Capítulo 4 - Kiaracy I

Kiaracy
(Tief ~ Aliant - Illyr)

A estrada que Kiaracy escolheu seguir era pouco movimentada. Saíra fazia seis dias de Tief na intenção de chegar à Aliant. Conhecia os riscos de um caminho menos utilizado, mas preferiu uma viagem silenciosa cortando os diversos bosques daquela região à esbarrar com nobres, cavaleiros e comerciantes. Montada em Éçai — uma égua de pelagem negra bastante brilhante — ela seguia calmamente pelo caminho próximo do sopé da montanha.

Os trajes dela eram surrados e velhos, uma capa de viagem escondia todo o seu corpo. Era já uma moça de dezesseis anos, mulher feita de cabelos castanhos e mal cuidados amarrados num rabo de cavalo, o rosto fino que pertenceu à mãe e os olhos do castanho-escuro do seu pai, assim como o cabelo era dele.

Presa à sela da égua trazia uma lança, com haste de madeira e uma ponta afiada de metal serrilhado. As marcas na madeira, símbolos que ela não compreendia e conferiam propriedades mágicas à arma, eram um lembrete constante de que aquilo veio da sua terra, a única posse que lhe restou de casa. Nem mesmo suas roupas, feitas do tecido illyriano, remetiam aos costumes do seu povo.

Em Illyr poucas mulheres carregavam armas, então por vezes a visão da jovem carregando a lança causava estranheza aos demais, um motivo a mais para evitar estradas movimentadas, vilarejos ou cidades. Kiaracy não se incomodava com os olhares, aprendia sozinha como manejar a lança e usava para se defender. Não eram raras as ocasiões em que os homens tentavam lhe tocar sem permissão.

Os dias nos vales do norte estavam quentes, o que a fez parar pelo menos duas vezes naquela manhã para dar de beber a égua. Mesmo com tantas paradas ela tinha a esperança de chegar ao seu destino antes do pôr do sol do próximo dia, para tanto viajou até mesmo durante a noite nos dias anteriores. Estava cansada de cavalgar e a pele por entre as pernas já escaldava, deixando a região molestada. Entretanto, seguia a pista que lhe foi passada em Tief, de que haviam alguns gardenianos residindo em uma pequena vila perto de Aliant. Nutria a esperança de entre esses encontrar seus irmãos, ou qualquer pista que a levasse até eles.

Eles estão vivos... Eles têm que estar vivos, repetia para si mesma, dia após dia.

Seguindo essa esperança e ansiosa para chegar ao destino, descansava o mínimo possível em sua viagem. Parava principalmente por conta da sua montaria. Comia pouco para economizar os suprimentos que lhe restava. Quando encontrava algum vilarejo passava reto, a menos que precisasse realmente de algo. Teve a sorte de não esbarrar com salteadores até aquele momento.

Por vezes pegava-se lembrando da infância em Gardenia e ficava ainda mais eufórica para rever aqueles que faziam parte do seu povo. Mas era a memória dos irmãos que lhe fortalecia.

Ela se recordava claramente da noite em que sua vila foi atacada pelos nahoranos. Conseguia se lembrar de seu pai que ficara para trás, conseguindo tempo para os que fugiam; e também lembrava do corpo da mãe tombando ao ser decapitada diante dos seus olhos. Ainda podia ouvir os gritos e o choro ecoando na mente antes de dormir, em seus pesadelos revia o assassino da mãe, o sangue dos corpos manchando a terra, o olhar de seu pai antes de vê-lo pela última vez. Era um milagre ter sobrevivido àquele massacre, poucos tiveram esse privilégio.

Antes de o cavaleiro negro ceifar sua vida, ela perdeu a consciência. Despertou dias depois, já na aldeia de Yõra, tinha sido resgatada por alguns sobreviventes do massacre, encontrada enrolada nas raízes de uma árvore que lhe forneceu proteção. Não havia sinais do homem que ia matá-la, mas Kiaracy jamais esqueceria da caveira esculpida no peitoral da armadura, os cabelos negros e longos, o rosto coberto de sangue e da assombrosa espada gigante que bebia o sangue da mãe.

Kiaracy acordou numa Gardenia devastada, a floresta parecia ter morrido, desprovida de cor e do encanto de antes. Nahor havia usurpado a fonte de vida daquela terra, diziam. O coração de Gardenia. A magia ancestral.

Ela não tinha qualquer noção sobre o que era a magia ancestral, o conhecimento aprofundado sobre os mistérios da magia de sua terra estava destinado aos xamãs. A única coisa que lhe foi ensinado é que a magia que alimentava a floresta fluía do templo ancestral, cujo a localização não era compartilhada para todos de Gardenia. E essa fonte antiga fortalecia a magia e fornecia vida à floresta, era de onde provinha toda riqueza e poder que envolvia aquela terra. Mas nem mesmo essa magia foi capaz de deter os tiranos estrangeiros.

Illyr acolheu, mesmo contra a vontade de Nahor, os poucos sobreviventes gardenianos. Kiaracy não encontrou os irmãos, mas sentia em seu âmago que eles estavam vivos, então ela não se uniu aos gardenianos que se espalharam pelo reino illyriano. Ao invés disso, trilhou seu duro caminho. Antes de aprender a sobreviver naquela terra estranha, passou fome, dor e miséria, carregando consigo apenas a lança que recebera de um velho guerreiro cansado de lutar, no barco que havia lhe transportado através do mar até Illyr.

Ela adotou um costume estrangeiro, aquele de nomear suas armas. Deu à sua lança o nome "Vingança Salgada", pois sempre que matasse um nahorano, sempre que alguém do seu povo fosse vingado; então cada gota de sangue seria a retribuição de uma lágrima derramada.

•••

Precisou fazer outra parada, Éçai estava exausta. Assim que avistou um pequeno lago no bosque ela deixou o animal se deliciar com a água. Suas pernas estavam doloridas, mal conseguia manter-se de pé, com muita dificuldade se jogou debaixo de uma árvore. O sol penetrava por entre a copa das árvores altas, os pássaros cantavam e davam vida ao lugar. O dia estava insuportavelmente quente.

Em Illyr os verões eram sempre torturantes; não se comparava com o que experimentou nas duas ocasiões em que esteve em Hator'Mut, cujo verão era agradável e o sol não castigava com a mesma intensidade, ao menos na região sul. Não era exagero o que todos diziam sobre o reino dos hatoranos, a beleza e atmosfera eram incomparáveis.

Kiaracy puxou a capa e a tirou, sentindo o ar quente lhe inundar. Desatou o cinto e tirou a lança da sela, jogando-a de lado. Vestia roupas leves de linho e couro, um pouco rude para o que as mulheres daquele reino costumavam vestir; usava gibão e não espartilho, calça ao invés de saias e botas no lugar das sapatilhas. Era uma visão de vestimenta que não agradava aos homens e despertava a zombaria das mulheres.

Embora concordasse que aquelas roupas eram insuportavelmente desconfortáveis, ainda assim eram as mais apropriadas para cavalgar, então não havia mais o que fazer. Sentia saudades dos vestidos leves do seu povo, trançados por fios de palha, que eram tão mais confortáveis do que aquelas calças grosseiras. Gostava também dos pés descalços, mas colocar os pés sem botas no estribo da sela, era uma tortura.

Um dia, talvez, quando puder ter uma casa com meus irmãos, então poderei costurar um belo vestido com fios de palha, como os que minha mãe fazia para mim, pensou ela, fazendo surgir um leve sorriso no canto da boca.

Debaixo da árvore, ela ficou quieta observando a égua beber água e depois ir fuçar o chão para devorar a vegetação rasteira. Deixaria a égua descansar bem antes de seguir viagem, assim talvez chegasse mais rápido. Quanto mais se aproximava de Aliant, mais ainda ficava ansiosa.

Sussurrou algumas palavras em sua língua-mãe. O dialeto saiu rude e mal pronunciado, fazia tempo que não usava o idioma. Aprendera a língua comum de Illyr e desde então usava apenas essa. Já nem mais se recordava como os gardenianos se cumprimentavam ou como deveria se referir aos mais velhos. Como pedir desculpas? Como se diz família? Essas dúvidas martelavam sua mente e algumas palavras haviam se perdido para sempre, era jovem demais quando vivia em Gardenia. Não havia esquecido completamente, mas haviam muitas palavras embaraçadas em sua mente e que causavam confusão quando tentava articular frases longas.

Ela sacudiu a cabeça e ajeitou o cabelo, um pouco frustrada por tanto que havia perdido sobre suas raízes. Levantou de onde estava e foi até Éçai, tirou um pedaço de carne assada do alforje preso à sela e comeu rapidamente. Pegou as rédeas da montaria e a prendeu numa árvore. Recolheu a sua lança e a manteve perto de si. As pernas ainda estavam doloridas, a região entre as coxas queimando como brasa.

Preciso de um banho, concluiu.

Despiu de suas vestes e deixou tudo reunido à margem do lago, o mais próximo que conseguia de si. Entrou na água e sentiu os pés afundarem na lama fria, soltou um breve suspiro diante da temperatura da água, mas agradeceu o alívio imediato que sentiu. Quando estava completamente dentro d'água, ela deixou os músculos relaxarem. Deixou a água ensopar seu cabelo e coçou com insistência para remover os piolhos.

Precisarei cortar outra vez o cabelo?, pensou com desânimo. A pele estava áspera e mal cheirosa. Esfregou todo o corpo com força, retirando a sujeira que depositara durante os dias.

— Tem um belo corpo, moça.

Ao ouvir a voz repentina, Kiaracy parou o que fazia para encarar um homem parado junto à égua. Ele tinha a pele clara, o cabelo negro e curto, carregava uma espada presa à cintura e a observava com certa malícia. O sorriso no rosto do estranho fez Kiaracy lentamente se aproximar da margem.

— O que faz andando sozinha por esses bosques tão perigosos? — perguntou o estranho, que já estava espiando dentro da bolsa presa na égua.

— Me banhando, não vê? — A voz saiu ríspida, alta o suficiente para que ouvisse, mas sem dar-se ao trabalho de gritar.

Ela deu passos cuidadosos. O homem se encontrava a uma distância segura, estava certa de que podia chegar até a margem do lago e apanhar Vingança Salgada antes que ele tivesse qualquer reação hostil.

— Sim, eu estou vendo, até demais... — Ele não a encarava, mantinha a atenção nos pertences que analisava dentro da bolsa. Era uma figura alta, esguia e também forte. Seu rosto carregava uma barba rala. — Então é verdade o que dizem a respeito das mulheres gardenianas. Realmente, nenhum pelo no corpo... Não à toa são tão requisitadas.

Kiaracy já pegara sua lança e estava de pé pronta para atacar. Do corpo nu as gotas de água escorriam e os cabelos molhados caíam pelo seu rosto, mas a garota não se incomodou, estava focada no estranho. O outro a encarou e deu um largo sorriso, tinha dentes brancos demais, ela notou. Ele voltou a fechar a mochila sem pegar nada e ergueu os braços no ar. Os olhos castanhos não inspiravam confiança.

— Calma, não estou lhe roubando. Tampouco vou lhe atacar. — Ele parecia se divertir com aquilo.

— Então o que quer?

— Estou procurando por uma pessoa — ele explicou, mas as palavras não foram convincentes o suficiente. Kiaracy lentamente se aproximou dele com a lança pronta e o olhar atento aos movimentos de sua mão. — Me chamo Warren Florent. — Ela não parou, os passos lentos e precisos. — Se der mais um passo, terei que sacar minha espada.

Ela deteve os próprios passos, mas continuou com a postura firme. Aguardou para ouvir se o que ele falava era realmente verdade, embora não conseguisse confiar no estranho. Warren, já com a mão esquerda no cabo da espada, deu um breve aceno de cabeça. Ficou então repentinamente sério, o sorriso do rosto se desfez e só então Kiaracy conseguiu confiar em seu semblante.

— Trabalho para a casa dos Danfort, do sul. A filha deles sumiu e estou à sua procura — disse Warren.

O olhar de Kiaracy foi atraído para as vestes de linho fino do homem, a espada era com certeza de um bom aço, a postura de alguém bem educado e treinado. Não parecia a aparência de um ladrão, poderia bem ser alguém de boa posição numa casa da nobreza, coisa que Kiaracy não notou num primeiro olhar.

— Não vi nenhum nobre desde que saí de Tief, há alguns dias.

— Entendo. — O homem olhou ao redor parecendo estudar o lugar, nem ao menos pareceu se incomodar em conferir se o que a moça dizia era ou não verdade, Kiaracy percebeu. Não ofereceu descrição alguma da moça e também não insistiu no assunto. — Bom, acho então que posso seguir meu caminho.

— Não vai dizer como ela se parece ou tentar extrair algo de minha memória? — Kiaracy retrucou lançando a ele novamente seu olhar de desconfiança.

Warren ponderou alguns segundos antes de oferecer uma resposta a ela. Sussurrou um "não", direto e sem explicações. Kiaracy suspeitou que talvez o sujeito estivesse mentindo. Ele fez menção de ir embora e a mulher deu um passo à frente. O homem mal havia lhe dado as costas quando ela voltou a falar.

— Sinto dizer, mas não me parece que está fazendo bem o seu trabalho.

Ele voltou a encarar a moça ainda nua e com a lança segura entre as duas mãos. Outra vez um sorriso se formou em seu rosto, diferente do outro, no entanto, era um sorriso que parecia desdém. A mão grande coçou a região da nuca.

— Tem toda a razão, por isso mesmo que não estou fazendo esforço algum para encontrá-la. Seja lá onde ela estiver, com certeza está mais feliz do que com a família de merda.

— Parece odiar seus senhores. Por que os serve então? — Kiaracy foi direto ao ponto, sempre teve esse "defeito", como ela mesma enxergava. Às vezes era uma garota muito curiosa, talvez isso fosse a única coisa que ainda lhe restasse da criança de outrora.

Dessa vez Warren não falou nada, mas sua expressão mudou sutilmente outra vez para algo que parecia desprezo. Ele virou as costas. Kiaracy notou o quanto a pergunta pareceu lhe incomodar. Não voltou a andar, ficou parado um bom tempo de costas para a moça.

— Você disse que veio de Tief, então deve estar seguindo para Aliant. As estradas são bem perigosas à medida que se aproxima da cidade, não é bom seguir viagem sozinha...

— Sei me defender! — Kiaracy retrucou, quase sentindo-se ofendida.

— Com certeza sabe. — Ele voltou a se virar para ela com um sorriso mais suave no rosto. — Mas eu adoraria uma companhia, você não?

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top