Capítulo 1

       Acordei com o barulho de vozes ao meu redor. Por instinto, meu corpo tencionou. Ora, desde que eu sou uma mulher solteira que mora sozinha em um mini apartamento, é muito estranho ser acordada com o som de pessoas conversando. Obviamente, fiz o que qualquer pessoa sensata faria. Continuei a fingir que dormia.

     — Como isso pode acontecer com a nossa senhora? — disse alguém com a voz chorosa. Senhora? Eu? Eu ainda nem cheguei aos trinta!

     Continuei com meus olhos fechados enquanto ouvia as lamentações do que pareciam ser três pessoas. Essas cujo as vozes me soavam estranhas, calaram-se no momento em que o som de uma porta se abrindo ecoou pelo ambiente. Continuei com meus ouvidos atentos aos ruídos e farfalhar de roupas. Logo, uma voz grave e sensual preencheu o cômodo.

     — Ela ainda não acordou? — disse o dono da tal voz. Lutei com a curiosidade e acabei perdendo. Abri uma pequena fresta dos meus olhos e tentei espiar por detrás dos meus cílios. Sem sucesso.

     — Não, vossa alteza. — Alteza? Mas que porra está acontecendo? Senti uma mão roçar em minha testa e logo uma dor passou pelo local onde foi tocado.

     — Sua testa está bastante inchada... — Aquela voz soou bem próximo ao meu rosto e eu já sem aguentar mais a curiosidade, me rendi e abri meus olhos.

     A primeira coisa com que me deparei foi com um maxilar forte e bem desenhado, depois uma boca carnuda e rosa, um nariz reto para chegar em um par de olhos acinzentados, um volume de cabelos platinados bem penteados adornavam aquele rosto divino. Senti que minha boca estava aberta, e não, não consegui reunir o mínimo de raciocínio para fechá-la. Minha mente só trabalhava em absorver toda a beleza que estava a minha frente.

     — Uau, você definitivamente faz o meu tipo — disse em um sussurro de voz. Involuntariamente minha mão se ergueu para tocar o belo rosto. E ao fazê-lo a sua mandíbula se tencionou e com sua grande mão afastou meus dedos de sua pele.

     Apesar de ter repelido meu toque, o contato com a carne quente de suas mãos causou um arrepio anormal que correu por todo meu corpo. Achei melhor recolher-me e aguardar minha respiração normalizar.

     — Aparentemente já se encontra melhor. Com isso vou me retirar... — Ao ameaçar se levantar, empurrei para longe minha sanidade e segurei rapidamente em seu braço.

     — Espere! Me diga qual o seu nome! — Todos na sala reagiram com espanto ao ouvir meu pedido. Uma moça que vestia roupas de empregada cobriu a boca com as duas mãos. Eita, será que é um tabu?

     — Meu nome? — O homem me encarou como se estivesse vendo um animal de uma espécie estranha. Ele endireitou o corpo, apoiou a mão no queixo e franziu as sobrancelhas. No momento em que minha visão de todo seu corpo se endireitou, veio a mim que eu já sabia o nome dele, mas é claro, quantas pessoas no mundo teriam essa aparência? Obviamente nenhuma.

     Olhei mais para o ambiente ao meu redor. Móveis rústicos e de design antigo preenchiam um quarto que era por si só maior que meu apartamento. Olhando agora para as pessoas, todas com roupas no estilo vitoriano, davam-me dicas do que estava acontecendo.

     Eu estava obviamente sonhando com o livro que li antes de dormir. Não era de se estranhar, eu já ouvi falar várias vezes que sonhos são realizações de desejos. E com o homem parado à minha frente analisando-me minuciosamente com olhos tão frios quanto o metal, o homem que desejei a cada folhear do livro, eu estava mais que pronta para satisfazer meus desejos mais pecaminosos. E bem, tenho que admitir ser um sonho bem realista, mas desde o começo do livro eu senti que o Russell era o homem perfeito e estou surpresa com o que o meu cérebro criou!

     No momento que eu tentei me sentar para observar melhor o local a minha volta, uma dor atingiu meu corpo e cabeça, me fazendo arfar de surpresa com a repentina onda de dor. Russell que até então parecia contemplativo, voltou sua atenção a mim com o cenho franzido, um músculo saltou em seu maxilar quando ele tombou o corpo para o meu lado, se não fosse a dor alucinante que me atingiu eu poderia facilmente alcançá-lo para um beijo.

     Nota mental: Beijar aquele músculo extraordinário.

     — Fique quieta, seu corpo ainda não se recuperou do acidente — disse enquanto sinalizava para um dos empregados, que rapidamente deixou o quarto. — Eles vão trazer um médico para você. Agora se deite e espere. — Após concluir sua fala, Russell deu um pequeno aceno com a cabeça e deixou o quarto.

     Realmente, no livro ele era descrito como bruto e fechado, e suas ações agora fizeram jus a sua descrição. Tentei novamente endireitar minha posição na cama, mas meu corpo gritou de dor. Mas que droga de sonho é este? Se for para ser assim prefiro acordar e tomar um analgésico.

     Após várias tentativas em vão de acordar, desisti e resolvi assistir ao restante do meu sonho. Vai ver a minha mente precisa dar um final decente para essa história para eu poder ficar em paz. E como o sonho é tão realista, talvez eu possa aproveitar também.

     Depois de uma hora eu já estava cansada. O médico já havia saído e deixado algumas ervas para dor. Após tomar um chá horrível feito com elas, fui deixada sozinha no quarto. Cansada demais e sob o efeito do medicamento, senti meus olhos se fechando e minha consciência se esvaindo. Mas que droga de sonho inútil...

     Quando acordei ainda estava sonhando. Senti uma estranha sensação, afinal não é muito comum dormir dentro de um sonho. Agora que meu corpo já não doía tanto, arrisquei levantar-me da cama. Quando meus pés tocaram o chão frio, um arrepio percorreu todo meu corpo. Ainda sentia meus músculos rígidos e pesados, mas nada que me impedisse de explorar o quarto.

     Tenho que admitir que a veracidade do sonho é surpreendente. Abrindo o guarda-roupas uma fileira imensa de vestidos bufantes se estendeu por todo o móvel. E quanto mais gavetas eu abria mais laços, fitas, sapatos, joias e enfeites iam aparecendo. Tocando alguns objetos a sensação deles em minha pele era bem real. Quase como se fosse de verdade.

     Com um suspiro fui em direção à penteadeira e a imagem refletida no espelho era de tirar o fôlego. Cabelos escuros como ébano, olhos da cor de ametista assim como seu nome, pele branca com constelações marcadas nela, uma boca pequena e carnuda dava o toque final. Sem dúvidas nenhuma, Ametista era a mulher mais linda que já vi em minha vida todinha.

     Uma gota de suor correu por minha testa, precisei me apoiar na madeira delicadamente talhada para não cair para trás. Neste sonho fantasioso eu era a Ametista. A pele lisa da juventude me chocou. Como senti saudades de minha adolescência...

     Uma pena que uma personagem assim tenha morrido nas mãos da pessoa que amava. Mas convenhamos, ela era muito sonsa. Casada com um homenzarrão como o Russell, como ela sequer pôde olhar para o lado?

     Fui tirada dos meus pensamentos quando o meu estômago roncou alto. Ah, pronto! Daqui a pouco vai me dar vontade de fazer xixi e eu vou urinar na cama! Na minha idade isso é muito humilhante, ainda bem que moro sozinha. Aliás, quanto tempo mais eu vou continuar dormindo? Esse tempo de sono é suspeito... Tenho que acordar para não me atrasar para o trabalho...

     Minha barriga voltou a reclamar e dessa vez não se deixaria ignorar. Resolvi sair do quarto e procurar o que comer. Já que ninguém aparecia há algum tempo, eu precisaria encontrar a cozinha de alguma forma.

     Já fora do quarto, um longo e sinuoso corredor se estendeu a minha frente. Passei por ele e observei a decoração obsoleta, com móveis cor marfim e marrom, flores das quais eu não sei o nome, esculturas e quadros estavam dispostos por todo o caminho. Ao final do corredor, havia uma grande escada circular que dava ao que parecia ser uma sala de visitas.

     Mesmo no livro não havia tantos detalhes na descrição da casa quanto em meu sonho. E mesmo que houvesse é uma surpresa tudo parecer tão detalhado. Apesar de a disposição dos cômodos não terem sido mencionadas no livro eu consegui achar a cozinha. Para ser sincera, o cheiro da comida foi um grande guia.

     Ao adentrar o cômodo todos que estavam trabalhando pararam imediatamente. Suas bocas quase caíram de seus rostos. Exclamações foram ouvidas de todos os lados.

     — Minha senhora, o que faz aqui? — A mesma empregada que eu havia visto anteriormente me indagou com os olhos confusos. Ao avaliar a reação de todos eu provavelmente fiz algo de errado.

     — Tenho fome... — Como que para confirmar minha sentença meu estômago rugiu em um estrondo que ecoou por toda a cozinha.

      As empregadas com os olhos arregalados começaram a preparar uma bandeja com vários tipos de comida. Enquanto isso, fui guiada de volta ao quarto pela empregada do dia anterior que lamentava a sua falta de atenção.

     — Minhas sinceras desculpas, senhora, eu mereço ser punida pela minha falta de atenção — disse enquanto fazia uma reverência.

     — Não se preocupe, não tinha como você adivinhar que eu estava com fome... — Tentei tranquilizá-la, mas isso só a deixou mais preocupada ainda.

       — Não, o erro foi meu. Por favor, me castigue! — Será que ela é masoquista? — Como uma mera serva como eu ouso deixar minha senhora com fome? Ainda quando a senhora tocou o sino várias vezes... — Ela juntou os ombros, e pude ouvir um soluço abafado.

     — Sino? Que sino? — perguntei estranhando o rumo da conversa. — Aliás, como você se chama mesmo?

     A empregada que parecia ter por volta de 15, 16 anos me olhou com os olhos esbugalhados. Seu rosto era redondo, com a pele um pouco ressecada do sol, seus cabelos e olhos eram castanho-escuros, e sua estatura mediana.

     — Eu sou Amélia, senhora, sua empregada pessoal — disse ela com estranheza na voz. — Minha senhora está bem? Devo chamar o médico novamente?

     Balancei a cabeça em negação e me sentei em frente a penteadeira. Amélia prontamente se posicionou às minhas costas e começou a pentear os meus cabelos, apesar da agilidade com as mãos, podia sentir que ela tremia. Pelo reflexo do espelho percebi a expressão de confusão marcada em seu rosto. Por mais que eu estivesse em um sonho, era tudo tão detalhado que quase parecia real. Se esse sonho tinha algum propósito eu deveria seguir seu ritmo.

     — Amélia...

     — Sim, senhora?

     — Eu posso contar algo para você? — Ela afirmou com a cabeça, ainda receosa. — Acho que perdi minhas memórias...

      Durante o que pareceram ser dois dias eu estive submetida a várias visitas de diferentes médicos. Todos estranharam a minha perda de memória, mas no final a associavam ao acidente de cavalo que aparentemente Ametista tinha sofrido. Pelo que Amélia me contou, eu havia caído do cavalo, batido a cabeça e perdido a consciência por um dia inteiro.

     Ao ouvir o diagnóstico do médico todos os empregados estavam desolados, porque de acordo com eles nada poderia ser feito para recuperar as memórias perdidas. Lembranças que não existiam, aliás. Eu já estava cansada desse sonho e minha paciência em seguir o fluxo das coisas estava se esgotando. Todos a minha volta estavam determinados a me fazer lembrar das memórias que na verdade nunca perdi.

     Estava no meu quarto dia dentro do sonho, e enquanto aproveitava os mimos que me eram proporcionados por fazer parte da realeza, entediada e magoada por sequer Russell dar o ar da graça novamente, eu pensava fervorosamente nele, mas era como se o sonho seguisse seu próprio fluxo e eu pudesse apenas interferir como Ametista.

     Pela porta, com um toque leve para avisar sua chegada, Amélia entrou trazendo uma bandeja com chá e macarons. Nela também havia um envelope com o selo real, sem muito esperar o abri impaciente, a carta vinha do Imperador e solicitava uma audiência. Aparentemente os boatos de que sua nora estava doente chegaram aos ouvidos de vossa majestade.

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