Capítulo 11 - Amina II
Amina
(Haz'Bay - Hator'Mut)
As grandes portas duplas de madeira de carvalho-azul foram abertas outra vez e um homem velho entrou. Ele estreitava os olhos para enxergar melhor, apoiava-se numa bengala de madeira e caminhava lentamente, ao lado dele uma moça lhe segurava o braço. Ambos pararam bem em frente à mesa retangular no fim do salão, a menina agachou-se segurando com os dedos o vestido encardido, e o velho apenas baixou a cabeça em reverência à Senhora Protetora de Haz'Bay, Abeni Unkara. A Princesa Amina estava bem ao lado direito da mãe, que ocupava a cadeira central da grande mesa do salão principal do castelo. Do lado esquerdo de Abeni estava um escrivão com o pergaminho e tinta prontos para anotar.
Amina podia apenas ouvir enquanto a mãe atendia os pedidos dos vassalos que viviam na região. Como sua mãe sempre dizia, era importante para ela aprender como lidar com tais questões, afinal a própria poderia ser responsável por isso um dia. Embora Amina achasse entediante estar sentada ali, apenas ouvindo e observando, ela entendia que era uma de suas obrigações como parte da família. E a princesa nunca fugia de suas obrigações.
— Minha Senhora — disse o velho, depois que Abeni lhe deu a palavra e pediu gentilmente que ambos erguessem suas cabeças. —, vivo num vilarejo longe daqui, já quase próximo da muralha, onde há alguns dias um grupo de ladrões vêm invadindo as residências durante a madrugada e furtando os bens de valor dos moradores, assim como nosso gado. Venho em nome de todos suplicar por ajuda à nossa suserana.
— No vilarejo não há homens ou guerreiros que possam os defender? — Abeni indagou com a face séria inalterada. Amina se perguntava como a mãe conseguia manter aquela expressão tão formal diante das diversas situações que recebiam naquele salão. A própria menina sentia piedade pelo homem, cujo a voz parecia implorar. Mas não cabia a ela falar algo ou oferecer soluções.
— Há um guarda, senhora, mas já está tão velho que não consegue nos proteger devidamente — disse o homem. — É uma vila pequena, a maioria dos moradores estão no fim da vida ou são trabalhadores do campo, nossos filhos não possuem espadas e os que têm servem ao rei em outras regiões.
— Entendo. — Abeni olhou para o escrivão ao seu lado, aguardando que ele terminasse de anotar para dar sua palavra. — Mandarei um cavaleiro acompanhado de dois guardas para o vilarejo, eles irão averiguar a situação e farão a segurança enquanto buscam capturar os salteadores, assim como os bens roubados. Se os roubos forem como diz e o que foi levado não puder ser recuperado, farei questão de ofertar algumas moedas de ouro ao vilarejo para que possam restabelecer parte das perdas. Sor Gran?
— Às ordens, senhora. — Um homem grande e esbanjando vitalidade, embora os cabelos já fossem grisalhos, deu um passo à frente. Estava até aquele momento parado ao lado da mesa, observando. Era o líder da guarda do castelo.
— Acompanhe o homem e colha mais informações sobre o vilarejo, envie um cavaleiro e dois bons soldados e oriente-os sobre o que devem fazer. Diga também para que fiquem por pelo menos duas estações, o cavaleiro deverá instruir alguns jovens da aldeia no uso de espada, assim terão seus próprios defensores.
Abeni falava rápido, parecia ter as palavras na ponta da língua, tão acostumada que estava a resolver aqueles assuntos. Ela ajeitou-se na cadeira quando terminou de falar e suspirou.
Sor Gran deixou a sala, seguido pelo velho e sua acompanhante. Em seguida, um guarda entrou para avisar que não haviam mais petições. Abeni liberou o escrivão, que recolheu os papeis e suas ferramentas. Quando o escrivão passou pela porta, estavam na sala apenas Abeni, Amina e dois guardas juntos à porta. Havia sido um dia tranquilo de pedidos, não haviam tantos conflitos em Haz'Bay que demandasse longas audiências. O dever de um protetor era garantir a paz na região que lhe havia sido designado, lidando por si só com questões menores e evocando a atenção do rei quando havia situações mais graves a lidar. Abeni nunca precisou que Azekel resolvesse os pequenos conflitos que chegavam para si.
— Acabamos por hoje. Se tiver alguma pergunta, faça. — Abeni virou-se para a filha.
— A senhora falou que mandaria averiguar se os roubos eram verdadeiros, significa que não acreditou nas palavras dele? — perguntou Amina.
— A questão não são suas crenças. Por mais que você acredite nas palavras de todos que passam por aqui, deve antes confirmar cada história, por precaução — explicou com paciência, como a boa tutora que Amina enxergava. — Por mais confiável que possa parecer, sempre duvide. Não podemos gastar os recursos do reino com charlatões.
Amina acenou com a cabeça. Poderiam ter sido simples conselhos de uma senhora outrora rainha para a princesa, mas foi impossível para Amina não relacionar as palavras com tudo o que havia acontecido quinze anos atrás, na primavera sangrenta. Ela perguntava-se como havia sido para seu pai a sensação de ser traído por um dos vassalos, uma pessoa que havia jurado proteger terras em nome do rei e que sempre estaria disposto a lutar em seu nome. Amina afastou os pensamentos, odiava recordar-se desses eventos, dos quais não tinha nenhuma memória, já que era apenas uma bebê no berço.
Antes que a princesa ou a mãe pudessem levantar da mesa, a grande porta foi aberta e o Rei Azekel entrou na sala. O homem estava acompanhado de dois dos cavaleiros dourados, Sor Finnigan e Sor Ezra. Os três marchavam em direção a mesa, cada cavaleiro com a mão no cabo da espada e o rei com uma postura ereta, trazendo um rosto sério e de poucas expressões. Amina podia perceber que era um assunto importante a ser tratado.
— Nos deixem a sós — ordenou o rei e ambos cavaleiros acenaram positivamente com a cabeça, marchando de volta para fora da sala. Azekel virou a cabeça, encarando dois guardas ainda dispostos ao lado da porta. A baía real era o único local em toda Hator'Mut onde o rei não podia dar ordens aos guardas do castelo, exceto em casos excepcionais, normalmente apenas a Protetora de Haz'Bay tinha esse direito.
— Saíam — Abeni proferiu e ambos os guardas saíram da sala. A porta foi fechada e estavam apenas os três membros da família no lugar. A mulher recostou-se na cadeira. Amina observou com estranheza mãe e filho se encarando com cumplicidade.
— Mãe, como combinamos, está na hora de falar com Amina sobre aquele assunto — disse Azekel, e se aproximou da mesa em passos curtos. Abeni concordou com a cabeça.
— Que assunto? — Amina quis saber, notando que o irmão tinha em mãos um pergaminho.
— Esse pergaminho veio de Nahor — disse o rei e Amina sentiu um súbito arrepio lhe subir a espinha. Azekel depositou o pergaminho na mesa, de frente para a princesa. O selo estava rompido, mas ela conseguia distinguir um escudo tomado por chamas; ela conhecia aquele símbolo, pertencia à família real de Nahor, os Hakonsen.
Com um pressentimento ruim lhe cobrindo, Amina abriu o pergaminho e leu seu conteúdo vagarosamente. Ao terminar, releu uma segunda vez e ainda assim ficou confusa com as palavras ali escritas. Ela devolveu o pergaminho à mesa e encarou o irmão, como se estivesse esperando que ele explicasse aquilo.
— Eles querem... Um acordo? — indagou Amina.
Azekel acenou com a cabeça, confirmando os temores dela. Amina inspirou fundo e buscou o olhar da mãe, cujo rosto estava virado para o lado oposto.
— Os Hakonsen desejam unir nossas duas casas, casando você com o segundo filho na sucessão do trono de Nahor, o Príncipe Rallius — explicou Azekel, embora a princesa tenha compreendido as palavras escritas. — Unindo as duas casas eles irão permitir uma liberdade maior do nosso comércio de tecidos e pedras preciosas por Nahor. O que é apenas uma desculpa, a união apenas...
— Protegeria Hator'Mut de um ataque nahorano — Amina disse, conseguindo encarar Azekel nos olhos. — Essa carta é quase uma ameaça de guerra velada, não é? Aceitamos essa união, para assim eles terem mais acesso às nossas riquezas, ou então eles nos atacam.
— Você não é obrigada a nada disso — disse Abeni, com a voz exasperada. — Eles não podem nos ameaçar!
— Sim, eles podem — Amina afirmou, assustando a mãe com suas palavras. — Nahor tem o exército mais forte do Continente, numa guerra seríamos massacrados, assim como fomos há quinhentos anos. Conheço a história.
No reinado de Edrick Hakonsen, trezentos e cinquenta anos antes, Nahor investiu com um poderoso exército contra Hator'Mut e conquistou todo o território da Terra de Outono, levou cem anos para que os hatoranos reunissem a força necessária para expulsar Nahor e só conseguiram com o auxílio de três antigos xamãs gardenianos, que rejeitando a paz do seu povo resolveram oferecer suporte com o uso de poderosa magia. Depois disso, levou ainda mais tempo para que conseguissem limpar Hator'Mut da influência cultural nahorana. E essa não havia sido a primeira vez que Nahor tentou conquistar aquele reino ou qualquer outro.
— Amina... — O rei carregava tristeza no olhar, a princesa notou. Era então essa a preocupação que lhe cobria o semblante desde que havia chegado na baía. — A escolha é sua, eu nunca poderia obrigá-la a isto. Se precisarmos nos defender, então iremos fazer isso. É egoísmo de minha parte, eu sei, mas se sangue for necessário, então assim seja.
— Não. O povo ainda tem medo desde que Jonathan Sollaris tentou usurpar o trono. Já sofremos o suficiente e não precisamos de mais sangue manchando os nossos jardins. — disse Amina, numa bravura e confiança que nunca pensou existir dentro de si, estava acima de tudo surpresa com a própria convicção, como se de um momento para o outro tivesse envelhecido alguns anos. Ela entendia perfeitamente como deveria agir. — É meu dever fazer o que tiver ao meu alcance para garantir a segurança do povo. Eu tenho que ser forte, assim como vocês. De qualquer maneira, já estou em tempo de casar, iria acontecer cedo ou tarde.
— Mas não precisa ser com um nahorano! — Abeni ainda estava exaltada, os olhos marejados. Amina bem sabia que era o coração de mãe falando, pois qualquer governante em sã consciência veria a verdade. — Pela Deusa! O rei deles é uma pessoa terrível, ordenou massacrar um povo inteiro! Gardenia nunca desejou guerra alguma, não interagiam com nenhum outro povo. E ainda assim, eles marcharam contra eles e dizimaram suas terras! É um povo cruel e que não respeita os outros.
— Por isso mesmo, mãe. — Amina segurou a mão dela, encarando-a no fundo dos olhos. — Tenho que cumprir com minhas obrigações. É assim que deve ser. — Ela acariciou o rosto da mãe, que não lutava para esconder seu choro.
— Eles não lhe farão mal algum, irmã. Eu os mataria, cada um, se souber que lhe machucaram.
Azekel tinha um semblante carregado de fúria. Os punhos estavam fechados com força.
— Sei que sim. — Amina tentou oferecer um curto sorriso, embora seu coração estivesse aflito com as mais diversas possibilidades do que poderia acontecer. — O pergaminho diz que é tradição em Nahor que a mulher conviva por um tempo com o futuro noivo até o dia do casamento. Suponho que devo pôr o véu e me apresentar a ele.
— Se realmente estiver de acordo com isso, você virá comigo para a capital daqui a cinco dias. Ficará por lá um tempo, até recebermos uma resposta deles e então partirá para Nahor — Azekel afirmou, buscando manter firmeza na voz. Era o rei falando.. — Mandarei um mensageiro para Nahor ainda hoje com uma resposta sobre esse assunto. E também, solicitando que enviem um dos seus filhos, para que conviva conosco e partilhem de nossa casa, será o nosso...
— Refém? — Amina sussurrou, embora não tivesse a intenção de parecer rude. Ela baixou o olhar. — Quanto tempo até eu ter que ir para Nahor?
— Os mensageiros viajam bem mais rápido do que um viajante normal e são mais seguros que os falcões... Deve levar cerca de quinze dias para a mensagem chegar ao rei. Depois, mais quinze para a resposta voltar até nós.
Amina acenou com a cabeça, levantando da cadeira que ocupava. A mãe já não mais chorava, mas tinha um olhar perdido e uma feição apática, como se tivesse apenas meio consciente do que acontecia ao redor. A princesa tentou consolar a mulher, entendendo como ela deveria estar se sentindo, afinal havia perdido o marido — o Rei Alexi — e agora a última filha estava deixando sua casa. Azekel aproximou-se e abraçou Amina, um aperto caloroso. A garota lutou para manter-se forte.
Ao deixar a sala, a princesa foi direto para o quarto, agradecendo que Darline não estivesse lá quando chegou. Jogou-se na cama sentindo-se extremamente cansada, puxou os lençóis e escondeu o rosto no tecido, para abafar o som do choro.
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