Capítulo 9 - Kiaracy II
Kiaracy
(Tief ~ Aliant - Illyr)
O caminho até Aliant era um pouco mais longo do que o previsto. Embora Kiaracy acreditasse que chegaria no dia anterior, estava já no décimo segundo dia de viagem, dois a mais do que o previsto. Warren lhe explicou que o trajeto escolhido por ela tinha um motivo para não ser muito utilizado, se tratava de um caminho mais longo até o destino. Kiaracy xingou mentalmente o vendedor que lhe deu o mapa que continha aquelas rotas, pois ele mesmo havia afirmado que aquele caminho era mais curto.
— Sempre desconfie das palavras de um vendedor. Esse mapa está há pelo menos trinta anos ultrapassado. Desde que o Rei Dorian ordenou a criação da estrada do rio, esse caminho tornou-se obsoleto — ele explicou, enquanto puxava as rédeas do cavalo para o guiar em torno de alguns cascalhos que deslizaram do monte para a estrada.
— E por que você está seguindo por aqui? — Kiaracy indagou, um tanto curiosa. Perguntou-se o que faria a garota que ele procurava numa estrada deserta.
— Digamos que essa é a rota favorita dos que querem seguir viagem sem chamar atenção.
Kiaracy acenou com a cabeça, aceitando a frustração de ser enganada com um suspiro. O crepúsculo já anunciava o início da noite e a nova previsão era de chegar no início da madrugada seguinte, isso se seguissem viagem pela noite. No entanto, Warren não se animou muito com a ideia.
— As chances de sermos pegos por ladrões à noite aumenta consideravelmente... — o cavaleiro argumentou. — Além do cansaço físico que estaríamos expondo nossas montarias, corremos o risco de causar algum acidente. O correto é montarmos acampamento e aguardar o amanhecer. Chegaremos em Aliant em questão de horas se os cavalos estiverem descansados.
Kiaracy ponderou por um tempo. Sabia que era mesmo o certo, seus cavalos estavam exaustos após um dia inteiro de viagem e ser roubada tão perto de seu destino não era muito animador. Ela concordou com o que o homem sugeriu. Quando a noite estava para cair e o sol se recolhia no oeste, deixaram a estrada para a segurança de uma pequena clareira no bosque, onde os cavalos foram devidamente amarrados e alimentados. Juntaram um pouco de gravetos e troncos e fizeram uma fogueira modesta.
Ao redor das chamas ambos assavam um pouco de carne seca em silêncio. Durante toda a viagem nenhum dos dois conversou muito. Warren até tentava iniciar alguma interação, mas Kiaracy era sempre muito direta em suas respostas. Apesar do homem ter se mostrado confiável o bastante para a garota aceitar viajar com os cavalos lado a lado, ela ainda mantinha-se sempre vigilante com as ações dele. A sua lança estava sempre repousando ao alcance de sua mão.
Naquela noite, no entanto, a própria Kiaracy se incomodou com a quietude do lugar e resolveu enfim desfazer aquela situação desconfortável.
— Não pretende mesmo procurar pela filha dos seus senhores? — Kiaracy indagou, recordando-o da missão dele.
— Talvez eu a encontre, se os deuses assim quiserem — ele respondeu encarando a carne nas chamas. — Mas não pretendo levá-la de volta aos Danfort.
— Poderia saciar a minha curiosidade? — perguntou, o encarando sob a luz da fogueira. Warren a observou, parecendo aguardar por seu questionamento. — Odeia os seus senhores?
— Só se você me falar o motivo de querer chegar desesperadamente a Aliant, ao ponto de propor uma viagem noturna.
— Minha família pode estar lá — Kiaracy respondeu com simplicidade.
— Muito enigmática — disse Warren, mostrando um semblante de insatisfação. — Quero os detalhes. Me entretenha com uma boa história. Aí eu te conto toda minha trajetória de vida, se quiser.
Ela não quis responder aquela pergunta, manteve o silêncio. Warren a encarava pacientemente, esperando por algo que fosse dito. Passaram-se segundos, talvez minutos, em que apenas ouviam o barulho que os galhos secos faziam ao serem consumidos pelo fogo. A noite trazia sua música habitual, que era tão vazia da magia que a moça recordava de ouvir em Gardenia — onde as árvores se moviam com a canção da noite e as brisas rodopiavam carregadas de um feitiço encantador que tranquilizava o mais perturbado dos corações. Foi Kiaracy quem rompeu o silêncio inquietante, sussurrando como se estivesse lhe confidenciando um grande segredo:
— Você deve saber da invasão dos nahoranos à minha terra, seis anos atrás. Eu tinha apenas dez anos de vida. Éramos cinco, meus pais, meus irmãos e eu. — Kiaracy fez uma breve pausa. — Bom, durante o ataque eu acabei me separando de minha família enquanto tentávamos fugir. Eu vi minha mãe morrer e meu pai ficou para trás, se sacrificou em prol da aldeia, como um verdadeiro muruxaua faria. Porém, minha irmã e meu irmão, esses ainda estão vivos, estão por aí, em algum lugar. Eu preciso encontrá-los, por isso estou indo para Aliant, seguindo uma pista.
O homem assentiu quietamente. Kiaracy tentou ler o seu semblante, mas não conseguiu. Viu um pouco de tristeza, talvez, mas não tinha como ter certeza. E por que estaria triste pela história de uma gardeniana qualquer?, refletiu ela. Por um tempo, voltaram a ficar quietos. Kiaracy tirou a carne assada do fogo e saboreou um pedaço, grata por satisfazer sua fome.
— O que é um muxurara, afinal? — indagou Warren, de repente.
— É mu-ru-xa-ua! Pra vocês é algo como, "chefe". A pessoa que cuida de todos e da segurança da aldeia. É sábio, forte e um valente caçador.
— Então, se seu pai é esse muruxaua, isso faz de você uma princesa? Ou seria mais como filha de lorde?
— Quê?! Não, eu não sou uma princesa! E meu pai não era lorde algum. Não é como vocês se tratam aqui, nessas terras. Um muruxaua é escolhido pelo povo, ele não nasce assim. Isso não o torna maior que os demais, apenas joga em seus ombros responsabilidades com o povo.
— Bom... Mesmo com as palavras bonitas, não parece muito diferente daqui, só o nome é estranho. Seu pai poderia ser o rei do seu povo. E você poderia bem ser a princesa. Tudo depende de como o povo enxerga.
— Não fale bobagens! — exclamou Kyaracy, irritada com aquela comparação absurda que ele fazia.
— Meu pai era um lorde, embora eu não o tenha conhecido realmente e tampouco cheguei a ter muito tempo da boa vida de um nobre.
Kiaracy ficou quieta, notando o tom de voz que ele assumiu. Warren parece distante por um momento, encarando as chamas como se houvesse alguma imagem refletida ali.
— Eu já lhe disse o meu nome de família, mas faz sentido que você não conheça a história desse nome, já que é uma estrangeira — disse Warren, roubando a atenção dela. — Os Florent eram uma família nobre até poucos anos atrás. No entanto, Gerard Florent, meu estúpido pai, colocou nossa família em muitas dívidas com o seu vício por apostas. Numa tentativa de quitar essas dívidas, ele apostou a vida de seus filhos com um nobre da região de Jade. — Kiaracy franziu as sobrancelhas, não entendia muito sobre casas nobres, mas a ideia de um pai vender seus filhos era absurdo para ela. — Ele perdeu. Meu pai foi morto pelas pessoas a quem ele devia. Lorde Richard Danfort se apossou do nosso castelo e da pequena porção de terra que tínhamos, para assegurar seu domínio ele tomou a mão da minha irmã, mesmo contra a vontade dela. E eu, ainda bebê, fui criado pelos Danfort para me tornar cavaleiro da família e servir como cão deles. Devo dizer que é uma grande alegria ao menos saber a história de como perdi minha vida numa aposta, não é como se o povo do sul já tivesse esquecido dessa história, então pude ter todos os detalhes.
Enquanto falava era impossível para Kiaracy não ver o ódio inflamado nos olhos do homem; em seu semblante havia tanta dor que deixou-a confusa. Ela baixou o olhar, sem nada a dizer quando a história chegou ao fim. Queria não ter perguntado sobre sua vida, assim evitaria ter que fazê-lo reviver tudo aquilo, mas agora era tarde e restava a ela apenas um amargo sentimento de culpa. Maldita curiosidade, pensou. Ela olhou para o pedaço de carne que tinha em mãos, não sentindo mais fome alguma.
— A garota que eu deveria estar procurando chama-se Coraline Danfort. Ela é a filha mais nova de minha irmã... Tem apenas catorze anos. — O semblante de Warren pareceu ficar mais suave. Um leve sorriso surgiu na face do homem e sumiu tão ligeiro quanto seu aparecimento. — Ela deixou uma carta anunciando sua fuga, mas não sei exatamente o que escreveu. Seu pai me ordenou que só voltasse à sua casa com a menina. — Houve mais um instante de quietude, onde o único barulho era o que a natureza produzia. Quando Warren voltou a falar sua voz era quase muda. — Minha irmã, a mãe dela, nunca gostou muito da filha, não suportava a olhar por muito tempo... Ficou perturbada após o parto e nunca se recuperou.
— Warren, não precisa continuar... — Kiaracy o encarou através da fumaça que emergia das chamas. Sempre que recordava-se da noite em que sua aldeia foi atacada era muito doloroso, como estar naquele momento mais uma vez. Da mesma forma deveria ser para o homem. Ele estava sofrendo, mesmo que tentasse esconder com todos os seus sorrisos. — Agora eu entendo, sei o porquê não quer levá-la de volta para a família. Eu também não faria. Respeito sua decisão... Mas, encontre-a e certifique-se de que está segura, uma garota vagando sozinha pelo reino não é sábio, digo isso por experiência própria.
— É provável que não tenha fugido sozinha, mas talvez esteja certa... Pensei tanto sobre não levá-la de volta que não estava me esforçando para encontrá-la. Seria bom me certificar que está bem — disse Warren, mordiscando alguns pedaços de sua carne e engolindo ligeiramente. — Pode ir dormir, eu fico com a primeira vigília.
Kiaracy teria protestado, mas percebeu que talvez fosse bom deixar ele um tempo sozinho, para refletir. A garota levantou-se e foi para junto de Éçai, que estava com as rédeas presas numa árvore afastada da fogueira, mas ainda próxima o bastante para receber um pouco do calor que ela emitia. Talvez nem conseguisse dormir, mas só o fato de deitar um pouco já era relaxante. Ela cobriu o chão com uma capa velha que carregava e colocou a bolsa debaixo da cabeça. Se cobriu com o cobertor em farrapos e manteve sua lança próxima da mão. Fechou os olhos e estava tão cansada que simplesmente cedeu aos sonhos.
•••
Ela abriu os olhos e piscou várias vezes até se acostumar com a claridade. Bocejou e então sentou-se lentamente. Foi preciso algum tempo sentada para colocar seus pensamentos em ordem. Imediatamente pôs-se de pé ao perceber que já era manhã. O sol brilhava num céu límpido de verão. Estava tão cansada que dormiu demais e sem qualquer cautela. Como sou idiota! Dormir tão relaxada viajando com um estranho! O medo lhe invadiu de imediato e sentiu-se incrivelmente tola. Sua atenção foi desviada quando ouviu uma voz e deixou os pensamentos de lado.
— Bom dia, princesa. — Warren arrumava a própria bolsa, presa ao cavalo.
— Por que não me acordou? — Kiaracy protestou, ignorando como ele se referiu a ela. Estava ao menos aliviada por não ter acontecido nada durante a noite; estava viva, não fora violada e seus pertences ainda estavam ali. — Deveria ter me acordado para a vigília!
— Você estava dormindo tão profundamente que preferi deixar que descansasse. Temos um bom caminho pela frente.
Kiaracy estava pronta para refutar quando se deu conta que havia mais pessoas no lugar. Dois homens estavam amarrados à uma árvore, com as bocas presas por pedaços de tecidos. As cabeças baixas denunciavam estarem desacordados. A garota desviou o olhar para buscar resposta com Warren, que percebeu a sua confusão.
— Ah, eles tentaram nos roubar durante a madrugada. Foi realmente uma sorte não ter sido durante um dos meus rápidos cochilos.
— Você os parou sozinho? — Kiaracy indagou, aproximando-se um pouco para ver melhor. — Estão mortos?
— Não estão mortos — Warren respondeu com simplicidade. As adagas dos salteadores estavam largadas aos pés deles. — Estava esperando você acordar para decidir se os matamos, deixamos aí ou os libertamos.
— E por que eu quem tenho que decidir isto? — Kiaracy voltou a encará-lo.
— Bom, os ladrões dessa região têm a péssima fama de matar suas vítimas, para não deixarem testemunhas. Eu teria os matado sem hesitar, mas não sabia se iria concordar com isto. Ouvi algumas histórias que os gardenianos costumavam ser bem pacíficos. — O homem ajeitou a sela do cavalo e se afastou dele, agachou aos pés dos ladrões e recolheu as adagas. — Então, o que vai ser?
Kiaracy ponderou um instante. Warren estava determinado a matá-los, se deixasse a escolha com ele já sabia a resposta. A vida daqueles homens estava nas mãos dela. Era inevitável pensar que não matar eles significava que eles poderiam fazer mal a outros. Mas mesmo que eles merecessem a morte, quem era Kiaracy para julgar se deveriam ou não receber tal punição? Quando criança seus pais haviam ensinado que a floresta punia as pessoas más. Os que cometiam algum crime grave em qualquer das aldeias eram exilados na floresta, sendo ela quem determinava se a pessoa merecia ou não viver.
Mas essa floresta não possui a mesma magia que a nossa... Kiaracy pensou. Como poderia então julgar? Quem iria decidir então qual o castigo que mereciam? Ela suspirou. Warren ainda esperava por sua resposta. Acordar tendo que tomar uma decisão tão importante lhe irritava. Se fosse qualquer outra pessoa teria dado uma resposta rápida. Kiaracy, no entanto, aprendeu desde cedo a refletir sobre suas escolhas, por menor que elas pudessem parecer. Estamos constantemente sendo testados e até a mais pequena das atitudes pode dizer muito sobre quem nós somos, então, meus queridos filhos, não economizem tempo quando tiverem que tomar uma decisão, ela recordava da lição que seu pai lhe dera certa vez.
— Eu não vou dar uma sentença. Deixe-os aí. Se os deuses deles julgarem que devem viver, então alguém passará por aqui e irá desamarrá-los. Se não, então eles não mereceram uma nova chance.
Warren deu de ombros e cravou as duas adagas na madeira acima das suas cabeças.
— Então vamos, ou passaremos mais um dia na estrada.
Ela assentiu. Olhou para trás apenas um único instante, pensando sobre aquela situação tão atípica que havia acabado de acontecer. Ficou feliz de ter lembrado da sabedoria do seu pai, tão feliz que não pôde evitar um sorriso enquanto admirava o céu azulado em sua frente. Seu pai sentia orgulho, tinha certeza que sim. Ele estava a observando, juntamente com todos os seus ancestrais. Pois aqueles que partiam não estavam realmente mortos, eles continuavam os guiando, invisíveis aos olhos. Foi o pai quem lhe recordou das palavras, sussurrando em seu ouvido. Era o seu legado.
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