Oito meses antes

Oito meses antes


Ele já estava estranho várias semanas antes de sua morte, andava agitado, seus reflexos estavam lentos, olhava para os lados como se tivesse medo que alguém o estivesse espiando, paranoico.

Ninguém percebeu isso, não prestaram atenção, mas eu prestei; sempre prestei.

Tentei por várias vezes exigir dele a verdade, o que o estava incomodando. Cada vez ele reagia pior do que a anterior, dizia que estava bem eu não acreditava.

Descobri, depois, que ele não estava mais comendo bem, e quando comia, regurgitava.

Eu estava farta da sua falta de amor pela vida e se fosse necessário, eu estava pronta para começar a pior discussão que já tivemos em todos os nossos anos de amor e ódio. Tudo pelo bem dele.

Aquele ano, aquele dia, aquela discussão, foi traumático.

Um de nossos lugares preferidos, se não fosse o preferido, era o mirante e a sua vista infinita para o oceano que se quebrava em ondas contra as rochas desgastadas.

Gostávamos de admirar aquela paisagem do penhasco; não tinha muita gente e os pássaros nos deixavam a sós com nossos pensamentos.

Eu nunca havia ido aquele lugar sem ele, nem ele sem mim. Era o nosso lugar especial, apenas nosso, meu e dele. Sabíamos que outras pessoas poderiam passear ali também, mas entre nós dois, aquilo era mais do que sagrado.

No dia em que brigamos, ele havia levado a sua namorada até o penhasco e terminado com ela.

Melody saiu correndo daquele lugar, escorregando no chão e quase cortando a sua mão, porém não parou quando ele tentou ajudá-la, apenas deu um tapa em seu rosto e continuou correndo, ainda mais apressada, mancando, com metade de suas roupas limpas.

Eu não poderia acreditar naquilo.

Ele fez tudo o que não deveria. Estava tremendo, convulsionando, seus olhos estavam vermelhos, seu nariz escorria e ele suava, fervia em febre.

Quando eu me aproximei, vi que ele pegou um comprimido de seu bolso e o engoliu a seco como se fosse um remédio, contudo eu já não acreditava mais em suas desculpas médicas.

Eu não era tão burra quanto ele deveria achar.

Já havia desmascarado naquela tarde o seu estoque de comprimidos, uma sacola atrás dos meus produtos de beleza, dentro do armário do banheiro, então eu soube que ele havia sucumbido as drogas.

Estourei de raiva, pois era exatamente isso o que ele fazia quando estava estressado; jogava todos os seus problemas nas minhas costas esperando que eu os suportasse junto com os meus e encontrasse uma solução para tudo.

Oi, Ellie ele disse tentando sorrir, porém seus dentes o traíram quando começaram a tremer, como se ele estivesse com frio.

No entanto ele suava como se aquele fosse o dia mais quente do ano.

No entanto sua ele estava tão fria quanto uma parede exposta ao inverno rigoroso.

No entanto sua pele estava vermelha como se ele tivesse dado uma volta ao redor da ilha inteira.

O que é isso? tentei pegar o pacote de sua mão e ele se esquivou, jogou a embalagem pelo penhasco me olhando desafiadoramente.

Meus olhos se esbugalharam e ele sorriu.

O que você pensa que está fazendo William? Qual o seu problema? Não vê que você está fora de si? segurei-o pelos ombros e o balancei, tomando cuidado para que não perdêssemos o equilíbrio isso não vai ajudarem nada. Por que você está fazendo isso? fiz minha voz ficar mais suave, uma abordagem muito bruta com ele sempre o fazia ficar ainda mais valente.

Algo em seu olhar brilhou, um brilho macabro e sinistro. Eu não sabia de onde ele havia aparecido, porém algo me dizia que a pessoa que estava a minha frente não era meu irmão. Não completamente.

Pelo céu! Deixe-me em paz, tudo bem? Cuida da sua vida! Se ela for entediante demais, crie uma nova para Bliss! Tente parar de mandar em minha vida como a irmã mais velha insuportável que você é por um minuto ele soltou-se do meu aperto e pareceu ainda mais perturbado do que antes.

Eu me preocupo com você! Como você pode me pedir para ignorar que você precisa de ajuda? deixei que a minha voz fosse levada pelos sentimentos, deixei que minha indignação estivesse à flor da pele para que ele entendesse o que eu queria dizer, mas ele interpretou tudo errado.

É por causa da Melody? Fique tranquila, eu terminei com ela em grande estiloele abriu seus braços simbolizando que estava livre.

Esse não era o meu irmão!

O irmão que eu conhecia era louco por esta garota desde que eles se conheceram e nada o fazia mais feliz do que estar com ela. Ele jamais diria que acabou com ela em grande estilo.

Você contou para todo mundo que vocês fizeram sexo, como se não bastasse, disse que ela estava grávida. E agora você terminou com ela? era uma pergunta retórica, em seu olhar, a resposta já estava explícita você não presta!

Novidade para você ele fingiu que estava zombando de mim e gargalhou de sua piada até começar a chorar Inferno! O que mais eu fiz de errado? Eu trouxe Melody para cá e terminei com ela, qual o problema? Não era amor, nunca é amor. Amar é a desculpa dos tolos para o que fazem. É a ilusão dos desesperançosos e abandonados.

Não é verdade e você sabe disso, o problema é que você está agindo como um babaca e ninguém quis te falar até agora por que pensaram que você iria voltar ao normal! segurei o rosto dele e fiquei olhando seus olhos vermelhos, seus lábios trêmulos que o faziam gaguejar e engasgar com a própria saliva você está usando drogas!

Eu já sabia daquilo há um tempo, mas dizê-lo em voz alta dava outro efeito.

Para trás! ele me empurrou com força quase me lançando no chão, porém eu consegui deslizar e recobrar meu equilíbrio você não é minha mãe! Você não é nada. Você nasceu antes, e daí? Eu sou o preferido, o protegido, o mimado, eu tenho os privilégios. Você sempre estará em segundo lugar!

E o que você é? Você não tem personalidade, vive para agradar os outros, finge que gosta das pessoas mesmo sem gostar. Você nasceu para ser um mentiroso mau-caráter e eu agradeço por não sermos iguais, senão eu iria me matar!

As palavras escaparam de meus lábios antes que eu me impedisse; ao final, mordi minha língua como um aviso para não dizer mais nada que eu não devia.

Senti gosto de sangue.

Vi que minhas palavras o metralharam.

Não podia ter falado tudo aquilo, mesmo que fosse verdade, para alguém no estado que ele estava. Aquilo era o mesmo que chutar alguém que já estava caído, era covarde.

Eu não era covarde.

Vamos para casa eu disse passando a mão em minha boca e percebendo que além da minha língua eu também havia mordido meus lábios e eles estavam sangrando.

E por que eu deveria? Para ficar aprisionado naquela casa com aquele biruta, aquela zumbi, aquele pedaço de ferro velho e você? ele fechou sua mão em punho contra o moletom verde que eu havia dado a ele em nosso aniversário, já que fazíamos no mesmo dia.

As gracinhas do destino.

Não fale assim deles! eu apontei o dedo para o rosto dele você não tem esse direito!

Não é como se eu devesse algo a eles. Eu não devo nada a ninguém! Este é um mundo livre, eu posso falar o que eu quiser! ele começou a andar para fora do penhasco.

Meu coração relaxou um pouco, ele não pularia, mas não relaxou o suficiente para que as palavras dele parassem de reverberar em minha mente.

Eles te amam William! Eu te amo! berrei para ele sentindo que minha garganta estava ficando inchada O que fizeram com você? tentei tocar o seu rosto.

Ninguém fez nada comigo, será que você não entende? Eu faço o que eu quero! ele começou a gargalhar histericamente e eu senti que começaria a chorar você diz que me ama e não confia em mim. Diz que estamos juntos para tudo quando o seu tudo começa e acaba em um ponto fixo. Amor. O que acontece quando o amor não é recíproco?

Do que você está falando? balancei minha cabeça sentindo o vento bagunçar meus cabelos trazendo a brisa do mar em minha direção.

Eu o amava e odiava.

Ele era o meu melhor e o meu pior.

E se eu não te amar de volta? ele sorriu, parecia um animal peçonhento com os dentes para fora pronto para abocanhar a sua indefesa presa, eu surpresa? Eu não acredito no amor. Ele não faz bem as pessoas, ele atrapalha o pensamento, tira você da realidade, ele dói, machuca e você ainda quer mais. Você morre por amor e mata pelo mesmo. Como você pode querer algo assim dentro do seu coração?

Fiquei sem palavras.

Eu sabia no que acreditava, mas não sabia como explicar. Como convencê-lo que amar valia o risco, valia a pena?

Você não está fazendo sentido voltei a murmurar, dando um passo para trás não reconhecendo a pessoa a minha frente.

Senti que eu fui apunhalada pelas costas por alguém do meu próprio sangue.

Eu estou plenamente lúcido abriu seus braços como se ele fosse dono do ar, da ilha, do mar, e mais uma vez eu queria derrubá-lo Ninguém precisa do amor.

Senti meu coração afundando dentro do meu peito, preso com amarras por causa das suas palavras.

Eu precisava do seu amor!

Eu precisava dele!

Eu o amava!

Senti que estava sufocando sem ar e tentei ir embora, mas meus pés não queriam se mover. Por mais que eu sempre consertasse os seus problemas ou assumisse a culpa deles, ele também estivera lá por mim. Ele me salvou quando eu quase morri.

Se isso não é amor, o que é então?

Você ainda vai perceber que concorda comigo, que não vale a pena o sofrimento de amar ele apertou minha bochecha sem que eu percebesse a sua aproximação somos mais parecidos do que pensa.

Eu não tenho nada haver com você cuspi as palavras no chão, bati minha mão contra a sua o afastando.

Arranquei o colar que ele havia me dado.

Eu sabia que era uma bijuteria barata e que não havia custado nada, porém havia um valor sentimental. Era uma flor com cinco pétalas, uma para cada membro da nossa família — eu, ele, mamãe, papai e Bliss.

Eu não sentia mais necessidade de usá-lo.

Arremessei-o contra o mar e olhei para William. Ele estava sorrindo desgostoso e seus olhos estavam brilhantes, porém não era de felicidade, ele estava prestes a chorar.

Marchei até minha bicicleta para voltar para casa antes que eu sentisse pena dele.

Eu só queria que ele estivesse realmente drogado naquele momento, pois, pelo menos, eu saberia que as palavras ditas não eram conscientes, que ele jamais as teria falado para me magoar.

Aquilo não era o meu irmão!

Eu só queria que aquele dia acabasse e eu não tivesse mais que olhar para o rosto dele.

Desejo realizado.

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