Dezessete anos

Dezessete anos

O mar embaixo de mim, quebrando nas pedras, desgastando os corais, era algo que eu costumava gostar e pensar ser uma criação divina.

Agora eu tenho medo dele. Medo do monstro que ele se torna quando está revolto.

“Meu irmão me ama.”

Eu não tinha certeza o que pretendia sentir prestes a pular de um penhasco.

Quero dizer, eu sabia o que acontecia depois.

Adrenalina.

Descarga.

Morte.

Vazio.

Esquecimento.

Disso eu já sabia, eu só não tinha certeza o que sentiria antes disso.

Olhei para baixo mais uma vez. A água me chamava, o barulho das ondas contra as pedras me atraía querendo me levar com ela para as profundezas.

Eu queria ir, mas, ao mesmo tempo, conseguia resistir a tentação.

Eu via o seu fundo, peixes, algas e pedras, todos eles clamavam para que eu me juntasse a eles.”

Meu estômago revolvia-se como um barco em uma tempestade, minha mente perdia o foco, não conseguia pensar no iminente futuro que eu estava reservando para mim mesma.

Respirei fundo e o frescor do oceano invadiu minhas vias respiratórias. Era salubre e pedia por mais do que eu poderia entregar, pedia pelo meu corpo, pela minha alma.

O oceano queria terminar aquilo que um dia começou.

Continuei olhando para baixo, para as rochas que causavam arrepios em minha coluna. Imóveis, resistentes e ásperas. Colidir contra elas não era algo que eu iria querer.

Quando eu pulasse teria que tomar muito impulso, e mesmo assim saber que poderia não escapar delas.

Um temporal estava a caminho. Perfeito. Assim quando a chuva viesse eu poderia mentir e dizer que estava chorando.

As gotas me molhariam antes do que as pessoas que estavam na praia.

A ilha era pequena, porém a altitude em relação ao oceano variava de uma ponta para a outra, desde a praia até o penhasco.

Eu estava no penhasco.

Meus sapatos de salto estavam me matando, precisei retirá-los.

As rochas sobre meus pés eram cinza de várias tonalidades; elas poderiam cortar a minha pele sem pensar duas vezes, poderiam arrancar o meu sangue quando quisessem.

Havia um aglomerado de pessoas atrás de mim, todos reunidos em sua grande encenação, porém eu não queria me misturar a eles e muito menos compartilhar dos seus supérfluos sentimentos.

Eu já tinha os meus para perder tempo e tentar entender.

Por que eu iria me jogar do penhasco sabendo que iria morrer?

Se eu tivesse uma casa, comida e a minha família, por que eu iria cometer suicídio para depois ter a minha entrada no céu renegada?

Esfreguei meus olhos. Os ventos marítimos estavam incomodando-os por serem muito salgados a ponto da minha pele já estar grudenta.

Senti meu vestido ser conduzido pela brisa para trás e para frente, assim como os meus cabelos que haviam se desprendido de sua trança impecável há algum tempo.

Se eu pudesse usar branco, eu preferiria, seria melhor para mim, morrer usando branco me daria paz nos últimos momentos. Vestir branco neste momento poderia me salvar, redimir-me.

Por que alguém morreria usando vermelho? Vermelho e azul?

No entanto eu estava de preto. Todos estavam de preto em lúgubres lamentos sobre a alma perdida naquela semana.

Metade dessas pessoas o conhecia de vista, a outra metade conhecia seu interior, porém nenhum deles se perguntava o que eu estava pensando, portanto guardava minhas dúvidas para mim mesma e deixava que eles chorassem em paz.

Olhei para trás, para meus pais que também se debulhavam em lágrimas ao lado do caixão, e suspirei. Quase a ilha inteira estava ali, todos conheciam a todos, era difícil algo ocorrer e você ficar ali parado sem entender.

Fechei meus olhos tentando parar de encarar o oceano e me perguntar se aquela era a última vista que eu teria. Se o nascer do sol era mais bonito, se havia algo além daquela imensidão de azul que eu conseguiria enxergar caso pulasse.

Dei um passo a frente, a pedra que deveria estar ali vacilou e saiu rolando para baixo ao encontro das rochas e eu tentei manter o meu equilíbrio.

Estava prestes a dar o meu segundo passo quando senti algo envolvendo o meu pulso, forçando-me para trás, não precisava abrir meus olhos para reconhecer Bliss.

Ela não era algo que eu pudesse chamar de empregada, também não servia como irmã ou amiga, estava mais para uma criação familiar com extra para serviços.

Meu pai construía da sucata, ele era fascinado por metal, chamava-o de matéria prima da vida, dizia que tudo era feito dele, que nós deveríamos ser feito dele também. Era um velho quase louco e eu o amava.

Minha mãe vendia a maior parte das invenções de meu pai quando percebia que dentro de nossa casa ela não tinha muito mais utilidade do que um peso de papel. Ela era uma pessoa carismática e eu a amava.

Bliss foi construída quando eu era criança, era para ser um segurança, acabou ficando pequena demais e fina demais para intimidar alguém, então ela se tornou minha babá — nunca questionei como ela funcionava, afinal meu pai era o gênio da família.

Eu sabia o que deveria aparentar. Eu sabia que ela reportaria aquilo para os meus pais, se eles já não tivessem visto o meu quase pulo, mas eu ainda não conseguia entender, não queria escutar o que me diziam.

Não fazia sentido!

— Por que ele pulou Bliss? — perguntei olhando em seus olhos biônicos feitos de metal e vidro, não eram intimidadores, apenas não ofereciam conforto.

Era isso o que eu precisava.

Ela não respondeu e eu soube o que estava de errado, era a programação.

Ajoelhei ao seu lado e retirei de meu bolso o pen-drive que carregava com a memória de minhas conversas e de Bliss. Aquilo era um arquivo próprio que meu pai criou e eu programei para que eles não monitorassem até mesmo os meus momentos de desabafo com uma máquina.

Inseri o pen-drive no lugar que deveria estar o seu coração e vi a luz em sua lateral direita alterar a cor, a intensidade e a espessura das barras de controle, agora sim.

— Seus pais não vão gostar de você perto deste penhasco — a voz rachada com interferência era quase um alívio para meus ouvidos, quase glorioso de ser ouvido — volte comigo para o enterro.

— Não — voltei a ficar de pé, cruzei meus braços contra o peito.

Fiquei encarando o horizonte daquela tarde nublada esperando a chuva aparecer para a cerimônia acabar.

— Elisabeth Marshall, isso não é maneira de se comportar, ao menos, não hoje — as vezes, para uma máquina, Bliss sabia mais sobre os sentimentos humanos do que os próprios.

No entanto ela sempre seria uma máquina e isso jamais mudaria, então não tinha como ela entender o que se passava pela minha mente e o que eu estava sentindo.

— E como eu deveria me comportar? Eu deveria estar agarrada ao caixão dele berrando e chorando, chamando atenção, apenas para provar que eu me importo? — mesmo com a voz manhosa, eu não consegui fazer uma lágrima escorrer de meus olhos — eu não consigo chorar. Eu queria, queria que as pessoas vissem que eu me importo com ele, mas, ao mesmo tempo, não quero participar deste teatro.

Ao longe um raio passou pelo céu. Não estava próximo o suficiente para que eu pudesse ver seu formato fino e alongado, porém o clarão estava presente. O trovão veio logo em seguida, anunciando a chegada da chuva.

Sem pingos ainda.

Como eu desejo...

Não existe veracidade na teoria dos desejos.

Meu desejo não vai se realizar por mais que eu tente.

Nunca este meu desejo se realizará.

Você mentiu para mim.

— Você vai pular? — parecia um disco riscado, quebrado, colocado para funcionar mesmo que você soubesse que ele não estaria perfeito novamente.

Eu me sentia assim.

— Eu só queria entender. Por que ele pulou? Por que uma pessoa de dezesseis anos iria pular do penhasco? Ele não pode ter se matado! Não pode! — ouvi o desespero crescer em minha voz, então eu limpei minha garganta.

Se eu tivesse atendido a sua ligação tudo poderia ter sido diferente. Eu poderia tê-lo salvado, mas estávamos brigados, sendo assim eu o estava ignorando.

Esta foi a nossa pior briga e a única que eu me dei o direito de ficar irritada com ele.

Agora olhe o que eu fiz!

Cogitei em contar a Bliss sobre os meus temores e pensamentos, contudo ouvi a voz de meu pai ecoar mesmo sem ter um lugar para que o eco se propagasse — ele tinha essa maneira incisiva de falar.

Ele a estava chamando. A ela e não a mim.

Melhor, mais tempo.

Antes que ela saísse retirei meu pen-drive de seu peito e o coloquei no bolso de meu vestido ouvindo os pés pesados e lentos dela se movendo pelo chão de pedra, cautelosamente.

O musgo estava crescendo e a rocha havia sido trincada por causa da umidade. Aquele era o melhor lugar para acidentes ocorrerem.

A polícia disse que ele havia se jogado, simplesmente pulado da pedra e escapado das rochas, acertando o mar abaixo dele e morrendo pelo impacto antes mesmo de começar a se afogar.

Não era possível!

Ele não iria se matar daquela maneira.

Não iria!

Eu o conhecia muito bem, quase tão bem quanto eu me conhecia e eu sabia, do fundo do meu coração, que ele jamais iria tentar se matar — mesmo que ele acreditasse em mais de uma religião, que ele estivesse sempre aberto a novas tradições e crenças, ele não iria se matar.

Ele sabia o que acontecia quando a pessoa retirava a própria vida. Não arriscaria a sua eternidade por qualquer motivo. E ele não tinha motivos.

Tinha uma família que o amava e muito, apoiava e incentivava a perseguir os seus sonhos.

Tinha amigos que estavam sempre ao seu redor, roubando seu sorriso e alimentando-se do seu bom humor.

Tinha uma namorada que o amava incondicionalmente e que acreditava que eles iriam se casar algum dia.

Tinha um histórico escolar que lhe daria possibilidade de cursar uma faculdade no continente se preferisse, ou se não, poderia trabalhar onde bem quisesse dentro da ilha.

Ele tinha o mundo na palma de sua mão, trabalhou muito por isso, passou horas estudando e socializando-se, costurando a sua teia do sucesso, para, no final, pular de um penhasco.

Não! Ele não pode ter se matado!

Eu disse isso a polícia, porém eles disseram que o chão mostrava apenas os passos dele, de mais ninguém. A casa não foi arrombada, o carro não foi roubado. Nada foi danificado, somente a vida dele — e o celular que se espatifou na rocha quando ele se jogou.

Somente! Somente! Como se uma vida já não fosse o suficiente para causar estragos permanentes nas pessoas que o amavam!

Os pingos começaram a descer pelo meu rosto.

As pessoas estavam se afastando do caixão que estava ao ar livre, aberto.

Tentaram levá-lo para dentro, porém disseram que o melhor era deixá-lo ali aproveitando seu último contato com a sua assassina antes de ser enterrado.

Eu sabia que ele queria ser cremado, mas ninguém me escutou, disseram que pela religião era melhor que o seu corpo fosse enterrado.

Neste momento a religião os afetava, entretanto quando eu argumentava sobre a possibilidade de um assassinato ninguém se prestava a me ouvir.

Quando eu andasse pelas portas daquele pequeno paraíso mortal ninguém me chamaria de Ellie. Ninguém me abraçaria calorosamente. Ninguém escutaria minhas lamentações. Ninguém me faria sorrir com facilidade. Ninguém me lembraria de fazer a lição de casa. Ninguém me impediria de acordar atrasada. Ninguém me faria dormir cedo. Ninguém controlaria a quantidade que eu comia. Ninguém me mandaria mensagens secretas. Ninguém estaria ao meu lado.

Eu estaria com tantas pessoas e, mesmo assim, a única que eu amava não estaria ali.

Isso era tão injusto.

Lentamente caminhei até o caixão e olhei para a madeira que havia sido comprada as pressas para ser a morada dele pelo resto de sua existência.

Não havia um entalho ou moldura, era simples, não houve tempo para pensar nos detalhes.

Não suportei. Eu precisava ver o seu rosto agora, saber se ele continuava a ser quem era, ou se até mesmo sua face havia sido deformada pela queda.

Puxei a madeira para cima com força e a segurei em cima de minha cabeça com os braços tremendo, fazendo uma capa para impedir que ele se molhasse tanto quanto eu já estava.

Um pouco mais pálido do que o normal, seu rosto menos alegre, os braços estavam enrugados assim como o seus lábios estavam rachados.

Fora esses pequenos detalhes ele continuava a ser o mesmo garoto de antes.

Deixei a tampa de madeira escapar pelos meus dedos e trancá-lo para longe de mim pelo resto da eternidade com os metros de terra que nos separariam.

“E por que eu deveria? Para ficar aprisionado naquela casa com aquele biruta, aquela zumbi, aquele pedaço de ferro velho e você?”

Ajoelhei impotente ao lado do caixão e comecei a chorar sem testemunhas deste meu feito.

Eu sabia que diriam que eu tinha um coração gelado e que a minha frieza poderia ser contagiosa, porém eu não me importava mais.

Retiraram parte de mim e eu não sabia o motivo de um golpe tão certeiro e fatal.

— Por que você me abandonou Will? — minha voz saiu concomitantemente a soluços.

Eu estava fazendo o possível para não engolir a chuva enquanto as pronunciava as palavras, porém aquilo era muito difícil.

Meu choro era audível, mas as trovoadas que se tornavam ainda mais frequentes conseguiam mascará-lo com suas gotas que respingavam em todos os lugares.

Era um dia temático para um funeral.

Sem sol. Com chuva.

— Por quê? — berrei batendo minha mão em punho contra a madeira entendendo, naquele momento, o porquê das pessoas estarem debulhando-se em lágrimas, anteriormente.

Aquilo não fazia melhorar ou faria com que Will voltasse para mim, mas amenizava o aperto em meu peito. Fazia com que o que eu não sabia que estava me sufocando deixasse meu corpo em paz.

— Se você se matou, eu nunca vou te perdoar seu bastardo egoísta — murmurei tentando ficar de pé sem tropeçar em minhas bambas pernas e levar o caixão comigo — mas se alguém o fez... — não consegui terminar a minha frase.

Não era vingança que eu procurava. Não era sangue por sangue ou algo tão tenebroso quanto isso.

Eu não praticava a violência e preferia não fazê-lo.

Eu só queria, ao menos eu pensava que queria, saber quem matou William Marshall, meu irmão mais novo.

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