QUARTA HISTÓRIA
Destino
Osvaldo, sentado no banco da praça, olhava os ciclistas passarem com seus fones, alheios ao que acontecia ao redor. Observava os pardais lutarem pelas migalhas contra as pombinhas rolas, perdendo em tamanho, porém a persistência era admirável.
O homem, de cabelos grisalhos, beliscava uma rapadura entre os dedos e jogava pacientemente para os pássaros. Suas mãos já não eram tão firmes e as marcas infames do tempo se pronunciavam. Mesmo assim, ele não quebrava sua rotina diária e sagrada de sentar no mesmo banco, alimentar os pássaros, olhar a algazarra da juventude e ler um capítulo do seu velho livro, já tão desbotado quanto seus sapatos.
Olhou o céu com dificuldade e sorriu ao ver as nuvens brancas e fofas.
"Que bom! Não vai chover hoje! Minha doce Lenora ficará contente!" ― Pensou.
Enfiou a mão trêmula no bolso, na esperança de encontrar mais alguma rapadura, mas percebeu que já havia oferecido todas. Resmungou algo, erguendo-se do banco e limpou os farelos de amendoim e açúcar das calças, empertigou-se todo e seguiu com passos lentos em direção ao chafariz azul, no centro da praça. Lá, encontrou um velho amigo violinista e o cumprimentou, deixando umas moedas na latinha decorada
Como sempre fazia, já há dez anos...
Chegou em casa e foi direto para o banheiro lavar as mãos, enquanto chamava pela esposa, contando as novidades do dia.
― Lenora, minha querida? Cheguei! Adivinha só! O filho do nosso vizinho, o pequeno Luizinho, lembra? Então, minha querida! Está pedalando sozinho, já! Acredita? Está enorme! ― Riu, contente com a novidade. Sabia que ela iria ficar contente em saber.
Foi até a sala, encontrando sua esposa sentada na cadeira de balanço, virada para a grande janela, admirando o movimento da rua. Via seu cabelo platinado, que outrora era de um loiro brilhante e sedoso. Aproximou-se e depositou um beijo demorado em seus cabelos.
― Vou preparar nosso jantar, minha querida. Pode ficar descansando em sua cadeira predileta!
Tirou seu paletó, colocando-o em uma das cadeiras, indo em direção à cozinha. Falou no dia lindo, na bela canção que o violinista havia tocado, na nova loja de brinquedos que abriu bem no centro da cidade.
Enquanto falava, ia preparando o jantar para eles dois, e em meia hora, já estava tudo pronto. Arrumou uma bandeja com esmero, levando até sua esposa.
― Olha, querida. Fiz aquela sopa refrescante que leva hortelã, que você tanto ama!
Osvaldo olhava para a esposa com os olhos cheios de amor. Mas ela já não correspondia. Olhava para o vazio infinito.
Lenora não podia mais respondê-lo. Seu estado catatônico, mantido por aparelhos, apenas prendia o corpo dela, mas seus olhos há muito já não tinham alma.
Osvaldo alisava o rosto enrugado, de feições delicadas da esposa. Ajeitava as tranças em seus ombros pequenos, pousando as mãos dela no colo. Vestida com um vestido rosa impecavelmente limpo e engomado. Usava brincos de pérolas, combinando com o colar de duas voltas. Ela estava arrumada, como se fosse sair a qualquer instante, para um chá com as amigas ou à missa dominical.
― Você está radiante como uma manhã de verão, querida. ― Sussurrou, enquanto colocava uma colher de sopa em sua boca, mesmo que o caldo escorresse pelos lábios, ele continuava, lentamente.
Lábios mudos de batom rosa carmim... na sopa verde de hortelã.
Osvaldo limpava com cuidado e dedicava-se a zelar por ela, como se sua vida dependesse disso. Ele sabia que tinha uma parcela de culpa por estar assim. Se sentia responsável e via a situação toda como uma penitência.
Desde aquele dia que chegou em casa bêbado e discutiu com sua esposa, sua vida se estilhaçou em micro pedaços, como um copo jogado contra a parede. Tudo que era harmonia e amor, se desfez em apenas uma noite. Ela fez as malas, dizendo que iria embora para sempre, e, de repente, um pavor de perdê-la, o consumiu por dentro. Algo o dominou e a segurou pelos ombros, sacudindo-os com violência.
"Não, Lenora! Você é minha! Não vou permitir que vá embora! Você é só minha!"
Sem perceber, encurralou sua esposa contra os degraus da escada. Ela perdeu o equilíbrio e rolou pelos degraus.
Ela rolou, rolou e... ficou imóvel. Uma alma viva, presa num corpo morto.
Osvaldo despertou de seus devaneios, onde a culpa vinha sempre e o esfaqueava lentamente.
― Vamos repousar, minha querida?
Limpou os lábios dela, retirou o guardanapo do colo, retocou o batom. Pegou sua esposa moribunda no colo, levando-a até a cama, religando os aparelhos. Ele só desligava o tempo suficiente para alimentá-la, lavar e arrumá-la.
Todos os dias, durante estes anos.
Ficou olhando para a esposa longamente. Sonhava com a possibilidade de ela despertar e responder, de cantarolar pela casa, enquanto fazia biscoitos de caramelo. Acariciava sua mão, sussurrando elogios. O som da campainha da porta quebrou este ritual diário, fazendo-o resmungar. Odiava ser contrariado, principalmente nestes momentos.
Abriu a porta, pronto para xingar quem quer que fosse.
― O que é?
Um homem alto, de meia-idade e grandes olhos azuis, sorria. Sua postura mostrava que fora um jovem atleta.
― Boa noite. Perdão surgir a esta hora tão inconveniente! É aqui que mora a senhora Tesman?
Osvaldo desceu os olhos até os pés do estranho à sua frente.
"Sapatos lustrosos e de qualidade..." ― Pensou.
― Sim. Sou o marido dela. E você?
― Ah, claro! Osvaldo, certo? Sou Eduardo. Eduardo Mascarenhas, advogado. ― Estendeu a mão na direção dele, para cumprimentá-lo.
Osvaldo olhou para a mão do homem, curioso. O que um advogado iria querer com a esposa catatônica numa hora daquelas?
Cumprimentaram-se.
― Por gentileza, entre. Não podemos conversar na porta, não é mesmo?
Em alguns minutos, estavam sentados na sala. Osvaldo, não sabia bem como iniciar a conversa ou o porquê exatamente um advogado elegante estava sentado em seu sofá florido barato.
― Então?...
― Senhor Osvaldo, represento a família de sua esposa. Uma tia, que faleceu há alguns dias, não tinha nenhum herdeiro vivo. Portanto, ficou tudo para Dona Lenora.
― Vejam só! Que maravilha! Ela ficará extremamente feliz! O que devemos fazer?
― O que sua esposa deve fazer, senhor. ― Corrigiu-o.
Osvaldo pigarreou, constrangido.
― Sim, claro! Mas ela sendo minha esposa...
― E, por falar nela, onde ela se encontra?
― Ela está adormecida, no momento. O senhor compreende, não? Ela sofreu um pequeno acidente e se encontra impossibilitada.
― Acidente? Ela está bem?
― Dentro do possível, sim. ― Osvaldo omitiu a situação atual da esposa, pois temia perder a herança da tia dela. Precisavam do dinheiro, principalmente para Lenora voltar a viver.
Ficaram se olhando em silêncio, um estudando o outro.
― Acho que seria melhor o senhor vir amanhã, num horário mais apropriado. Que tal?
― Compreendo. Eu cheguei hoje e resolvi vir direto aqui, para dar a notícia. Podemos marcar uma nova visita? Que tal segunda-feira, às 8 horas?
― Perfeito! ― Levantou-se, num gesto convidativo para uma despedida.
Uma hora depois, Osvaldo pensou em todas as possibilidades que aquele dinheiro iria oferecer. Principalmente um tratamento apropriado para Lenora. Deitado, olhando o teto, deixava que a imaginação voasse livre.
"Uma casa ampla na praia, uma equipe médica para ela, um barco..." ― Pensando assim, adormeceu, sem perceber. Sonhou que vivia como um rei.
No dia seguinte, pela primeira vez em toda sua vida rotineira, Osvaldo quebrou o hábito de passear, de fazer compras e ler seu livro. Estava agitado com a visita do advogado na noite anterior, e precisava contar tudo para sua esposa. Acordou bem antes do habitual e foi até o quarto onde ela ficava. Cantarolava, feliz com a ideia de receber a herança. Sentou na cadeira próximo à esposa, segurando sua mão, com delicadeza.
― Meu amor! Você recebeu uma herança de uma tia! Irá ter todo o tratamento que merece, e eu, a chance de me redimir!!
Alguns anos depois, Lenora já estava bem melhor. Porém, ainda não se comunicava. Osvaldo já há muito perdeu as esperanças e não tinha mais o viço do amor por ela, pois se sentia cansado e a culpa tornou-o um homem neurótico e desconfiado.
Certa noite, sentiu o impulso de ir para o jardim, no andar de baixo. De repente, quando estava para descer a escada, sentiu uma presença atrás dele e se virou assustado. Lá estava ela, olhando bem nos olhos dele.
O mesmo olhar sem vida.
A mesma feição da morte.
Ele arregalou os olhos, sentindo uma dor imensa no peito, levou as mãos até o coração, apertando o roupão de seda importada.
Na garganta, a voz saiu estilhaçada, antes de cair escada abaixo, quebrando o pescoço.
No alto da escada, não havia ninguém.
Lenora, deitada em sua cama de dossel e de lençóis macios, dormia profundamente. As cortinas balançavam suavemente, como se sussurrassem palavras indecifráveis.
O sorriso grotesco em seus lábios era a guarda silenciosa desse juramento estilhaçado, feito nas tomadas de sua alma.
FIM
(1554 palavras)
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top