𝑃𝑎𝑟𝑡𝑒 6
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ESTHER
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25 de dezembro de 2020
00:18
Quando deu meia-noite, Esther saiu pela sala com uma torta de frango coberta em mãos. Alguns primos pequenos abriram presentes e alguns adultos conversavam entre si; por isso, ninguém viu ela saindo. Na verdade, Esther não se importava com a maior parte daquelas pessoas — e vice-versa. Ela não avisara a ninguém. Provavelmente, a mãe pensaria que ela estava no quarto pronta para dormir.
Em menos de três minutos, já estava no portão da casa de Jaine. Suas mãos suavam e seu coração começou a palpitar antes mesmo de bater a campainha. Alguns longos segundos se passaram e Esther começou a achar que a casa estava vazia. Ou, quem sabe, Jaine estivesse dormindo e Esther estaria atrapalhando-a.
Ela quase se arrependeu daquela ideia idiota. Estava prestes a se virar e voltar para casa — e comer a torta sozinha — quando um cachorro latiu e ela ouviu a voz de Jaine. Esther engoliu em seco e voltou-se para o portão, que se abriu em um ruído metálico. Jaine enfiou a cabeça para o lado de fora e ergueu as sobrancelhas quando viu Esther. Seus cabelos estavam levemente úmidos.
— Ooi? — Jaine encarou-a, passando os olhos pelo misterioso conteúdo por baixo do pano vermelho.
— Hã... — ela ergueu a torta. — Minha mãe mandou entregar isso.
Jaine não saiu do lugar. Ficou encarando a torta por alguns segundos, e um cachorro peludo enfiou o focinho entre as pernas dela. Jaine parecia levemente bêbada. Depois, como se finalmente estivesse notando sua presença, a mulher afastou-se do portão, dando passagem para Esther.
— Entre. — Jaine disse.
— Não, eu... Só vim trazer a torta — Esther disse. O cachorro começou a cheirar seus calcanhares e ameaçou urinar.
— Não seja idiota. Entre. — Jaine ficou séria. — Francisco, você também.
O cão obedeceu, e Esther fez o mesmo. Logo quando passou pela porta da sala, a moça viu o panda sobre o sofá em frente à televisão. A velha casa era extensa e tinha um aspecto sombrio e gelado — devido às muitas árvores ao redor — e uma árvore de natal solitária estava em um canto. O silêncio era tanto que só se escutava o canto das cigarras do lado de fora. O clima não estava nada natalino.
Ela se sentiu mal por Jaine. Estranhou o fato de ter sido convidada a entrar, pensando em dois grandes motivos: 1. Jaine estava bêbada. 2. Jaine se sentia sozinha.
— Coloque em cima da mesa. — Jaine se jogou no sofá ao lado do panda. Esther obedeceu, colocando a torta sobre a mesa com cabeça de papais noéis. — Agradeça a sua mãe por mim.
Esther voltou-se para ela, evitando olhar ao redor. Já estava invadindo sua privacidade o suficiente.
— Ainda não deu o panda para o seu sobrinho? — ela perguntou.
— Eu não tenho sobrinho. — Jaine revelou com os olhos fechados. — Foi pra mim. Eu sempre quis ter um panda gigante.
— Ah. — Esther se lembrou da urgência de Jaine para comprar aquele panda. Ela se sentou no sofá, afastada dela. Esfregou os braços nus, com um pouco de frio. Jaine abriu um dos olhos e fitou-a de soslaio.
— Está com frio? — perguntou.
— Não muito — Esther disse.
— Não seja idiota — Jaine se levantou rapidamente, cambaleante. Esther se levantou e colocou a mão em suas costas. A mulher balançou levemente a cabeça. — Eu pego uma... Oh, droga de pressão baixa.
— Você está bem? — Esther perguntou, sentindo o cheiro adocicado de uva. Ela definitivamente havia bebido.
— Estou ótima. — ela se afastou de Esther, adentrando pelo corredor escuro. A moça esperou, escutando o som de seus passos desaparecerem. Jaine voltou com uma blusa de manga comprida. Ela jogou a Esther, que hesitou em vesti-la. A moça temia nunca mais querer tirar aquilo.
— Bem, obrigada — a moça passou a mão pela blusa ao colocá-la.
— Está parecendo uma abelha — murmurou Jaine. Esther ergueu as sobrancelhas e olhou para ela. Francisco se jogou ao lado da dona no sofá. A moça encarou aqueles olhos verdes exaustos, mas ao mesmo tempo sedutores. Jaine deu um sorrisinho que quase fez Esther tirar a blusa de frio que acabara de colocar.
Ela desviou a atenção para a árvore de Natal no canto da parede. Era pequena, mas estava enfeitada e cheia de luzinhas. Esther foi até ela e ligou as luzes na tomada mais próxima. A sala começou a brilhar de imediato. A moça consertou a estrela dourada no topo.
— Sempre achei curioso toda essa coisa natalina — Esther disse, observando as luzes coloridas. As bolas verdes e vermelhas com lantejoulas brilhavam. A estrela dourada entortou, e Esther consertou-a novamente. — Me pergunto de onde vieram essas coisas. Quero dizer, quem um dia resolveu enfeitar um pinheiro?
Jaine fez um barulho com a boca, como um cavalo zombeteiro. Depois ela riu, e Esther olhou-a por cima do ombro. A mulher se levantou e foi até a mesa, desfazendo o nó do pano vermelho. Ela expirou com prazer e dirigiu-se para a cozinha.
— Quer mesmo falar da origem polêmica do Natal no Natal? — Jaine perguntou, erguendo os talheres. — Ou comer?
— Eu gosto de polêmica, mas também gosto de comer — Esther falou.
— Então temos algo em comum. — Jaine colocou dois pratos sobre a mesa. Esther estava prestes a dizer que a torta era apenas dela, mas a mulher não estava disposta a comer sozinha. — Quero que coma comigo e não quero ouvir um não como resposta.
Esther não estava com fome, mas não ia negar aquele pedido. Ela pegou um pedaço de torta e ambas comeram em silêncio.
— Eu não quero ficar aqui — Jaine disse de repente, largando os garfos sobre o prato vazio.
Esther ainda mastigava a torta (que, inclusive, estava orgulhosa de si mesma por estar tão bom) quando Jaine saiu da mesa e desapareceu pelo corredor. A moça terminou rapidamente de comer e levou os pratos e talheres para a cozinha. Francisco sentou atrás dela, provavelmente também querendo experimentar aquela comida humana.
Jaine voltou com sandálias de praia nos pés e uma blusa de frio azul marinho.
— Aonde vai? — Esther perguntou, observando seus movimentos apressados.
— Se quiser me acompanhar, fique à vontade. Essa casa está me sufocando — Jaine falou. — Vou à praia. Quem sabe Iemanjá clareie a minha minha mente.
Esther acompanhou-a sem dizer nada. De fato, quando pisaram na rua, Jaine parecia ter ficado mais aliviada. Ela suspirou alto, guardando as chaves no bolso da calça; e desceu rumo à praia. Esther, respeitando seu espaço, ficou um pouco mais atrás. Não conseguiu evitar apreciá-la de costas — os cabelos negros agora levemente ondulados, seu suntuoso jeito de andar e o som de seus passos. Ela quis se aproximar para andarem lado a lado, mas Jaine não demonstrou nenhum desejo de manter-se ao lado dela.
Minutos depois, elas chegaram à praia e Jaine tirou as sandálias. Esther fez o mesmo, sentindo a areia macia e úmida sob seus pés. Ela se lembrou de imediato do dia da festa da cidade, há meses. Dessa vez, era Esther que acompanhava Jaine.
O estrondo das ondas batendo nas grandes rochas podia ser ouvido a longas distâncias. Jaine andou até sentir a água bater em seus tornozelos. Esther acompanhou-a, quase se encolhendo ao sentir seus pés gelarem.
— Será que existem sereias? — Jaine perguntou inclinando a cabeça. Talvez ela ainda estivesse um pouco bêbada.
Esther riu.
— Bem... Eu não duvido da existência de nada nesse mundo — ela disse, erguendo a palma da mão em direção ao oceano. — Olha o tamanho disso.
— Tem razão. — Jaine murmurou. — Somos arrogantes demais por negarmos tão fácil as coisas.
— Há muitas coisas que não sabemos explicar. Como...o amor — Esther fez uma careta interna. — A ciência diz que se trata de neurotransmissores e hormônios, mas acho que se trata de algo bem mais profundo que isso.
Jaine estreitou os olhos, olhando para a Lua crescente acima delas. Parecia estar refletindo sobre aquilo. Esther quase se arrependera de ter tocado naquele assunto, pois uma expressão dolorosa se apossou de Jaine.
— Às vezes, as pessoas dizem que nos ama e, no momento seguinte, nos apunhala pelas costas — ela disse, amargurada. — Você me parece o tipo de pessoa que jamais faria isso. Pelo menos, eu espero.
— Não sei se seria capaz disso — Esther falou. — Mas somos humanos.
Jaine franziu o nariz.
— Seria capaz de trair seu namorado bem na casa que acabaram de alugar juntos? — Jaine perguntou. Esther apenas balançou a cabeça, negando. Sentiu que ela precisava falar. A moça apenas escutaria, ajudando-a aliviar o peso daquela angústia até então desconhecida. — Pois bem. Foi isso que minha ex-namorada fez.
— Hãn... — Esther balançou a cabeça mais uma vez. — Isso é bem ridículo.
— Eu estava voltando do trabalho mais cedo...o clássico — a mulher riu de desprezo. — Peguei minha ex beijando outra mulher bem na nossa cozinha. E pensar que eu estava planejando pedi-la em casamento.
— Que droga — Esther soltou.
— Eu achei que não sentiria dor maior que essa — ela continuou. — Mas a morte do meu avô... Me fez perceber que existem muitos tipos de dores. Entretanto, não é possível evitar a morte, mas podemos evitar quebrar um coração.
Esther baixou a cabeça, friccionando os dedos na areia.
— Nem sempre — ela disse. — Às vezes, não conseguimos ser suficiente para o outro. Mesmo que sejamos sinceros, não escolhemos nos apaixonar por ninguém. Eu consigo compreender isso, mas jamais uma traição desse nível.
— Então seja sincera comigo — Jaine falou sem olhar para ela. Esther franziu o cenho, confusa. O que ela está querendo dizer?
— Não entendi...
— Eu não sou boba, Esther — ela continuou. — A última coisa que quero fazer é partir o coração de uma garota como você.
Esther sentiu seu rosto esquentar. Ela virou a cara, deixando com que os cabelos ocultassem parte de seu perfil. Apertou os dedos das mãos sobre a palma, sentindo seu coração acelerar. Então, Jaine sabia que Esther sentia algo por ela. Talvez aquilo estivesse claro em cada gesto que ela não conseguiu evitar — sua irritação para com Jaine na loja, sua aproximação repentina após o velório, a torta e seus olhares fugazes.
Jaine não era mais uma garota idiota.
— Eu preciso ir — Esther disse, envergonhada, colocando suas próprias sandálias sobre a areia. Mas Jaine impediu-a, segurando seu ombro. Aquilo não estava nos planos.
Esther encarou-a.
— Jaine, eu não vou negar que eu... — ela engoliu em seco. — Sinto algo por você. Alguma coisa. Mas não é nada de mais. Eu só te acho...bonita. Apenas isso.
A mulher deu um sorriso debochado, soltando seu ombro.
— Nada disso. — ela falou. — Vejo seu desespero em seus olhos. Minha beleza estonteante te assusta?
— E o que você sente? — Esther sentiu-se irritada de repente. Apesar da afirmação inicial, ela teve impressão que Jaine estava brincando com ela. — Sente pena de mim? Afinal, eu sou só uma garota.
— Você não é apenas uma garota. Você é uma jovem mulher atormentada diante de uma nova possibilidade. — Jaine apertou sua bochecha como se ela fosse uma criança fofa. — E o que eu sinto? No momento, sinto vontade de beijá-la. Mas jamais faria isso se você não permitisse.
Esther deu um passo para trás.
— O quê? — perguntou ela, perplexa. — Vai se foder, Jaine. Não brinque comigo. Eu me lembro muito bem que estava com uma mulher na festa. Eu estava bêbada, mas eu me lembro.
Jaine soltou uma gargalhada.
— Acha que sou do tipo que gosta de brincar com o sentimento alheio? — Jaine perguntou. — Depois de tudo que eu te contei? Ora, Esther...E eu nem me lembro do nome daquela mulher.
A moça abriu a boca para falar, mas as palavras não saíram. Ela se sentia confusa. Contudo, ao analisar aqueles olhos cor de musgo que ela tanto adorava, ela percebeu que Jaine estava sendo sincera. Contara aquilo por algum motivo — ela não queria machucar Esther, mas também não queria se machucar novamente. Mas jamais faria isso se você não permitisse, ela havia dito.
Como Esther admitiria que queria o mesmo; mas temia tanto o que viria em seguida que era incapaz de dar qualquer permissão?
Esther pensava demais. Ela respirou profundamente, deixando com que o cheiro da maresia ajudasse a acalmar seus pensamentos. E então, sentiu tão intensamente a presença de Jaine que não conseguiu mais ignorar seu coração ansioso. Esta parte de si não se importava nenhum pouco com o que aconteceria em seguida.
Como um imã, seu corpo foi atraído para o corpo de Jaine. Esther se surpreendeu consigo mesma quando se viu beijando-a, sem se importar se havia alguém assistindo à cena — ou sereias querendo seduzi-las mar adentro. Esther nunca havia experimentado nada tão peculiar antes.
A moça, com um sorriso idiota nos lábios, abriu os olhos e fitou aquele rosto novamente. Jaine acaricou sua bochecha, e Esther se perguntou mais uma vez se estava tendo outro sonho. Um sonho cruel e muito real. Tão real que o cheiro de Jaine e da água salgada ficaria em suas memórias durante meses.
— A torta de frango estava deliciosa. — Jaine disse. A moça não tinha certeza se ela estava falando da torta. — Ela definitivamente esquentou meu Natal.
Esther estava atordoada. Com um sorriso estúpido no rosto, ela segurou as bochechas de Jaine.
— Por favor, me bata para que eu acorde logo — ela murmurou.
— Esther... — Jaine ergueu o queixo dela antes de beijá-la novamente. — Você é uma garota estranha.
Epílogo
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