Eterna Namorada
Tenho uma história para contar. Talvez a mais comum que você possa imaginar.
É bem verdade que ela começou com uma tragédia, ainda assim, uma história comum.
Um homem ama uma mulher, uma mulher ama um homem... Nada de mais.
Ou pelo menos foi o que também pensei por cinquenta anos... Até que a vi novamente... Um ano atrás. Então decidi que preciso compartilhar com vocês essa história... Pois é a história da minha vida...
Doze de junho de mil novecentos e sessenta e três
Como toda história clichê que se preze, a minha também começou em um dia chuvoso. O que irá diferir aqui talvez seja a data e o local, pois, a primeira vez que a vi, foi dentro do que restara do veículo retorcido.
Meu pai e eu passávamos na rodovia Fernão Dias, rumo a são Paulo. Ele, um renomado engenheiro agrônomo, voltando para o escritório depois de um final de semana de descanso em Tiradentes, a cidade natal em que nasceu; eu, um estudante de engenharia, com o sonho de me tornar pelo menos um terço do que ele era. Aquele homem sempre foi e sempre será meu grande herói.
A rodovia acabara de ser construída, e como tudo em nosso país, aquela obra não foi a primeira e nem será a última com problemas graves em sua estruturação e funcionamento.
E pudemos comprovar isso da pior maneira que se podia.
Alguns quilômetros antes de chegarmos a São Paulo, encontramos um grupo de trabalhadores consertando um buraco no meio da rua. Era madrugada , chovia copiosamente, meu pai usava óculos, estávamos sonolentos e cansados, não havia sinalização... Os motivos podiam ser muitos, mas eu sempre culparei a inabilidade de nossos governantes por não conseguirem fazer direito aquilo que foram eleitos para fazer.
O fato é que, meu pai, para não matar inúmeros trabalhadores inocentes, preferiu jogar nosso Ford Galaxie na contramão, atravessando a outra pista a cem por hora. Por sorte não fomos abalroados por outro veículo, senão, talvez eu não estivesse aqui contando essa história.
Contudo, o carro capotou treze vezes ribanceira abaixo, e quando paramos, imediatamente senti cheiro de gasolina.
Totalmente desnorteado dentro do que restara do veículo, olhei para meu pai com dificuldade, ele estava desacordado, mas, aparentemente vivo.
Tentei me mexer para tirá-lo dali, mas a dor que senti sob minhas costelas foi a pior de toda minha vida até hoje, então não consegui.
De repente vi fagulhas no painel de controle, e fiquei ainda mais desesperado.
Gritei por socorro. Estava tudo escuro e havíamos parado em um matagal, iríamos morrer.
Foi então que a ouvi pela primeira vez:
— Consegue me ouvir? — Perguntou a voz feminina.
Olhei meio sem entender o que estava acontecendo.
— Si-sim... — Respondi com dificuldade.
— Ok, vou tentar abrir a porta! — ela disse. E foi a última coisa que ouvi antes da explosão.
Três dias depois acordei em um hospital. Estava todo enfaixado e desorientado, mas nada doeu tanto quanto a notícia que o médico me trouxera naquela mesma manhã... Meu pai havia morrido na explosão. O meu herói... Aquele foi o choro mais amargo de toda minha vida.
No outro dia acordei grogue de tantos sedativos que me deram para dormir. Mas ainda assim consegui formular algumas frases, e as usei para indagar a enfermeira:
— E-eu... Gostaria m-muito de agradecer a mulher que me salvou.
Ela me olhou desconcertada e disse:
— Pelo que sei, foram os trabalhadores que o tiraram das ferragens.
— Não... Foi uma mulher... Ca-calça jeans e jaqueta branca...
— Acho que está enganado. Talvez seja o trauma confundindo sua mente. Mas não se preocupe com isso, o importante é que você está bem agora. — Nunca mais ficarei bem... — Quer que eu lhe traga algo para a dor?
Eu não consegui responder, apenas dormi novamente.
— Wagner! Wagner!
Ouvi a voz do doutor me chamando, então acordei.
Um mês havia se passado, e eu continuava dentro daquele hospital tentando me recuperar. As dores físicas quase haviam sumido, apenas a dor emocional nunca me deixou.
— Boas notícias! Trouxe os papéis da sua alta, e sua mãe está aqui para lhe buscar.
— Obrigado Doutor... — Foi tudo o que consegui dizer.
— Wagner... — Ele aproximou-se da cama — Não vou mentir, talvez você nunca supere totalmente, eu também perdi meu pai e sei como é. Mas você tem vinte um anos e toda uma vida pela frente. Então viva-a da melhor maneira que puder, para que onde ele estiver, sinta orgulho de você. Não tenha dúvidas de que é isso que ele iria querer.
Uma lágrima escorreu pelo meu rosto, mas de alguma forma aquelas palavras me confortaram.
Eu agradeci novamente o médico, mas agora, com o respeito que ele merecia, depois fui embora dali.
Doze de junho de mil novecentos e sessenta e quatro
Onze meses se passaram, e eu achei que já estava preparado para retomar minha vida, então retornei as aulas na faculdade de agronomia.
Minha mãe havia me disponibilizado seu carro para que eu fosse ás aulas, o que obviamente recusei. Para aquilo ainda não estava preparado.
Da minha casa para a faculdade eu pegava duas conduções. E me acostumei a estudar um pouco no trajeto. Era só pôr meus óculos de grau e segurar o livro com um pouco mais de firmeza para amenizar o sacolejo.
Naquele dia alguém sentou ao meu lado, tirando minha atenção do livro.
Quando virei a cabeça, a vi pela segunda vez.
— V-Você... — foi a única palavra que consegui pronunciar naquele momento.
— Eu. — Ela respondeu de forma singela e com um sorriso no rosto.
Por um tempo ainda continuei sem palavras, até que elas voltaram.
— Você me salvou...
— Estou vendo. Fico feliz que esteja bem.
— M-mas como ninguém te viu? Eu perguntei a todos! E todos disseram que não havia mulher alguma ali!
— Eu passava de moto no exato momento em que vocês saíram da estrada. Sem pensar duas vezes, desci com ela até o lugar em que estavam e fui tentar ajudar.
— Obrigado... — Foi o que consegui dizer. Tentava fugir das lembranças daquele dia, mas elas me atormentavam quando bem queriam.
— Sinto muito pelo seu pai... — Ela pareceu sentir a dor nas minhas palavras — Eu tentei tirá-lo de lá, mas percebi que o carro iria explodir, então não tive opção , senão, arrastá-lo para o mais longe possível.
— Não se preocupe, sei que fez o que pôde...
— Prazer, eu sou a Rafaela. — ela sorriu e me estendeu a mão. Eu a peguei, e senti uma onda de choque invadir meu corpo. Era como se estivesse tocando a mais pura seda. Uma sensação de calma, paz e calor me aqueceu. Fiquei naquela mesma posição, segurando a mão dela e olhando seus lindos olhos azuis por não sei quanto tempo, até que ela disse:
— Meu ponto está próximo.
— Hã... Oi... Sim sim... Me perdoe. — Soltei sua mão — Eu sou o Wagner.
— Sim eu sei. Fico realmente muito feliz que esteja bem, Wagner.
— Si-sim... Estou... — Não sabia o que estava acontecendo comigo. Estava em frente a mulher que havia salvado minha vida, e não conseguia formular frases coerentes. Mas não era pra menos, Rafaela era simplesmente a mulher mais linda que já havia visto na vida. Além de seus hipnotizantes olhos azuis, também tinha cabelos castanhos claro, lindas maçãs rosadas e o mais belo e cativante sorriso que já havia visto em qualquer ser humano. Eu simplesmente não podia deixá-la ir. — Eu te devo minha vida! Preciso pelo menos te agradecer adequadamente. — Por fim falei.
— Ah é... — ela sorriu — E como poderia fazer isso?
Pensei por um momento. Havia acabado de conhecê-la, não sabia seus gostos ou preferências, então estava no escuro quanto ao que poderia agradá-la.
— Me peça qualquer coisa, se estiver ao meu alcance, será seu!
Ela apertou os olhos e sorriu de lado.
— Hum... Tem uma coisa que amo...
— Peça, se eu puder, será seu! — Enfatizei a promessa.
— Chocolate. — falou com tanta pureza que até parecia uma criança.
— Quantos caminhões? Pode falar!
Ela riu alto.
— Uma caixa já basta...
— Tem algum compromisso inadiável nesse momento?
Ela arqueou uma sobrancelha e perguntou:
— Por que?
Eu sorri para ela.
— Sim ou não?
Ela refletiu por um momento.
— Sempre tenho compromissos, alguns inadiáveis, outros não.
— E esse de agora? — insisti.
— Esse pode esperar.
Sem pedir, segurei em sua mão e me levantei.
— Então venha comigo, não posso ficar devendo a mulher que salvou minha vida!
Ela me olhou com ternura e se levantou.
— Tudo bem senhor cavalheiro, não ficarei entre você e sua honra. — então fez uma sutil mesura e se deixou ser levada por mim.
Descemos do ônibus e andamos até o shopping que eu sabia que era perto dali.
Entramos em uma doceria e comprei a mais cara caixa de chocolate que havia lá. Também a levei para tomar sorvete, e obviamente ela escolheu de chocolate. Tivemos uma tarde inesquecível, e aquele dia foi apenas o início de todos os dias maravilhosos que tive ao seu lado.
Doze de junho de mil novecentos e sessenta e nove
Depois daquele dia acabei descobrindo que ela era uma médica sem fronteiras, e que viajava constantemente ao redor do mundo ajudando pessoas sem nunca pedir nada em troca.
Obviamente nos apaixonamos naquele dia, apesar dela ter trinta anos e ser formada, e eu ter vinte e três e estar no último ano da faculdade.
Nos víamos uma vez por mês, mas eu fazia valer cada minuto quando estava ao seu lado.
Minha mãe a adorava, e tudo o que eu pensava era poder casar com ela o quanto antes.
Cinco anos haviam se passado, e nosso relacionamento continuou daquela maneira, mas eu sempre quis mais, então, no dia dos namorados de sessenta e nove, a levei em um restaurante e a pedi em casamento. Ela aceitou e nos casamos um mês depois, quando havia acabado de chegar do Camboja.
Foi um dos momentos mais felizes da minha vida.
Doze de junho de mil novecentos e setenta e nove
Nos conhecíamos há quinze anos, e estávamos casados há dez, eu com trinta e oito, e ela com quarenta e cinco. E o que mais me impressionava na minha magnífica esposa, era que o tempo passava e eu não notava sinais de envelhecimento nela. Talvez seja verdade o que dizem por aí , sobre o tempo não passar para algumas pessoas.
Nunca imaginei amar alguém como já amei Rafaela, sei que ela me amava da mesma forma. Mas eu a queria por perto em tempo integral, a queria só para mim, queria ter um filho com ela, e seu trabalho estava se tornando a maior barreira para que essas coisas acontecessem.
Então, em outro dia dos namorados, assim que ela havia chegado do Haiti, a chamei para conversar:
— Amor... Sei o quanto você ama seu trabalho e ama ajudar as pessoas... Mas eu a queria só pra mim por um tempo. Talvez seja o momento de você ficar um pouco mais em casa, e de termos um filho.
Ela tocou meu rosto com carinho.
— Eu o amo demais meu amor, e sei há muito tempo que você quer isso... Mas, ajudar as pessoas é minha vocação, foi para isso que fui criada... Não posso virar as costas à minha vocação...
— E a mim... Você pode virar as costas pra mim?
— Jamais faria isso, meu amor... Mas quando decidimos ficar juntos, combinamos que meu trabalho era grande parte da minha vida...
— Sim, combinamos... — Falei com tristeza.
— Eu te amo... — ela me abraçou — Eu realmente não posso me ausentar do meu trabalho, mas posso te dar um filho.
Não era exatamente o que eu queria, mas aquela notícia encheu meu coração de alegria. Três meses depois ela estaria grávida do Gabriel.
Doze de junho de mil novecentos e oitenta
O dia do nascimento do meu filho foi um dos mais felizes da minha vida, e também um dos mais tristes. Ainda com o bebê no colo, Rafaela anunciou que em breve entraria em um projeto da Unesco por cinco anos. Eu não conseguia acreditar no que acabava de ouvir. Tudo o que eu mais queria era poder tê-la só para mim, e o que ela estava me dizendo era que eu não a veria por cinco anos. Fiquei arrasado com a notícia, mas não queria perdê-la, então, depois de um ano, quando Gabriel começava a dar seus primeiros passos, ela nos deixou.
Doze de junho de mil novecentos e oitenta e seis
Nos comunicávamos semanalmente através de cartas, e muitas vezes por telefone, mas nunca era o suficiente para mim. A saudade que eu tinha não dava para ser explicada , só sentida.
Os próximos quatro dia dos namorados foram os piores da minha vida, pois foram os anos que não comemorei com ela. Não lhe comprei a já tão tradicional caixa de chocolate, nem fiz minhas eternas juras de amor.
E, quando a esperava no aeroporto, a fim de passarmos juntos nossa tão importante data depois de cinco anos, veio a notícia que destruiria minha vida mais uma vez... O avião que a trazia de volta caiu no Atlântico, e todos morreram.
Doze de junho de dois mil e treze
Ao final daquela tarde, ao pôr do sol, enquanto alimentava os pássaros sentado em um banco da praça, alguém sentou-se ao meu lado.
Era uma mulher muito elegante. Usava vestido florido e óculos escuros.
A olhei por algum tempo, mas não a reconheci imediatamente.
Ela sorria para mim constantemente e aquilo me constrangeu.
— Olá moça, precisa de alguma coisa?
— Tudo o que eu precisava ver, estou vendo.
— Sua voz... — disse quase sussurrando.
Então ela tirou os óculos, e eu pude ver os inconfundíveis olhos azuis.
— Ra... Ra...
Ela pegou minhas mãos.
— Sei que não deve estar sendo fácil pra você, meu amor, mas não fique assustado.
— Ma-mas como?!
— Não se preocupe com isso. Você só precisa saber que eu o amo e sempre o amarei. Mas nosso amor, infelizmente não pode ser eterno, pelo menos não para você. Então achei por bem, deixá-los o quanto antes, para que não sofressem com minhas constantes ausências. Mas quero que saiba que, por todos esses anos, sempre estive por perto cuidando de vocês dois.
— Co-como você ainda continua tão jovem?... E como não morreu na queda do avião?...
Ela tocou meus lábios com a ponta dos dedos me silenciando.
— Eu fui criada para ajudar, e eu ajudei muitos naquele avião, e muitos ao redor do mundo. E ainda ajudarei muitos mais enquanto existir... — Ela voltou a pegar minhas mãos. Aquele toque era o mesmo de sempre, e ninguém tinha a capacidade de transmitir tanta calma, paz, tranquilidade, amor... Era algo sobrenatural. — Lembra quando o Gabriel se perdeu na mata no passeio da escola aos oito anos?
— Sim... Ele disse que uma mulher o ajudou a voltar, mas seu nunca imaginei...
— Lembra quando ele fugiu de casa aos treze anos depois que discutiu com você e passou a noite na rua?
— Sim... Ele contou que uma mulher lhe deu comida e o convenceu a voltar na manhã seguinte...
— Eu sempre estive com vocês, e sempre estarei...
As lágrimas desceram pelo meu rosto enrugado, aquecendo minha face e meu coração.
— Me perdoe se nunca pude ser só sua... Mas sei que seu coração é um dos mais bondosos que já encontrei, e você compreenderá...
— Eu sempre te amei e sempre te amarei... Mas não posso privar o mundo da sua bondade... Faça o que tem que fazer...
Ela beijou minhas mãos, minha testa e meus murchos lábios. Depois levantou-se e foi embora.
Eu a vi sumir bem diante dos meus olhos depois de alguns passos. Mas aquilo já não me surpreendeu, pois eu sabia que ela era um ser maravilhoso que Deus colocou em meu caminho...
Doze de junho de dois mil e quatorze
Eu estava sentado na primeira fileira do anfiteatro, bem em frente ao palanque onde meu filho iria receber o prêmio... Então ela chegou. Vestia a mesma calça jeans e jaqueta branca do dia em que me salvou.
— Reservei o lugar pra você. — disse-lhe sorrindo.
— Percebi. — ela também sorriu para mim.
— Está orgulhosa? — perguntei já sabendo a resposta. — Um médico sem fronteiras... Assim como você.
Ela não respondeu, apenas me olhou com olhos marejados e segurou firme minha mão, enquanto o palestrante se preparava para anunciar:
— Nesta noite, é com imenso orgulho que quero entregar o Nobel da paz para o doutor Gabriel Monteiro, o mundialmente conhecido, mãos de anjo!
Todos no anfiteatro se levantaram e aplaudiram em pé.
Eu olhei para o amor da minha vida, sorri para ela, e ela sorriu de volta para mim.
— Eu sabia que você viria. — falei lhe entregando uma caixa de chocolates. Ela sorriu, e lágrimas brotaram de seu rosto antes que ela sumisse bem diante dos meus olhos.
Apesar de nunca mais vê-la novamente, em todos os dia dos namorados eu a esperava com uma caixa de chocolates. Mas de uma coisa nunca tive dúvidas... ela sempre estará ao meu lado até o fim dos meus dias.
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