SEXTA HISTÓRIA

Durma Bem, Filho

          Gustavo era um adolescente totalmente sem freio. Achava que a vida era curtição, mulher e bebida. Tinha desistido de estudar e vivia vadiando pelos becos e ruelas do seu bairro.

Dona Aparecida, sua mãe, orava para que Deus o protegesse dos males do mundo, sem saber que ele era o seu próprio mal. No seu coração materno, ainda o enxergava como aquele mesmo menino franzino, que crescera sem um pai e sem perspectiva de um futuro melhor. Ela trabalhou como diarista quase toda a sua vida, para criar seu filho, e agora que se aposentou, tinha esperanças que, se ele estudasse, teria uma vida melhor do que aquela que ela oferecia. Mas ele não pensava assim e conforme crescia, virava um homem, se parecia cada vez mais com o pai. Truculento, violento e bêbado.

Ela já não sabia quantas vezes teve de ir ao juizado de menor para retirá-lo de lá por perturbação e vandalismo. Agora, ia buscá-lo na cadeia por pequenos roubos e uso de maconha.

― Meu fio, toma jeito na vida, fio! Assim, você num vai viver mais que sua véia mãe, viu?

― Velha ignorante! Fala direito, pelo amor! Que palhaçada é esta? Vai querer mandar na minha vida, agora? Se toca! Vê se me arranja uns trocados aí!

― Não tenho nada, Guto! Cê me tirou todo meu dinheirinho...

― Cala essa boca! Te vira! Pede emprestado!

Aparecida sabia que não adiantava continuar discutindo. Ele acabaria batendo nela, como seu pai fazia no passado. Deu um suspiro longo e se calou.

― Vai ficar de resmungo, agora? Tu sabe que tô precisando de trago, de uma curtição! Acabei de sair da cana, por#a!

― Eu vou ver se Dona Emília me empresta algum. Tenho de comprar pão, para você comer.

Andaram o resto do caminho em silêncio.

Ela rezando para ele mudar.

E ele também.

Para que ela morresse de uma vez...

Alguns dias haviam se passado e Gustavo havia desaparecido. Aparecida, andava nervosa, pensando que algum traficante ou até a polícia tinham tirado seu filho dela.

Não queria ter que ver seu filho estirado no asfalto duro ou no frio de uma mesa metálica do IML, mas era o destino que ele mesmo estava traçando e nada do que ela dissesse, mudaria isso.

"Já tá escrito por Deus, Nosso Senhô, a sua sina, meu fio amado." ― Pensava sempre, quando estava deitada no escuro, em sua cama humilde.

Enquanto suas lágrimas banhavam seu rosto cansado de tanto sofrer, recordava sua infância na roça, seus irmãos e seus pais. Tinha uma vida humilde, mas dentro do pouco que tinham, eram todos ricos de amor e movidos pela fé de que tudo iria melhorar. Cresceu analfabeta, pois tinha que ajudar a cuidar dos irmãos menores, enquanto os pais e irmãos mais velhos iam roçar a terra e, de lá, tirar um pouco do alimento.

Já adolescente, veio para a cidade grande trabalhar como empregada e babá, assim poderia mandar dinheiro aos pais. Mas, um dia, saindo do mercado, um jovem elegante e galanteador, surgiu em sua frente, estilhaçando todos os seus sonhos de moça romântica.

Agora, tinha um filho que herdara do pai todo o lado ruim e sabia que logo o perderia, assim como perdera seu marido. Ela só rezava para que ele não sofresse tanto, que fosse longe de seus olhos. Não suportaria vê-lo sofrer e sabia que não era certo pensar daquela forma.

Estava cansada de sofrer...

Certa noite, Gustavo voltava para casa, juntamente com um amigo. Chegaram totalmente bêbados e Aparecida se encolhia de medo deles, do que poderiam fazer com ela na calada da noite.

― E aí, mãe! Este aqui é meu brother! Meu maninho de guerra! O nome dele é Bolinha! Dá um oi pro cara, véia!

A risada dele era mais um arremedo de gargalhada. Enquanto falava, uma espuma de saliva ia se acumulando nos cantos da boca, denotando seu estado mental.

Aparecida deu um oi, tão baixo que mal se ouvia. Ela sentiu um aperto no peito, desacelerando seus batimentos. O pânico estava tomando conta dela. Foi para sua cama, no canto mais escuro do casebre, onde uma esfarrapada cortina o separava do resto. Mesmo com o calor, cobriu-se até a cabeça e virou-se de costas, encolhida.

O pavor tomou conta dela quando ouviu uma voz arrastada atrás de si:

― Mãezinha do Tavinho... sabia que ele te ofereceu pra mim, por uma pedra? E aí? Tá a fim de uma festinha?

A mulher, consumida pela angústia, soltou um grito que reverberou pelos corredores, alcançando os ouvidos atentos de vizinhos. Seu desespero parecia completar o ar, enquanto a devastação de sua vida se desenhava diante dela. Cada pedaço da sua existência estava despedaçado, como se o peso das circunstâncias tivesse reduzido a fragmentos irreconhecíveis.

E em meio a essa dolorosa realidade, a invasão de seu corpo, sendo violado com violência, a deixou marcada, não apenas fisicamente, mas também emocionalmente, como uma ferida profunda.

Estilhaçado na escuridão da noite...

Alguns meses se passaram e Aparecida já havia se recuperado da violência que sofrera. Esquecer? Jamais. Mas tinha que seguir vivendo e, com a ausência do seu filho, a sua vida tomou uma rotina menos angustiante.

Soube por um morador da vila, que seu filho estava preso na capital, por assalto. Ela nada falou e, também, nada sentiu. Uma letargia emocional havia dominado seus pensamentos e já não rezava mais.

Dois anos se passaram e Aparecida encontrou um motivo para retomar sua vida e ter esperança. Um trabalho comunitário, onde poderia bordar toalhas e vendê-las em lojinhas do próprio bairro.

Conseguiu arrumar sua casinha. Onde antes era um casebre sem água encanada e sem energia, hoje ela tinha um quarto limpo e arejado e até uma sala com televisão. Tudo muito simples, mas limpo e, principalmente, conquistado com seus dedos ágeis.

Ela estava começando a juntar seus pedacinhos de vida.

Tudo estava indo bem quando, de repente, batem na porta, e ela, que estava tranquila terminando de bordar panos de prato, sentiu seu coração bater mais forte. Sabia quem era.

― Gustavo... ― Sussurrou, trêmula.

As batidas se repetiram.

Ela ficou tão desesperada, que levou um tempo considerável sentada sem se mexer. Não sabia bem o que fazer, mas decidiu se levantar e abrir a porta.

Lá estava ele. Magro, barbudo, envelhecido. Mas ela via o garoto de sorriso largo, cabelos encaracolados, com uma bola debaixo dos braços.

― Olá, mãe? Sentiu minha falta?

"Não..." ― Pensou.

― Gustavo? Por onde ocê andou, minino?

― Tava em cana, mãe. Posso entrar? Eu não vou incomodar. Na real, só queria um prato de frango, um banho e uns trocado pra seguir minha vida.

Ela olhava para ele como se fosse um estranho. Ainda havia muitos cacos a serem juntados.

Afastou-se da porta, o suficiente para ele entrar e ao fazer isto, se arrependeu. Porém, ele já estava instalado no sofá, falando com tanta desenvoltura, que não parecia ter sumido por tanto tempo! Ela fechou a porta e foi sentar na poltrona em frente a dele, ouvindo aquela enxurrada de palavras, sem prestar atenção em nada.

― Ocê não quer ir se banhar e se deita um tantinho?

Ele olhava em volta, assobiando, ainda jogado no sofá, com um dos pés nele.

― Tu enricou, mãe? Ganhou na loteria? ― Riu.

― Eu tô bordando, pra arruma meu cantinho.

Ele olhou para ela, se levantando, indo em direção à cozinha. Abriu a geladeira, perguntando onde ficava o banheiro agora.

Ela mostrou, dando toalhas limpas e explicando que só tinha um quarto, mas ele podia ficar no sofá, voltando para a sala.

A mente da mulher estava em um turbilhão de emoções contraditórias e bem lá, no fundo, queria abraçá-lo e beijar seu rosto, até que todas as lágrimas secassem.

Por outro lado, seu coração estava enegrecido pela dor das lembranças.

Depois do banho demorado e de adormecer por uma hora, Gustavo apareceu na cozinha, onde sua mãe fazia o jantar, escutando um pastor abençoando os fiéis.

― Então, mãe... tem uma graninha pro seu filhote sair e festejar a liberdade? Só umas cervas com os velhos amigos de bar?

Ela parou de mexer o feijão, em silêncio. Olhou para ele e sorriu.

― Eu amo muito ocê, fio. Amo muito mais que ocê merece. Vou pega e já volto. ― Saiu, retornando com umas notas enroladinhas.

― Óia! Tome cuidado, tá?

― Tá! Tá! Pode deixar, mãe! ― Sorriu.

Beijou a testa da mãe, saindo pela mesma porta que havia entrado algumas horas antes. Ela sabia que ele voltaria bêbado e todo o ciclo retornaria.

Suspirou, voltando sua atenção para as panelas.

Mais tarde, Gustavo entrou cambaleando em casa. Tentou não chamar atenção da mãe, que já dormia no quarto.

Sua visão estava turva pelo excesso de bebida e seus passos incertos, fazendo mais ruídos que desejava.

― Inferno! Ela vai acordar! Droga! ― Resmungou, tropeçando na mesa da cozinha.

Olhou para a mesa e um bife acebolado, num prato, esperava por ele, que sem titubear, devorou a carne.

Tentou se virar em direção ao sofá, mas sua cabeça girou com os móveis. Sua mão foi em direção ao balcão da pia, na tentativa vã de evitar o tombo. Porém, a tontura foi mais forte do que imaginava, fazendo com que todo seu corpo inclinasse na direção do granito, onde sua testa bateu violentamente.

Sentiu uma dor excruciante inundar sua cabeça em instantes.

― Gustavo? Se é ocê, fio, durma bem.

Foi a última coisa que ouviu, antes de fechar os olhos...

Para sempre.


FIM

(1600 palavras)

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