Capítulo 12 - Kiaracy III

Kiaracy
(Aliant - Illyr)

Finalmente ela havia chegado ao seu destino e seu coração batia mais forte do que nunca. Podia sentir o nó formado em sua garganta, aflita com o que poderia lhe esperar naquela cidade. Estariam realmente os seus irmãos naquele lugar? Temia que não e ansiava que sim. Aliant era uma cidade consideravelmente grande, mas não possuía nem metade do tamanho e beleza da capital. A cidade costeira, pelo pouco que Kiaracy sabia, mantinha-se principalmente por conta da pesca.

Não havia muros na periferia de Aliant, que era repleta de casas e estabelecimentos precários, muito juntas entre si, deixando as ruas escuras mesmo de dia. Pelo cheiro que Kiaracy sentia, podia julgar que não haviam sistemas de esgotos naquela área, o que não era incomum; os dutos higiênicos idealizados pelos estudiosos de Arquimedia ainda eram privilégios dos locais mais importantes

— Você disse que há uma vila de gardenianos aqui em Aliant, certo? — Warren indagou. — Se for a verdade, sei um local onde pode encontrar informações, pelo preço certo.

— Tudo bem — Kiaracy conseguiu dizer, estava muito extasiada com a expectativa de encontrar outros do seu povo. Não sabia ao certo onde o dito vilarejo ficava, apenas que estava muito próximo daquela cidade, provavelmente na floresta ou bosques da região.

— Vamos cortar caminho pelas ruas menos movimentadas, assim chegamos ao centro mais rápido.

Seguiram pelas vielas, observados pelos plebeus que viviam naquela parte da cidade. As ruas fediam tanto que Kiaracy perguntava-se como podiam viver naquele local, ela preferiu prender o fôlego pelo máximo de tempo possível à respirar aquela podridão, limitando-se a inspirar o ar apenas quando realmente precisava. Alguns mendigos estavam largados pelo chão e o odor que exalavam quase fazia a garota pensar que estavam mortos. Era uma visão triste e degradante aos seus olhos. Um povo sem magia... Completamente desconectados da natureza... pensou amargamente, lembrando-se dos lagos em que tomava banho constantemente, da casa que estava sempre limpa e da aldeia que não acumulava dejetos. Seu nariz precisou inspirar e captou um pouco do próprio odor do seu corpo. Mas talvez eu já não esteja muito diferente desse povo, esse pensamento era ainda pior.

Ela seguiu a marcha montada no cavalo, atrás de Warren, por isso não podia ver o seu rosto. Perguntava-se se ele estava tão incomodado quanto ela ou acostumado com aquele tipo de visão. Embora Kiaracy fosse uma nômade naquelas terras, geralmente ela viajava pelas estradas mais famosas de Illyr, evitando também as periferias das cidades. Não havia se habituado da mesma maneira com tamanha imundície.

Ao fim daquele tormento, saíram diante dos portões abertos, que davam para o centro da cidade. Kiaracy precisou baixar o lenço que lhe escondia a cabeça e parte do rosto, para evitar os olhares que uma descendente de Gardenia costumava receber. Foram questionados por guardas, e tiveram que informar quantos dias haveriam de ficar e também mostrar aquilo que transportavam. Sem muita demora, graças ao pagamento de quatro moedas de prata de Warren, puderam seguir sem mais questionamentos.

A parte da cidade que ficava depois dos muros era mais aberta ao ar livre e Kiaracy agradeceu por respirar ar puro. O sol da manhã brilhava sobre a praça que encontraram adiante, onde vendedores atraiam os clientes para suas mesas de venda aos gritos. A coisa que mais fedia no lugar eram os peixes e mariscos expostos, o que ao nariz de Kiaracy era mais agradável do que o odor das pessoas e ruas de fora do muro.

— Vamos, tem uma taverna bem conhecida por ali. — Warren virou para encarar a mulher, falando alto para ser ouvido no meio da multidão que abria espaço para as montarias passarem. — Tenho certeza que devem ter as informações que você procura. E cuidado com as bolsas! — Ao dizer isso, algumas pessoas ao redor ergueram a cabeça para encarar Warren no cavalo, com expressões pouco amigáveis que foram simplesmente ignoradas pelo homem.

Moveram-se então pela praça, até atravessá-la e chegar a uma taverna grande de dois andares, cuja a placa anunciava "O BAGRE RISONHO", alguns cavalos estavam amarrados ao redor e um estábulo ao lado exalava o seu odor característico de feno e fezes de cavalo. Um homem logo se aproximou oferecendo um local de descanso, água e palha para os cavalos ao preço de algumas moedas de prata. Kiaracy e Warren concordaram em deixar as montarias aos cuidados dele. Após tirar apenas as bolsas que continham pertences de maior importância, Kiaracy acariciou o focinho de Éçai e deu-lhe um beijo, sussurrando agradecimentos pelo esforço da égua até ali. O animal respondeu com um relincho. Depois, seguiu para dentro da taverna acompanhada do homem.

O Bagre Risonho era um lugar pequeno, embora bastante aconchegante. O ar estava preenchido pelo cheiro de peixe frito e pelo som dos risos. Haviam várias mesas espalhadas pelo ambiente, a maior parte já ocupada. Ninguém pareceu dar atenção aos dois recém-chegados, exceto pelo balconista e a mulher que carregava uma bandeja para o outro lado do salão. Kiaracy ajustou melhor o capuz que cobria seus cabelos.

— Vamos pedir algo, assim serão mais receptivos a nós — sugeriu Warren, já puxando uma cadeira e sentando-se; tirou o cinto da espada e a apoiou ao lado da mesa.

— Não quero demorar muito... — Kiaracy protestou, mas sentou ainda assim. Sua lança repousou apoiada na parede que estava bem ao lado.

— Calma, princesa — Ele sorriu. — Se realmente houver alguém do seu povo por aqui, vai vê-los hoje, garanto.

— Pare de me chamar assim, não sou princesa nenhuma! — exclamou Kiaracy, que já havia repetido isso tantas vezes ao longo da estrada.

— Você poderia, digo, se tivesse mais trejeitos e não se vestisse como homem. E claro, se tivesse saído das pernas de uma rainha.

O sorriso de Warren era incomodamente chamativo, com dentes brancos e apenas um pouco tortos; as bucas — ervas medicinais usadas também na higiene bucal — certamente ajudavam muito a manter aquele brilho. Mas apesar do sorriso bonito, o homem conseguia ser grandemente irritante sem se esforçar.

Eu tinha mesmo que aceitar a companhia desse idiota? indagou-se Kiaracy.

Depois do comentário, ela nada mais disse, virando o rosto vermelho de vergonha e irritação. Olhou ao redor, onde várias pessoas ocupavam as mesas e o balcão, tomando suas bebidas, desfrutando de suas refeições, falando em voz alta ou aos berros. Não havia atenção para a mesa que ocupavam. Ela retirou o lenço grosseiro que usava de capuz e arrumou seu cabelo desgrenhado. Notou o olhar fixo de Warren enquanto limpava o suor da nuca e do pescoço. Kiaracy ergueu as sobrancelhas, o questionando:

— O quê? — Seu tom de voz era defensivo e rude.

— Eu notei uma marca na sua nuca, quando você se banhava no dia que a encontrei. — Ele continuava com o sorriso descarado e Kiaracy revirou os olhos, sabendo exatamente o que se passava em sua mente ao lembrar daquilo.

— É uma marca de nascença... — limitou-se a dizer, mas totalmente sincera em sua resposta.

— Um pouco estranho... Se me recordo bem a marca parecia um sol, um círculo completamente negro e algumas linhas rodeando esse círculo. — Warren recuou a cabeça, para ficar mais à vontade no assento. — Muito bem desenhado para ser uma mancha de nascença.

A moça não respondeu mais nada, não havia o que dizer. Quando era criança, o velho xamã da sua aldeia já havia examinado a sua marca e também a da irmã — que ao contrário da sua era uma lua crescente —, segundo o sábio havia algo de mítico nas marcas, certamente, mas não sabia ao certo o que. "Um segredo ainda não revelado", costumava dizer seu pai, quando contava sobre isso. Por vezes Yaciara gostava de dizer que era uma bruxa poderosa e, como todas, usava seus feitiços sob a luz da noite e da lua. E o pai sempre repreendia tal insinuação; já que as bruxas não eram bem vistas como as curandeiras e os feiticeiros.

Kiaracy afastou os pensamentos quando enfim um dos trabalhadores do lugar atendeu aos acenos e berros de Warren. Um jovem muito magro e de cabelos negros se aproximou para saber o que iriam pedir. Já mais familiarizado com as opções da taverna, Warren pediu, para ambos, cerveja e robalo frito ao molho tradicional. Ficaram em silêncio até os pedidos chegarem. Embora Kiaracy quisesse logo perguntar a qualquer um naquele lugar sobre a localização do vilarejo, seu estômago implorava por algo para comer.

Demorou bem pouco para a comida chegar e logo estavam ambos enchendo a boca com a refeição. O peixe estava bem suculento, frito em azeite, decorado com rodelas de limão e coberto por um delicioso molho de alho levemente apimentado; veio também acompanhado de duas batatas e um bocado de massa cozida. Kiaracy logo percebeu o porquê do lugar ser bem conhecido, como Warren havia falado. Terminaram a refeição sem muita demora, a garota mal tocou na caneca de cerveja, apenas um gole para empurrar tudo para baixo, enquanto que ele tomou duas canecas cheias.

Warren acenou com a mão, chamando o homem que estava atrás do balcão, e não o menino que havia os servido. O homem de barba grossa e cabelos negros bastante espessos largou o copo e o pano que usava para limpá-lo. Kiaracy observou enquanto o possível dono do lugar marchava em direção a eles, era alto e bastante robusto, com braços pesados.

— Sor Warren Florent, a Rosa Traiçoeira... — O homem tinha uma voz grave; ele lançou um olhar rápido para Kiaracy e depois voltou a encarar Warren, muito sério. — E então?

— Prazer em revê-lo também Leslie, o Bardo Risonho — disse Sor Warren, mas não era Leslie quem estava sorrindo. Kiaracy ficou perguntando-se porque ambos tinham aquelas alcunhas. E não sabia a moça que o homem era cavaleiro consagrado para ter um Sor antes do nome, embora entendesse pouco sobre cavaleiros. — Preciso de uma informação.

— Se eu puder ajudar...

— Druidas, aqui em Aliant. Sabe onde ficam? — Warren indagou, baixando um pouco mais a voz, o que obrigou o taberneiro a baixar a cabeça para ouvir melhor. Kiaracy sabia que o seu povo era frequentemente chamados de druidas, povo do bosque, filhos da ilha e outros títulos semelhantes. Aquilo não a incomodava, era melhor do que os títulos ofensivos.

Kiaracy preferiu ficar em silêncio. Claramente Warren já havia frequentado aquele lugar outras vezes, saberia lidar melhor com aquele homem do que ela. Ainda lhe restavam algumas moedas de prata e também um pouco de ouro, caso precisasse usar de algum tipo de persuasão, embora suspeitasse que não fosse necessário.

— Ah... — O homem pareceu pensar algum tempo, passando a mão na farta barba. Ele voltou a olhar para Kiaracy, dessa vez com um olhar muito mais demorado e atento. A mulher estava acostumada a receber olhares dos homens, mas Leslie não a encarava estranhamente ou tampouco mirando seu corpo, estava observando sua face, suas feições, seus olhos. Por fim, disse: — Sim. Dizem que há um vilarejo formado por eles, — Leslie voltou a curvar um pouco o corpo, para baixar a voz assim como o outro havia feito. — Fica fora da cidade, basta seguir um pouco para o leste do bosque, na direção do rio. Não deve ser difícil chegar ao lugar, se eles quiserem que vocês os encontrem.

— Por que estão falando em voz tão baixa? — Kiaracy enfim resolveu falar, mantendo o mesmo tom de voz usado pelos dois.

— Ora, minha senhorita... — Leslie a encarou; tinha os olhos negros bastante profundos. — Você melhor que ninguém não deveria querer que qualquer um saiba dessa informação, especialmente os nahoranos.

Kiaracy cerrou os punhos, escondidos debaixo da mesa, e acenou com a cabeça. Warren tirou algumas moedas que carregava numa bolsa presa à cintura e colocou sobre a mesa, duas de prata e uma de ouro, levantando-se em seguida.

— Pela comida e pela informação. Obrigado, Leslie. — Sor Warren desviou o olhar para Kiaracy, enquanto prendia a espada na cintura. — Vamos?

Antes de partir, Kiaracy tirou da bolsa uma moeda de prata e outra de ouro e deixou sobre a mesa; apanhando a moeda de ouro de Sor Warren e lançando de volta a ele. Com um olhar de protesto, o homem a seguiu para fora da taberna. Encontraram os cavalos, já bem alimentados e tomando água nos estábulos. Depois de pagarem o cuidador, tomaram as rédeas e subiram na montaria. Restava a Kiaracy apenas quatro moedas de bronze, três de prata e uma de ouro, mas ela ficou satisfeita com a visita ao Bagre Risonho. Retornaram a marcha, cortando a cidade para o leste. Andavam devagar, mantendo um silêncio inquietante. Sor Warren havia a ajudado até ali e, agora que haviam chegado ao destino, Kiaracy sabia exatamente o que estava por vir.

— Por que não me contou que era um cavaleiro? — Foi Kiaracy quem rompeu o silêncio. Seus pensamentos curiosos saíram na forma de palavras: — "O bardo risonho" e "a rosa traiçoeira". Como ganharam esses títulos?

Warren soltou um riso baixo.

— Leslie é chamado assim pois, antes de criar sua taverna, ele era um músico bem conhecido na região... — Sor Warren soltou outro riso. — Certa vez, ele conseguiu parar uma briga feia de taberna chamando a atenção de todos com uma poesia acompanhada de alaúde. Todos na taberna começaram a rir da canção e a briga cessou, depois desse dia todos passaram a chamá-lo de O Bardo Risonho.

— E como era a poesia?

— Hum... Não tenho certeza, mas eu verei se consigo a letra para você. — Sor Warren parou o cavalo repentinamente. — Bom, acho que é aqui que nos separamos. — Estavam no meio de uma rua bem larga e com pouco movimento. — Preciso buscar informações sobre minha sobrinha, talvez você esteja certa, sobre verificar se ela está em segurança...

— Posso lhe ajudar, se quiser. — Kiaracy surpreendeu-se com suas próprias palavras, mas não tinha certeza se estava disposta a isso, pelo menos não antes de encontrar o seu povo. E meus irmãos, eles estarão lá...

— Não. Você precisa ir atrás de sua família. Está bem perto. — Sor Warren sorriu, um sorriso completamente genuíno. Ficaram se encarando por algum tempo, algumas pessoas passavam virando o rosto para observá-los, perguntando-se o porquê de estarem parados no meio do nada.

— Se é assim... Eu agradeço pela ajuda, Sor Warren Florent.

— Não me chame de Sor, princesa. É só um título formal, sem qualquer serventia além de uma falsa ilusão de poder. Chame-me apenas pelo meu nome, é o suficiente.

Antes de ela falar algo mais, ele puxou as rédeas do cavalo para outra direção. Kiaracy o observou por alguns instantes. Conheceram-se há tão pouco tempo, mas, apesar de ele ser irritante e inconveniente, ela gostou de sua companhia. Quase podia arriscar que, se continuassem juntos, Warren seria o primeiro amigo que receberia em anos. Ela o observou seguir no caminho contrário e lembrou-se de repente...

— Você ainda não me contou como conseguiu o seu título! — disse Kiaracy, com a voz alta o bastante para que pudesse ser ouvida.

Warren virou a cabeça, ainda com aquele sorriso pendendo no rosto, embora o sorriso estivesse vacilando.

— Da próxima vez que nos encontrarmos, princesa!

Foi o que ele disse, arrancando um pequeno sorriso de Kiaracy. Ela acariciou o pescoço de Éçai, afrouxou as rédeas e seguiu para o leste.

•••

Havia passado pouco tempo desde que havia deixado a cidade. A floresta que Kiaracy seguia era de árvores altas, mas que deixavam um espaço vasto entre si, permitindo assim que ela se locomovesse sem muitas dificuldades. Podia ouvir o som dos pássaros e das folhas balançando, permitindo-se recordar de sua casa, era tão calmo ali que logo percebeu por que o seu povo estaria habitando aquele lugar, ou talvez o seu povo que tivesse trazido tranquilidade para aquele bosque. Ainda não havia encontrado a aldeia, mas sentia em seu âmago que estava perto.

"...nos sonhos que carregam, mostra o sol e a lua para essa criança..."

Então, uma música invadiu os seus ouvidos. Era uma voz melodiosa, ela sabia a letra pois era uma canção que a mãe cantava para si quando criança. Kiaracy puxou as rédeas da égua, a fazendo parar, escutou com atenção e procurou a origem da música ao seu redor; não havia ninguém. Fechou os olhos por um momento, deixando-se guiar pela voz, Éçai se moveu em uma marcha lenta, esperta o suficiente para desviar das pedras e raízes que poderiam lhe causar um acidente.

A montaria parou de trotar subitamente, como se para evitar a colisão com algo. Abrindo os olhos Kiaracy notou que estava na margem de um riacho e havia descoberto quem cantava a música, embora estivesse murmurando-a e não gritando aos quatro ventos.

"...doce espírito alvo do bosque, que esconde os segredos em teus olhos mágicos..."

Ela saltou do cavalo e parou, observando da margem enquanto um garoto coletava pedras de dentro da água. Era um menino com não mais que seis anos, seus cabelos negros eram curtos e bastante lisos, tinha a pele como de avelã levemente tostada. O olhar do menino e da moça se encontraram, quando ele parou de cantar. Os olhos dele eram escuros e estreitos. Kiaracy achou que ele fosse fugir, mas ao invés disso o menino sorriu.

— Olá. — A voz dele era gentil e atingiu Kiaracy como um sopro de primavera, fazendo-a sentir algo que não conseguia explicar. Uma paz intensa. Ele falava no idioma de sua terra natal. — Eu me chamo Rudá. Está perdida?

Kiaracy acenou positivamente com a cabeça, um pouco atordoada e ainda incapaz de descrever a sensação que tomava conta de si. O menino saiu do rio em sua direção, largando as várias pedras que segurava nas mãos.

— Vem, vou te levar para casa. — Ele segurou a mão de Kiaracy e a puxou. A garota segurou as rédeas da égua e seguiu o menino, pois sabia que ele era o caminho que estava buscando.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top