansada).
- Cacete! Wilmaraaaa! - berra Nelson, sem se importar se eu estava dormindo ou não. - Cadê a porra da cerveja?
- Você acabou com tudo, lembra? - berro de volta, desabando sentada na cama.
- Não fala comigo assim, sua puta! - ameaça ele, do corredor.
A porta abre abruptamente, batendo na parede com violência. Ergo o olhar e me deparo com Nelson... Ele está com uma cara esquisita, olhando fixo para mim. Na mão esquerda, vejo uma faca de cozinha. O fedor do álcool me alcança e quase me tira o ar.
Depois de aguentar tantos maus tratos, por tanto tempo, parece que o medo do perigo desaparece... Estou meio que anestesiada, possuída, ou, simplesmente não me importo mais com as consequências.
- Seu bêbado desgraçado! - Despejo todo o meu ultraje naquela afirmação.
Um desabafo de quem não aguenta mais.
Ele ergue as sobrancelhas e cambaleia um pouco. - Estou avisando, vadia, se continuar me desrespeitando, eu vou te estripar como uma porca, que é o que você é. Além de porca, é burra!
Eu me levanto lívida, tremendo. Sinto uma avalanche de emoções se entrechocando dentro de mim. Algumas ditadas pela razão, que manda sair correndo, mesmo encurralada no quarto, ou ao menos moderar a língua para não desafiar a besta.
Outras emoções são ditadas pela fúria galopante que me manda lhe arrancar a cabeça de cima ou a de baixo... A primeira que eu conseguir, antes que ele me mate. E quanto mais o lado irracional toma conta, mais o lado racional assiste a cena sair de controle e o pânico crescer... Como um telespectador vendo um filme de terror e tentando alertar a protagonista.
A minha fúria é tão grande que a voz, a princípio, sai num murmúrio entrecortado... Daí, vai crescendo: - Você me bate, me estupra, fica com todo o meu salário, gasta tudo em bebida... Você é um monte de lixo!
Ele estreita os olhos, como se não acreditasse no que eu acabei de lhe dizer.
- Além de burra, está louca.
- Seu estuprador!!!
Ele gargalha diante do que considera um absurdo.
- Somos casados! Não é estupro quando fodo a minha própria mulher, caralho! Mesmo que essa xota seja pior do que qualquer coisa que já usei. Mas é minha, pra eu fazer o que eu quiser!
- Já chega!
- O que quer dizer com isso? - ele pergunta, num tom ameaçador, e dá um passo adiante.
- Quero você fora desta casa! - aponto para fora. Meu corpo todo treme.
- Está no meu nome, belezinha! - ele sussurra, num tom odioso.
Arregalo os olhos.
- Mas fui eu que paguei todas as prestações. E posso provar!
- Não, se estiver morta - ele avança para cima de mim com a faca, mas se desequilibra, pois está bêbado, e acaba caindo por cima de mim.
Nós dois vamos ao chão, lutando pela posse da arma. A adrenalina me dá forças. Agarro firme o punho dele, porque sei que se ele conseguir se firmar, vai me esfaquear até que eu vire uma peneira. Enfio as unhas em seu pulso. A distração da dor faz com que ele solte a faca, que escorrega entre nossos corpos. Ele tenta agarrá-la outra vez, eu também, e para afastá-la de mim, empurro a faca na direção dele.
Ela se crava em seu abdome. Nelson estremece, por um segundo os olhos parecem ficar sóbrios. Ele me olha incrédulo. Então cai em cima de mim, morto.
Passo os próximos minutos tentando sair debaixo dele. Eu me contorço desesperada para respirar. Quando finalmente consigo, empurro cegamente com os pés até bater com as costas na cama. Fico ali, sentada no chão, sei lá quanto tempo... Chorando e em choque. Até que o sangue espalhado pelo chão, como uma piscina rasa, me faz perceber que estou sentada no sangue do meu marido.
E assim que o choro cessa, eu passo o resto da madrugada articulando um plano maluco. Estou completamente desconectada da realidade ou... Conectada até demais!
Uma voz interior me diz com clareza o que vai acontecer se eu for apanhada. Não sairei viva da cadeia. Brett Andrews irá fazer coisas horríveis comigo. Ele irá me torturar e matar. Ele é o delegado e melhor amigo de Nelson. Como posso eu ligar para ele agora e dizer que o seu amigo tentou me matar?
Ele é quem vai me matar!
Na melhor das hipóteses, ele me prende por assassinato. Eu fico numa cela, indefesa, e à mão, para que ele faça comigo o que bem quer.
Não adianta dizer que sou inocente. Que foi legítima defesa. Eu serei a assassina do pobre Nelson Arriaga.
Diante do cenário, deixo de lado o certo e o errado e penso só na minha sobrevivência. Começo a me mexer como se estivesse no piloto automático. Envolvo o corpo na cortina do banheiro e arrasto até a garagem, coloco no banco de passageiros, inclinado, para que não apareça pela janela. Volto para dentro e começo a limpar a trilha e depois, o quarto ensanguentado. Tomo um banho completo. Pego a roupa de ginástica e visto, tiro a bicicleta e coloco no bagageiro do carro. Depois, volto para dentro de casa e visto por cima da roupa de ginástica, a roupa de Nelson. Prendo os cabelos e coloco o boné dele. Sentada, atrás do volante, ninguém que me veja irá perceber que Nelson está bem mais baixo em estatura. Esfrego o lápis de olho no rosto, para que pareça uma barba de um dia, como ele costuma manter.
Por sorte, as casas dos vizinhos ficam distantes e os berros não devem ter sido ouvidos. Saio dirigindo o carro de Nelson, rezando para que nenhum vizinho espie pela janela. E se espiar, espero que não preste muita atenção no Nelson fake ao volante.
Dirijo por dez quilômetros, até uma das praias mais perigosas e desertas, cercada por imensos penhascos. Estaciono, e começo a limpar as digitais. Tiro a roupa de Nelson e pego a bicicleta do bagageiro. Jogo as roupas do meu marido dentro do carro. Com a manga da blusa cobrindo a mão, desprendo o breque, engato a marcha e endireito o volante.
Puxo e posiciono o corpo de Nelson ao volante. Saio e me inclino pela janela aberta do motorista para puxá-lo mais um pouco, fecho o cinto de segurança ao redor de sua cintura... Estou inclinada sobre ele, tentando soltar o freio, quando Nelson se mexe com um gemido e abre os olhos.
Ele olha diretamente para mim, surpreso, e faz menção de me agarrar. Solto o breque, travo a porta e me afasto. Corro para a parte de trás e empurro o carro pela ribanceira. O veículo continua sozinho com o impulso, enquanto Nelson luta com o cinto de segurança. Os faróis do carro estão apagados e o veículo cai no mar e afunda como uma pedra, muito rápido - e de maneira quase invisível na escuridão da noite.
Por algum tempo, fico parada, olhando para o mar escuro, ouvindo as ondas baterem contra o penhasco. Depois de quinze minutos sem que Nelson venha à tona, respiro pela primeira vez, eu acho. Caminho com pernas trêmulas até a bicicleta; monto nela, desajeitada e saio pedalando de volta pra casa.
O percurso é longo, de modo que já está amanhecendo, quando finalmente alcanço o bairro. Por sorte, bem no horário em que costumo sair para pedalar. Se alguém me ver, não vai estranhar.
Dito e feito, alguns vizinhos me veem passar e cumprimentam. Aceno de volta, simulando despreocupação. Só eu sei o quanto me custa fingir que tudo está bem.
Guardo a bicicleta na garagem e corro para verificar se, à luz do dia, a limpeza da casa foi completa. Termino de arrumar as coisas que caíram durante a luta. Passo um esfregão com alvejante no chão... E é tudo o que posso fazer, por enquanto.
Tão logo chegue ao hospital, preciso encontrar um material de limpeza específico, que remova sangue. Para o caso de o delegado arrumar um mandato e verificar a casa com luminol. Por sorte, o chão não é de madeira e sim, concreto polido.
O pânico faz com que eu limpe a casa e tome banho mais de uma vez... Taco fogo na roupa que usei quando lutamos pela faca, usando a grelha no quintal. Lavo a faca e devolvo para o faqueiro.
E por último, deixo uma jarra de café cheia, na cafeteira, como sempre faço para o Nelson, antes de sair. Vou para o ponto de ônibus, atrasada para o trabalho. A desculpa é que eu sempre vou de carro, e dessa vez, pelo visto, Nelson saiu com o carro e não voltou.
Deixo passar um dia... Na manhã seguinte, vou à delegacia para dar queixa do desaparecimento do meu marido. Brett fica agitadíssimo. Me bombardeia de perguntas, fazendo-me repetir vinte vezes a mesma sequência de fatos. Como ensaiei, antes de sair de casa, eu repito, sem entrar em contradição.
A romaria do asqueroso delegado tem início - da chefatura para a minha casa e vice-versa. Ele passa a investigar por toda a ilha, em busca de alguma pista do paradeiro de Nelson.
Bom, não tive escolha. Tive que denunciar o desaparecimento. Se não o fizesse, ele logo perceberia e ficaria desconfiado do motivo pelo qual eu não avisei as autoridades.
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Ilha fictícia, criada para a trilogia Lua de Fogo, também de MD Gugik.
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