Capítulo 2
Enquanto as Rosas se preparavam para sua apresentação, certo cavalheiro retornava aos seus hábitos, ainda que achasse que ninguém havia notado que só chegava em casa ao amanhecer. E mesmo cumprindo seus compromissos profissionais, o comportamento do Sr. Kane James Carter era a fonte da insatisfação de seu pai observador. A formação na Inglaterra e o título de advogado não impressionava tanto quanto a fortuna que ajudava o pai a administrar e o Sr. Carter temia tanto que o filho não se acomodasse e constituísse família quanto fosse fisgado por alguma interesseira.
O Sr. Carter estava disposto a dar fim as noites do filho se divertindo com os amigos em clubes para cavalheiros, ou ao menos ver aquelas noites se tornarem menos frequentes.
Ele acordou mais cedo que o habitual, vestiu um roupão por cima das vestes de dormir e foi para o escritório, deixando a porta aberta o suficiente para ver o corredor.
Sua espera logo rendeu frutos.
Ouviu os passos do filho. Ele andava lentamente, no entanto suas pisadas ecoavam no silêncio da casa. E quando chamou por ele, teve a impressão que não só o havia surpreendido, como ativou o carisma que Kane usava para se safar quando encurralado.
― Meu pai! ― cumprimentou ele.
Kane sorriu e o Sr. Carter observou-o. Casaca jogada sobre o ombro, gravata saindo pelo bolso esquerdo e o típico cheiro de Bourbon e perfume feminino de quase toda as manhãs, porém agindo como se estivesse voltando da missa.
― Já acordado? ― prosseguiu como se não repasse a careta do pai.
Com um suspiro, ele sentou na cadeira confortável à frente da elegante mesa de mogno que o pai apontava.
Kane estava cansado e queria dormir um pouco antes de sair para o compromisso daquela manhã, mas não ousaria dizer nada ao pai. Sentou-se, esperando não estar num estado tão deplorável como há algumas noites, apesar de sentir-se enjoado. Passara dos limites, era evidente pelo olhar do pai sobre ele, como querendo uma explicação por parte de Kane.
― Diga-me, Kane, algo lhe falta? ― começou o Sr. Carter começou, esfregando a barba ao fitar o filho.
― Se falta...? ― indagou Kane, confuso.
― Dinheiro, conforto, posição social...
Kane desviou o olhar.
― Não, senhor.
― A semana inteira, Kane! Qual é o problema? ― o tom de voz do Sr. Carter era baixo, porém mortalmente sério.
― Nenhum, meu pai.
― Então é melhor parar com isso! ― Ele praticamente cuspia as palavras. ― Não sei que tipo de vida você levava na Inglaterra, mas aqui, nesta casa, eu exijo respeito! Sua mãe... Você não pensa em sua mãe?
― Desculpe ― murmurou Kane. ― Passei dos limites e isso não se repetirá.
Ao menos, não a parte de ser pego. Ele daria um jeito escapar sorrateiramente.
O cansaço voltou ao ser dispensado e subiu a escada se arrastando. Tudo o que precisava eram algumas horas de sono no conforto da sua cama, longe de música, cheiro de charuto e a conversa vazia de mais uma mulher.
Despiu-se e se deitou lutando com uma imagem que o perseguia a dias.
O perfil da jovem loira, no belo vestido rosa-escuro que parecia fugir do seu olhar era nítida em suas pálpebras fechadas.
Afastou a imagem dos seus pensamentos, ainda que teimasse em voltar, e, vencido pelo cansaço, adormeceu.
O dia amanheceu e enquanto alguns dormiam profundamente, outros despertavam cedo.
Marie havia acordado com os passos trôpegos do irmão que parecia esbarrar em todos os móveis em sua tentativa de chegar ao seu aposento. Ouviu sua mãe repreendendo-o e logo silêncio.
Pensava que Leon não tinha noção do quanto estaria encrencado se não parasse com aquilo. Ela também não gostava de pensar que a volta de Kane colaborava com aquele comportamento. Não que ele fosse culpado das ações dos outros três, Leon, Jason e Steve.
Marie se levantou, sabendo que não voltaria a dormir. Arrumou-se e desceu para a sala onde sua mãe já tomava uma xícara de café enquanto as criadas serviam torradas e geleia, tentando não parecer apressadas. Era sinal que sua mãe não havia dormido direito.
― Bom dia ― cumprimentou.
― Bom dia, filha! Seu irmão a acordou ― disse a Sra. Armand, parecendo mais preocupada do que irritada com Leon.
― Não, não acordou ― mentiu, tentando não fazer piorar a situação do irmão.
― Não precisa defendê-lo! ― A Sra. Armand serviu uma xícara de café à filha. ― O comportamento de Leon me irrita profundamente.
A jovem ouviu a mãe reclamar de Leon e, claro, dizer que ele precisava se interessar por alguma boa moça, fato com o qual Marie não concordava. Para ela, nenhuma mulher deveria ter a responsabilidade de mudar um homem. Tinha dó da pobre moça, se Leon viesse a conhecer alguma durante a temporada, pois mudá-lo seria um grande trabalho.
― Outro que precisa de rumo é Kane ― disse a Sra. Armand, pensativa, olhando Marie de esguelha. ― Falando nele, fique de olho naquela Srta. Lyra Ann.
Marie colocou a xícara sobre o pires com uma careta pouco refinada no rosto.
Lyra era adorável e ficara feliz em passar algum tempo com ela durante a semana. Diferentemente das outras, que só falavam em bailes e rapazes, elas tinham outros interesses, conversavam sobre lugares que gostariam de conhecer, livros que haviam lido, família e o que esperavam do futuro. Obviamente haviam conversado sobre rapazes. Apesar de Lyra ter sido discreta, Marie sabia que havia alguém em Londres, que sua família aprovava, mas que ela não tinha qualquer interesse amoroso.
Não comentou sobre sua mãe desejar a fazê-la a menina dos olhos do Sr. Kane Carter. Além disso, ela havia visto o quanto ele havia olhado para Lyra.
― Achei que a senhora havia gostado dela ― disse Marie, fingindo surpresa pelo comentário.
― Gostei! Ela seria perfeita para Leon ― assinalou a Sra. Armand depois de um gole de café. ― Ela é rica, de família influente e de uma beleza que dá nos nervos!
Marie observou a mãe apertar os lábios em desgosto, certa que ela fazia planos para sua nova amiga e seu irmão mais velho.
Marie ignorava todo e qualquer comentário sobre ser cuidadosa em relação a sua amizade com Lyra. Para seu desagrado, a Sra. Armand enxergava sua mais nova amiga como uma rival entre as Rosas e isso não era nado bom, pois aguçava o espírito competitivo de sua mãe.
Louise Armand não era boba, afinal, fora, em partes, sua inteligência que garantira o matrimônio como Sr. Armand. Ela admitia que uma aproximação entre Lyra e Leon seria ótimo e o incentivaria a cortejá-la, algo que ajudaria sua filha. Porém Marie tinha certeza ser um grande erro, sendo seu irmão muito reservado no que dizia aos seus interesses amorosos.
― Ora, não acho que devíamos interferir nisso! Leon faria pirraça assim que percebesse que a senhora está atrás de uma noiva para ele ― falou como quem não se importasse.
Sabia que seu irmão seria inconveniente se o obrigassem a acompanhar Lyra.
― Não estou disposta a fazer as vontades dele! ― retrucou a Sra. Armand.
Sob o olhar curioso da filha, ela colocou um pequeno prato com biscoitos e um copo de leite para levar para Leon.
― Claro que não ― sussurrou Marie.
Nos últimos dias, tudo corria bem para que uma nova amizade desabrochasse.
Lyra e Marie se encontraram quase que diariamente e o assunto entre as duas parecia nunca esgotar. Ambas gostavam de caminhar pelo parque e tinham a mesma paixão pelos livros e arte.
Lyra não achara que se adaptaria tão rapidamente longe dos tios e do irmão mais novo, contudo a presença de Marie a ajudou e graças a ela, Lyra até gostava da ideia de ir ao chá que se realizaria em Casarubra, a propriedade dos Carter, família fundadora de Farthell, onde a Sra. Carter receberia as escolhidas.
Lyra estava ansiosa. Conheceria outras amigas de Marie e esperava que fossem como ela, gentis e amigáveis.
Naquela tarde, Lyra estava ansiosa. Trocara de vestido pela segunda vez e reparava em quantos vestidos cor-de-rosa havia em seu armário. Fez uma careta e escolheu um azul muito claro, de mangas longas, enfeitadas por pequenas pérolas nos punhos, não tão volumoso. Olhava-se no espelho enquanto sua criada arrumava seu cabelo, prendendo parte dele, deixando longos cachos descer por suas costas.
― Mamãe ― chamou, virando para a mãe, que a observava da poltrona onde estava sentada. ― Minha presença hoje será a confirmação de que serei uma Rosa como Marie?
O convite de Marie havia sido enviado junto com uma rosa amarela ao completar seu décimo sétimo aniversário e Lyra achava que ser chamada somente alguns dias antes do início da Temporada das Rosas poderia ser um problema para as demais escolhidas.
A Sra. St. James era habituada a certa adulação de algumas das mulheres da sociedade e teria muito mais se fosse o tipo que se preocupava ou participava avidamente daquele tipo de evento. Mais por educação havia concordado que Lyra fosse ao chá. Preocupava-se se não seria uma exposição desnecessária dela em tantos bailes, jantares, passeios e chás. Por outro lado, pensava que ela poderia ampliar o círculo de amizades. Lyra geralmente era quieta e gostava mais dos livros e tranquilidade do que eventos sociais. Seu marido concordava, entretanto, achava importante que ela participasse, já que parecia ter impressionado as Damas da Rosa Amarela.
― Querida, apenas se divirta ― orientou a Sra. St. James.
Lyra suspirou e acenou. Seus pais achavam que não havia nada demais nos eventos da Rosa Amarela, além de admiradores e galanteios, vestidos e diversão para ocuparem as horas da filha, então ela concordou.
A Sra. St. James deu uma última olhada no espelho, colocando o brinco de esmeraldas que combinavam com seu elegante vestido, enquanto Lyra a aguardava, admirando-a, então seguiram para a residência dos Carter, também conhecida como Casarubra.
A mansão era imensa e havia arcos imponentes e portões gigantescos. Tinha mesmo um tom avermelhado nas paredes do lado de fora, o que a fazia única, não somente pela beleza da construção, similar a um palacete e seus belos jardins, mas por estar situada na região mais alta de Farthell State, o que a destacava ainda mais.
Havia uma bela fonte em frente à casa e já haviam algumas carruagens paradas ali. O burburinho de um grupo de debutantes que conversavam no hall de entrada era audível e várias mulheres falavam com a anfitriã.
A Sra. Carter as recebeu como se fossem conhecidas de longa data.
Lyra procurava Marie com os olhos, não deixando de notar o breve aceno de aprovação das Damas da Rosa em sua direção.
Marie estava com outras duas moças. Ela sorriu e foi encontrá-la, puxando-a naquela direção.
Lyra se aproximou sorrindo.
Havia uma ruiva de longos cabelos lisos e olhos curiosos, a Srta. Brenda Foster. Ela era a uma das poucas que não olhou para Lyra como se fosse injusto ela estar ali. Lyra também foi apresentada à Srta. Jane Donelly, que a fitou com tanto interesse quanto a Srta. Foster.
Todas queriam saber como Lady D. havia permitido que ela entrasse para as Rosas, coisa que a própria Lyra ainda tentava entender.
Com o passar dos minutos, elas se sentaram próximas.
― Esta é minha segunda temporada ― dizia Jane. ― Minha mãe ainda não se conformou minha recusa em ser cortejada pelo filho de um importante político, contudo não me arrependo.
― Sua mãe não está feliz, não é, Jane ― indagou Marie, suavemente.
― A pressão dela aumentou muito nesta temporada ― admitiu Jane. ― Mas eu não me importo com isso, apesar de mamãe dizer que serei motivo de piada se tivera uma terceira temporada e que provavelmente não estarei mais entre as Rosas.
― Talvez seja melhor ― opinou Brenda ― As Rosas têm quase que uma obrigação de arrumar pretendente! Eu prefiro não ter essa obrigação.
― Minha mãe está me enlouquecendo! ― Marie suspirou. ― Sorte da Lyra, que tem uma mãe tranquila.
― Veremos até quando!
Lyra riu, pensando que com o passar das semanas, ao conviver com as demais mães, sua mãe poderia deixar de ser tão tranquila.
― Kane está aqui, Marie! ― cochichou Brenda. Ao menos tentou, porque se fez ouvir por um grupo próximo e o burburinho parecia escandaloso.
Lyra ouviu risinhos e viu as Rosas se empertigando, enviando seus melhores sorrisos para alguém que chamara a atenção de todas. Virou-se para ver quem era o motivo de tanta agitação e o viu.
Era ele, mais uma vez olhando em sua direção com o queixo tensionado, ouvindo, ou não, o que a Sra. Carter dizia.
― Quem é ele? ― perguntou, desconfortável pelo escrutínio dele.
― Kane James Carter ― respondeu Brenda, admirando-o. ― Ele voltou há pouco tempo da Europa. Espero que esteja em todos os eventos da Rosa Amarela.
― O Sr. Carter não gosta deste tipo de evento ― disse Marie, que não deixou de notar como ele novamente parecia hipnotizado por sua nova amiga. ― Embora a Sra. Carter provavelmente o fará comparecer a alguns.
Marie estava certa.
Do outro lado da sala, Kane não prestava atenção na metade das coisas que sua mãe dizia. Ela confirmava sua presença no primeiro baile, que se realizaria em dois dias, e Lady D. parecia satisfeita.
Kane se sentia encurralado com todas aquelas mães e Rosas plantadas dentro de sua casa.
E lá estava ela, a donzela do vestido cor-de-rosa, e ela o tinha emudecido. Não havia conseguido formular uma frase ainda.
Pediu um momento para sua mãe, levando-a consigo para o escritório do pai, cumprimentando rapidamente as moças pelas quais passava. Fechou a porta atrás de si, respirando aliviado por estar ali. Pegaria os documentos que precisava e sairia dali o mais rápido possível.
― Poderia ter me avisado que teríamos um batalhão de Rosas aqui ― reclamou, tentando ignorar a imagem da debutante que capturara sua atenção. ― Sabe como isso me incomoda.
― Se você estivesse conosco para o desjejum ou mesmo o jantar, saberia que hoje é o primeiro chá das Rosas ― disse ela e viu o filho erguer os olhos da papelada e desfazer a careta.
― Eu sei, tenho estado ausente ― disse, apressado. ― Desculpe, mãe.
― Querido, fique para o chá ― chamou. ― Serviremos a torta de maçã que você adora.
― Nem que minha vida dependesse disso ― recusou com expressão horrorizada e riu da indignação da Sra. Carter. Não precisava se ver rodeado de senhoritas em idade casadoura quando não desejava se casar. ― Já é o bastante que tenha confirmado minha presença no baile, não?
― O que faz em casa a essa hora, afinal?
Kane apontou os documentos.
― Tinha certeza que havia levado isso para a empresa.
Despediu-se da mãe ao vê-la sair.
Kane respirou fundo. Passaria rapidamente pela sala, ou sairia por alguma porta lateral ou dos fundos. Alguns minutos depois, saiu do escritório percebendo que a conversa parecia mais distante. Ao chegar na sala, viu que estava vazia.
Ou quase.
A senhorita que chamara sua atenção estava ali, observando um quadro. Kane pensou que um artista deveria retratá-la. A luz vinda de fora a deixava perfeita naquele vestido azul. Ele não resistiu a se aproximar.
― Gosta do que vê? ― perguntou, chamado a atenção dela, que parecia ter voltado de algum devaneio na paisagem do quadro. ― Porque a vista daqui me agrada muito.
― É um belo quadro ― respondeu ela, ignorando a maneira ligeiramente sedutora que ele a olhava.
― Ainda não fomos apresentados. ― Ele estendeu a mão e tomou a dela. ― Kane Carter. É um prazer conhecê-la, senhorita...
― Lyra St. James ― respondeu, sentindo o rosto corar pela proximidade.
Kane se curvou e depositou um beijo sobra mão de Lyra, sentindo o perfume suave que ela exalava. O rosado em seu rosto aumentou ao sentir o calor da mão dele na sua. Lyra recuou, evitando os olhos azuis que a encaravam com uma intensidade quase obscena.
― Deixaram a senhorita sozinha?
Lyra tinha que deixar de ser curiosa. Se não fosse por isso, estaria com as outras no jardim, não ali, sozinha, com o filho da anfitriã.
― Não ― apressou-se em dizer. ― Eu deveria estar com as outras, então, se puder me dar licença, Sr. Carter.
Ele deixou que ela passasse, notando seu passo apressado, como se estivesse fugindo dele.
Kane se deixou sorrir. Sabia quem ela era, não obstante não perderia a oportunidade de usar seu charme, apesar de ela obviamente ser uma donzela como as demais, ainda que se sobressaísse pela beleza e modos.
A linda Srta. St. James felizmente não causava a impressão de estar em busca de algum pretendente. Perguntou-se o motivo para ela estar entre as Rosas, e logo percebeu que aquilo não lhe dizia respeito.
Olhou no relógio e percebeu que já havia perdido muito do seu tempo naquela brincadeira. Seguiu seu caminho, mas não sem antes dar uma olhada para o jardim, de onde provinha o riso das Rosas.
Sorrindo, ele se dirigiu à saída da propriedade pensando que os minutos de atraso valeram a pena.
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