Quinze minutos depois

Quinze minutos depois

Eu mal abri a porta e já ouvi o velho senhor Gutcher resmungando algo para um de seus clientes até o momento em que seus olhos pousaram em meu rosto.

Até que ele me reconheceu.

Demorou alguns segundos, nada mais e nada menos, para que um sorriso brincalhão e provocador enrugasse ainda mais o seu rosto, ressaltando suas pintas e tentando esconder a falha em seu bigode bicolor.

Ele já deveria estar aposentado, porém todos sabiam que ele trabalhava por amor e não pelo dinheiro, assim como meu pai, por isso mesmo os dois não se davam bem.

— Elisabeth, o que posso fazer por você em pleno horário letivo? — ele começou falando antes mesmo que eu conseguisse fechar a porta.

Respirei fundo e ergui minha cabeça; era quase um suicídio entrar na loja de Gutcher esperando que ele fosse uma pessoa simpática e prestativa comigo, afinal eu era filha do seu arquirrival.

Se ele já estava pronto para expelir veneno contra mim, seria falta de respeito revidar com algo além de veneno, não é?

Não! Aí mora o perigo, um senhor que tem rancor do seu pai pode ser um inimigo tão perigoso quanto uma amiga invejosa.

— Bom dia Gutcher, como vai a sua manhã? — lancei um dos meus melhores sorrisos e debrucei-me contra o vidro do balcão, olhando para ele enquanto tentava não mostrar minhas segundas intenções.

— Muito boa, muitos clientes, o seu pai deve saber... ou não — ele me olhou em expectativa, queria ver minha reação.

— Eu gostaria de pedir um favor — inclinei o meu rosto e o apoiei em minha mão ainda sorrindo de maneira empática.

Antes de me responder ele bateu sua mão em meus braços sinalizando que eu não deveria apoiá-lo em seu balcão enquanto limpava a garganta e se direcionava para o caixa.

— Um favor? O velho e quase aposentado Andrew não poderia fazê-lo pela própria filha? — a satisfação em sua voz era audível, assim como a ironia de suas palavras.

Ambos tinham quase a mesma idade, porém meu pai não aparentava e o senhor Gutcher, sim.

— Na verdade é algo simples, eu estava andando na rua e me deparei com esta indagação, fiquei com preguiça de voltar até minha casa para perguntar a ele, então parei aqui para fazer uma visitinha.

— Chega de enrolação Elisabeth, vamos direto ao ponto. Seu pai pode saber sobre isso ou não? — ele me olhou depois de retirar os óculos de seu nariz e coçou a cabeça.

Não hesitei muito em responder, algo que eu sabia era que existiam aquelas pessoas que não se deveria confiar e aquelas que você poderia.

Era fato e todos sabiam que não existia boca mais ácida e ouvidos mais santos do que os de Gutcher, e eu sabia que mesmo com a sua briga com meu pai, ele não iria virar as costas para mim, pois se fosse fazê-lo, já o teria feito.

— Não, preferencialmente não.

Houve uma pausa, como se ele estivesse mastigando as palavras que eu havia entregado a ele com o deleite de poder fazer algo que o seu antigo aprendiz não poderia e que a própria filha do aprendiz estava pedindo este favor.

— Vamos conversar em minha oficina — ele apontou para a porta em suas costas no mesmo minuto que algo explodiu e a fumaça começou a sair pela fresta da porta.

Eu conhecia o som e conhecia a densa fumaça, alguma dosagem de material químico inflamável havia sido mal calculada.

Entramos as pressas na oficina; havia um extintor de incêndio a minha direita.

Não pensei muito. Agi. Peguei-o e mirei no canto em que vinha aquela fumaça.

Eu não sabia se era tóxico ou não, e não estava exatamente contente por me arriscar por nada.

O material branco foi ejetado em forma de espuma, acalmando a fuligem e a fumaça assim como moldou um corpo que estava de costas para nós. Ou era isso o que eu pensava até ver seus braços limpando o material branco do seu rosto.

— Perdão! — pedi ao colocar o extintor no chão sem saber o que fazer com o rubor em minhas bochechas.

— Vá para o chuveiro e tenha certeza que retirou tudo isso do seu corpo — Gutcher ordenou a pessoa que saiu apressada — bom trabalho.

Sorri ainda constrangida e andei pela oficina vendo a branca iluminação refletida em todos os metais polidos e rótulos parecidos com as encomendas que chegavam em minha casa.

Olhei para a bancada; havia um béquer com bolhas explodindo ao seu redor, efervescentes e quentes. Ao seu lado havia um uma chama contida com um medidor e três frascos. Um deles era um ácido, outro era um metal e o terceiro era um ácido ainda mais forte. Eu sabia daquilo pelas aulas de química, mas isso não significava que eu achava interessante.

— Ele tem que aprender que não é um alquimista e nunca vai transformar ferro em ouro. Eu ficaria mais tranquilo se ele não gostasse tanto de construir e destruir quanto eu – ele balançou sua cabeça e coçou o coro cabeludo sem saber o que fazer — vamos nos sentar.

Acompanhei-o até a mesa, escolhi a cadeira com estofamento furado e encosto quebrado, provavelmente a sua perna estava soldada, então tentei manter meu peso contra as pernas e não contra o assento.

Se aquilo não fosse uma oferta de paz, eu não sabia o que seria.

— Diga o que eu posso fazer por você — ele tinha aquele olhar determinado de um jogador de poker que poderia ou não estar blefando, porém sabia que ganharia o jogo.

Eu não tinha como esconder as minhas cartas por muito tempo, então resolvi ser direta.

— Um datilógrafo ou um fax possuem memória daquilo que enviaram ou receberam? — senti-me burra ao fazer aquela pergunta.

Senti-me estúpida quando ele começou a rir, mas tentei não aparentar estar ofendida.

— O seu pai não lhe ensinou nada sobre a sua profissão? — ele perguntou quando recuperou o seu fôlego.

— Eu não me interesso por isso, só estava... curiosa — medi minhas palavras, Gutcher poderia ser confiável, mas nada me provava que a sua lealdade estava comigo e não com outra pessoa, como o misterioso homem que mandava cartas ao meu irmão.

— Curiosa? Minha menina, com tanta tecnologia no mundo, por que se interessar por estas velharias? — ele levantou uma sobrancelha – não estaria interessada a vendê-las, estaria?

— Eu não disse que possuía alguma destas máquinas — relembrei-o tentando não mentir, pois eu sabia que se eu o fizesse, começaria a rir ou a sorrir.

— Certo, certo, muito bem — ele entrelaçou seus dedos — dependendo da idade do fax, ele poderia ter uma memória. Acho difícil, se eu pudesse olhar o objeto em questão, poderia dar uma resposta mais precisa — ele estava brincando comigo, me provocando.

Aguente firme Elisabeth.

Faça isso pelo Will. Pela honra de sua morte, afinal se eu encontrasse algo que pudesse provar ao mundo que ele não havia se matado, o padre não poderia se negar a uma missa.

— Supondo que eu tivesse uma destas máquinas em questão, onde estaria a sua memória? — o melhor jeito de não mentir, era dizer a verdade com algumas omissões, isso eu sabia fazer.

— Pode tanto estar gravado no receptor do fax como a última mensagem ainda pode estar guardada, mas essa última opção é um palpite de sorte. Já o datilógrafo, supondo que seja apenas uma relíquia, não há memória.

E agora o que eu poderia fazer?

Não queria que Gutcher soubesse da carta misteriosa para Will ou de qualquer segredo que ele pudesse ocultar de mim por minha ignorância no assunto.

Eu deveria ter prestado mais atenção quando meu pai falou sobre isso comigo.

A porta do banheiro se abriu e uma versão mais nova de Gutcher saiu com os cabelos molhados.

Eu sabia que ele era o seu filho, sabia que ele estudava no mesmo lugar que eu, porém nunca conversei muito com ele ao longo dos anos, principalmente no ano anterior.

Eu estive ocupada com o pré e pós Will.

Eu sabia que o nome daquele garoto era Jason Wright.

— Filho, olha quem veio nos fazer uma brilhante visita neste dia radiante de segunda-feira.

Se eu não estava na sala de aula, certamente o seu filho também não, então eu não via como ele pretendia me passar um sermão sobre o assunto.

Velhinho insuportável!

— Acho que ela já marcou a sua presença — ele riu passando pela porta depois de acenar a cabeça em minha direção.

— Gosto de entradas... surpreendentes — a maneira como terminei a minha frase deixou um pouco a desejar pelo meu tom que quase saiu como uma pergunta.

— Querida — Gutcher voltou sua atenção inteiramente para mim segurando o meu olhar — o que você está planejando?

— Na-nada — gaguejei.

Ele percebeu, tentei aparentar normalidade, entretanto minha perna começou a ficar inquieta e eu estava sorrindo.

Maldito sorriso!

— Eu só estava curiosa, sabe como é, acabei ficando interessada pelo serviço do meu pai — levantei-me, agarrando a alça da minha bolsa como se fosse parte de minha vida.

Ele esperou um pouco, deixou que eu me afastasse sorrateiramente ainda seguindo meus passos com o olhar.

— Meu filho está fazendo alguns cursos à distância de mecatrônica, aulas do continente — havia admiração em sua voz, isso não me era estranho, qualquer um que conseguisse sobreviver ao intenso colegial de nossa escola e ainda tivesse tempo para um curso extra era mítico — se quiser ele pode ajudá-la em seu não problema com o fax.

Fechei os olhos e meneei minha cabeça pronta para negar, mas eu sabia que não faria aquilo sozinha e não pediria por meu pai.

Por algum motivo, a ideia de Jason mexendo nas mensagens de meu irmão me incomodava menos do que Gutcher, acho que era o meu instinto superprotetor de irmã que nunca vai desaparecer por completo.

E isso me deixou nervosa.

O que mais Will poderia ter a esconder para que eu sentisse isso?

Esse garoto só me dava trabalho!

— E Elisabeth! — Gutcher me chamou quando eu estava prestes a sair, virei meu pescoço sem retirar a mão da maçaneta — Não faça nenhuma besteira!

Sorri para ele e assenti com a cabeça, saindo da oficina.

Deparei-me com Jason atrás do balcão vidro e me apoiei no mesmo.

— Posso pedir um favor?

Ele bateu em meus braços para que eu retirasse os cotovelos do vidro e depois sorriu:

— Em que posso ajudar?

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