capítulo 1
A estrada era estreita, uma linha fina de asfalto negro que se dissolvia nas sombras da floresta à medida que a noite se fechava como um véu de escuridão. A lua mal espreitava por entre as nuvens pesadas, lançando lampejos esbranquiçados sobre as árvores, cujos galhos pareciam braços retorcidos tentando agarrar quem ousasse passar. As folhas farfalhavam com o vento, um sussurro distante, como se a própria floresta guardasse segredos, esperando o momento certo para revelá-los. A estrada estava deserta, exceto pelo carro solitário que avançava lentamente, os faróis cortando o breu, iluminando porções de uma paisagem que parecia morta, mas cheia de vida oculta.
Dentro do carro, o homem segurava o volante com força, seus dedos inchados, brancos de tanto apertar. Ele era gordo - gordo demais para o conforto do assento. A camiseta colava no corpo suado, e a barriga se projetava para frente, pressionando o cinto de segurança como uma muralha maciça de carne. O ar-condicionado chiava, mas parecia pouco fazer efeito; o suor escorria pela testa brilhante, molhando os poucos cabelos grisalhos que restavam. Ele bufava, impaciente, os olhos pequenos e cansados se revirando enquanto observava a estrada à frente. O pescoço grosso mal permitia que ele virasse a cabeça sem esforço, e cada movimento parecia uma tarefa árdua.
Finalmente, ele avistou a clareira. O acabamento - um fim de linha improvável para aquela estrada que parecia não levar a lugar algum. Ele desacelerou, os pneus fazendo um leve estalo no cascalho enquanto ele manobrava o carro para fora da estrada, estacionando próximo a uma cabana antiga que se escondia entre as árvores. Era pequena, de madeira envelhecida, com tábuas que rangiam ao sabor do vento, e uma pequena chaminé que se projetava contra o céu escuro, sem fumaça.
O homem saiu do carro com dificuldade, gemendo ao endireitar as costas. O ar noturno era pesado, úmido, e ele sentiu uma brisa fria bater no rosto, mas não o suficiente para aliviar o calor interno. Ele deu passos lentos até a porta da cabana, que rangeu quando ele a empurrou para dentro, revelando um espaço apertado que mais parecia um pequeno escritório improvisado. As paredes eram forradas de prateleiras tortas, cheias de papéis desordenados e livros velhos, e uma lâmpada amarelada pendia do teto, lançando uma luz fraca e bruxuleante sobre a cena. No centro, uma mesa simples de madeira escura, arranhada e cheia de marcas de tempo, com uma cadeira velha, quase tão desgastada quanto o próprio homem.
Ele suspirou, pesado como uma pedra jogada no fundo de um poço, e se jogou na cadeira que protestou com um estalo ameaçador. O couro da cadeira cedeu sob o peso dele, e o som ecoou na cabana silenciosa. Ele olhou para a mesa diante dele, cheia de papéis espalhados, anotações e coisas que ele mal conseguia entender. A cabeça latejava. O mundo lá fora podia ser uma floresta sombria, mas o caos ali dentro era muito pior.
Ele murmurou para si mesmo, com a voz áspera e cansada.
- Merda, eu tenho muita coisa para fazer.
O som da própria voz no silêncio apenas reforçava a sensação de peso. A cadeira rangeu novamente enquanto ele se inclinava para frente, observando o trabalho acumulado. Lá fora, o vento uivava entre as árvores, mas ele não ligava.
O homem sentiu suas pálpebras pesarem, o cansaço lentamente se enroscando ao redor dele como uma serpente preguiçosa. A cadeira rangeu suavemente enquanto ele afundava ainda mais, os olhos semicerrados, e o mundo ao seu redor começava a se desfazer em borrões. O calor abafado dentro da cabana, a luz amarelada oscilando no teto, e o silêncio denso da floresta conspiravam para arrastá-lo para o sono.
De repente, uma batida forte reverberou pela porta, como um punho golpeando madeira com urgência. Ele sobressaltou-se, o coração disparando no peito. Os olhos se abriram num sobressalto, varrendo o pequeno cômodo ao seu redor. Por um segundo, ele pensou que tinha imaginado o som, mas outra batida - mais forte dessa vez - ecoou pela cabana, e ele se levantou num pulo.
Com passos pesados, ele caminhou até a porta, cada rangido do assoalho aumentando a tensão no ar. Ele abriu a porta com um puxão rápido, esperando encontrar... alguém, qualquer coisa. Mas lá fora, a clareira estava vazia. As árvores balançavam ao longe, sussurrando com o vento, mas não havia sinal de movimento próximo à cabana.
O homem franziu o cenho, olhou ao redor mais uma vez, apenas para encontrar a mesma escuridão e solidão de antes.
- Que merda foi essa? - murmurou, sentindo um arrepio subir pela espinha.
Ele fechou a porta com força, o som ecoando pela cabana, e voltou a se sentar. O corpo ainda tenso, mas tentando ignorar o incômodo. Talvez fosse o vento... ou algum animal. Ele tentou se convencer disso, forçando-se a relaxar.
Mas então, o telefone em cima da mesa começou a tocar, seu som metálico e agudo quebrando o silêncio com uma intensidade assustadora. O homem se sobressaltou novamente, o coração ainda acelerado. Ele olhou para o aparelho com desconfiança por um momento antes de, lentamente, esticar a mão trêmula e pegar o fone.
- Alô? - A voz saiu mais rouca do que ele esperava, traindo o nervosismo crescente.
Não houve resposta, apenas uma respiração pesada, profunda, como se alguém estivesse do outro lado da linha, ouvindo, esperando. Ele apertou o fone contra a orelha, os olhos arregalados enquanto tentava entender o que estava acontecendo.
- Quem tá aí? - Ele insistiu, a voz mais firme agora.
Nada, apenas a respiração, lenta e rítmica, quase animalesca. Uma sensação fria começou a se espalhar por seu corpo. Ele não sabia por que, mas algo sobre aquele som o deixava inquieto, como se algo estivesse muito errado. Com um gesto brusco, ele desligou o telefone, o coração batendo mais rápido que antes.
Ele passou as mãos no rosto, suado e agora alerta. Seus olhos se voltaram para a porta, como se esperasse que algo - ou alguém - a atravessasse a qualquer momento. O silêncio voltou a preencher o ambiente, mas não era reconfortante. Era opressor, como o prelúdio de algo pior.
Então, mais uma vez, a batida. Forte. Quase desesperada. A porta balançou com o impacto. O homem congelou, a respiração presa na garganta. Ele se levantou de novo, as pernas pesadas, mas o corpo movido por uma necessidade instintiva de enfrentar aquilo. Ele foi até a porta com passos duros, o chão rangendo sob o peso de seus movimentos.
Sem pensar muito, ele abriu a porta de novo, mais rápido dessa vez, como se esperasse pegar alguém no ato. Mas, como antes, não havia nada. O vento uivava suavemente, as folhas balançando nas árvores, e a floresta continuava sua vigília silenciosa. Ele olhou para os lados, os punhos cerrados, tentando decifrar o que estava acontecendo.
A frustração estava se transformando em raiva. O homem andava de um lado para o outro no pequeno escritório, os punhos cerrados e a mandíbula travada. O suor escorria mais uma vez pela sua testa, mas agora, misturado com um misto de ansiedade e fúria. Quem diabos estava tentando brincar com ele? Cada batida na porta aumentava seu medo, mas também alimentava algo mais profundo - um desejo de acabar com aquilo de uma vez por todas.
E então, a batida veio de novo. Desta vez, mais forte, mais insistente, ecoando pela cabana como uma espécie de martelar infernal. Ele respirou fundo, o peito subindo e descendo, e caminhou decidido até a porta, cada passo firme reverberando pelo assoalho.
- Que porcaria é essa agora? - ele rosnou, cheio de raiva, as mãos já prontas para abrir a porta com força.
Ele não hesitou desta vez. Abriu a porta com um puxão violento, pronto para enfrentar qualquer coisa. Mas ao invés de vazio... lá estava.
O homem congelou.
A figura diante dele era alta e imponente, uma presença sombria e ameaçadora. O assassino usava uma máscara branca que cobria todo o rosto, rígida e sem expressão, exceto pelas duas fendas verticais na altura da boca, e artificial. O capuz negro envolvia sua cabeça e todo o seu corpo, criando um contraste nítido e perturbador com a máscara pálida. As cavidades dos olhos eram vazias, escuras e profundas, sem nenhuma luz ou reflexo, como se escondessem algo maligno. A ausência de qualquer traço humano por trás daquela máscara tornava a figura ainda mais assustadora - um espectro sem emoção, sem misericórdia.
O homem deu um passo involuntário para trás, o terror percorrendo sua espinha como gelo. Ele tentou dizer algo, mas sua boca parecia seca, sem som, como se todo o ar tivesse sido roubado de seus pulmões.
Antes que pudesse reagir, o assassino avançou. O movimento foi rápido demais, quase um borrão, e então ele sentiu uma dor aguda e brutal. A lâmina do assassino perfurou sua testa com precisão fria, o aço cortando carne e osso. O impacto o fez cambalear para trás, a visão ficando borrada instantaneamente, um zumbido alto enchendo sua mente.
Ele caiu de joelhos, o corpo tremendo enquanto uma onda de dor irradiava por todo o seu crânio. Seus olhos arregalados tentaram focar a figura à sua frente, mas tudo parecia girar e escurecer. Ele sentiu o sangue quente escorrer pelo rosto, um rio viscoso que se misturava ao suor.
O assassino não esperou.
Com um movimento frio e calculado, ele agarrou a cabeça do homem e, em um gesto rápido e eficiente, deslizou a lâmina pela garganta dele. O corte foi profundo, preciso, e o som abafado do ar e do sangue se misturando ecoou pela cabana.
O homem tentou engolir, tentou respirar, mas o mundo ao seu redor já estava se apagando. Ele sentiu o sangue borbulhando na boca, o gosto metálico invadindo seus sentidos enquanto sua visão se tornava um borrão completo. O corpo cedeu, os joelhos colapsando no chão de madeira sujo, enquanto ele caía para frente, já sem vida.
A figura mascarada ficou parada por um momento, observando a cena. Não havia pressa, nem hesitação. Apenas o silêncio mórbido da cabana e a floresta, que parecia assistir, indiferente.
Tessa acordou sobressaltada com o som estridente do celular vibrando na mesa de cabeceira. O quarto ainda estava parcialmente escuro, com apenas uma fresta de luz do sol se esgueirando pelas cortinas entreabertas. Ela pegou o telefone, meio grogue, e viu o nome na tela: Pai. Suspirou, deixando o aparelho cair de volta na mesa. "Eu ligo pra ele depois", pensou, enquanto esfregava os olhos, ainda pesados de sono.
Ela olhou o horário na tela - estava quase na hora da aula. Seu coração deu um leve salto de ansiedade. Tinha dormido mais do que deveria, de novo.
Antes que pudesse sair da cama, a porta do dormitório se abriu com um estalo e sua colega de quarto entrou com uma energia quase descontrolada, como se o dia já tivesse começado horas atrás para ela.
- Tessa! Adivinha! - disse a colega, com os olhos brilhando de empolgação. Essa era Samantha, uma garota baixa e cheia de vida, sempre vestida de forma impecável, mesmo para a aula. Seus cabelos loiros e cacheados balançavam enquanto ela falava, e seu sorriso era tão largo que parecia ocupar todo o rosto. Samantha estava sempre animada com alguma coisa, e hoje não parecia ser diferente.
- O que foi agora? - Tessa respondeu, se jogando de volta nos travesseiros.
- Eu decidi! Vou tentar entrar na Kappa Delta! - Samantha anunciou com entusiasmo, referindo-se à fraternidade que vinha mencionando há semanas.
Tessa revirou os olhos e suspirou.
- Fraternidade não é pra mim - ela disse, sem conseguir esconder o tédio. - Eu realmente não entendo por que você quer tanto entrar nessas coisas.
Samantha deu de ombros, ainda sorrindo, como se a resposta fosse óbvia.
- É tradição! Meu minha mãe fizeram parte, e dizem que é uma experiência incrível. Conexões, festas, amizades para a vida toda! - Ela enfatizou as palavras como se fossem argumentos irresistíveis, mas Tessa não estava convencida.
O dormitório em que elas estavam refletia o minimalismo que Tessa preferia. O espaço era pequeno e simples, sem grandes luxos. Havia duas camas, cada uma em lados opostos do quarto, com edredons lisos e uma ou duas almofadas jogadas por cima. Entre as camas, uma pequena mesa de estudo que mal cabia os livros de cada uma. As paredes eram quase nuas, exceto por alguns pôsteres que Samantha havia pendurado com imagens de viagens e frases motivacionais, além de um espelho pequeno ao lado da porta. O chão de carpete bege estava desgastado pelo tempo, e uma pequena janela deixava entrar a luz tímida da manhã. Não era o dormitório mais aconchegante, mas servia ao propósito: um lugar para dormir e estudar.
Samantha, sempre organizada, já tinha dobrado seu cobertor e preparado sua mochila. Tessa, por outro lado, ainda se sentia presa ao colchão.
- De qualquer forma, vou tentar a sorte - Samantha continuou, já mexendo em seu armário e pegando o que precisava para a aula. - E quem sabe, você muda de ideia, Tess. Nunca diga nunca.
Tessa apenas deu um sorriso de canto, mas no fundo sabia que fraternidades, festas, e toda essa ideia de "irmandade" não era o seu estilo. Ela preferia algo mais simples, mais tranquilo, sem a necessidade de impressionar ou se encaixar em um molde.
- Nunca é o que estou dizendo agora - murmurou, enquanto se forçava a sair da cama e se arrumar para o dia que, para ela, estava apenas começando.
Tessa se recostou por um momento, observando Samantha tagarelar sobre os planos de entrar na fraternidade. "Se me perguntassem no ensino médio, eu adoraria estar em uma fraternidade", pensou, sentindo um peso familiar pressionar seu peito. Havia uma época em que ela teria sido a primeira a se candidatar, com toda a animação de pertencer a um grupo, de ser parte de algo maior. Mas agora, tudo aquilo parecia distante, quase como uma memória de outra pessoa. Algo mudou dentro dela, algo profundo e irreversível.
Desde os assassinatos, desde Isobel... uma parte dela estava presa naquele momento. Era como se ela nunca tivesse saído completamente daquela cabana, daquela noite em que a vida virou do avesso. Ela podia sorrir e seguir com a rotina, mas sabia que uma parte de si ainda estava congelada ali, parada no tempo.
Tessa se levantou da cama sem dizer mais nada e foi direto para o banheiro do dormitório. O pequeno espaço era tão simples quanto o resto do quarto - azulejos brancos, um espelho manchado acima da pia, e uma luz fluorescente que piscava ocasionalmente. O silêncio do banheiro contrastava com a energia de Samantha do lado de fora.
Ela abriu o armário de remédios e pegou o frasco de comprimidos. Seus dedos estavam firmes, mas o peito ainda estava apertado, como se uma mão invisível o segurasse. "Esses malditos comprimidos", pensou enquanto girava a tampa com um clique seco. Precisava deles. Precisava do alívio que eles prometiam, mas odiava a dependência.
Tessa olhou para o espelho enquanto jogava o comprimido na boca e engolia com um gole de água da torneira. Seu reflexo a encarava de volta, mas ela mal reconhecia aquela garota. Não era mais a Tessa de antes, a que sonhava com festas e fraternidades. Não, ela era alguém diferente agora, alguém que sobrevivia de um dia para o outro, tentando não se afogar nas memórias.
De repente, enquanto fitava o próprio rosto, um flash de lembrança a atingiu. O espelho desapareceu, e em seu lugar, o momento fatídico voltou com toda a força. A cabana. Ela estava lá, ao lado de Stefan. O cheiro de madeira queimada misturado com o suor e o medo. Isobel estava à frente deles, os olhos vazios, as mãos firmes segurando a arma. Tessa podia sentir o frio do cano contra sua testa. O tempo parecia ter parado naquele instante. Ela se lembrava do pânico, do coração batendo tão forte que parecia que ia explodir.
- Não faz isso... - as palavras de Stefan, quebradas, impotentes, ecoaram na mente dela.
Isobel não tinha expressão, e aquele foi o momento em que Tessa soube que não havia volta. A morte estava à espreita.
Tessa piscou, e o banheiro voltou à realidade. Ela estava de volta, segura, mas a sensação de estar presa naquela noite continuava a sufocá-la. Ela tocou o próprio rosto, agora mais pálido do que antes, e respirou fundo, tentando controlar os tremores.
Do lado de fora, a voz alegre de Samantha ainda enchia o quarto, mas para Tessa, o som parecia distante, como se viesse de outro mundo. Ela fechou os olhos por um segundo, deixando o remédio fazer efeito, antes de se recompor. O que quer que estivesse quebrado dentro dela não seria consertado tão cedo. Ela sabia disso, mas ainda assim, levantou a cabeça, forçando-se a sair do banheiro, pronta para enfrentar mais um dia fingindo que estava bem.
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