Capítulo 5

- O que aconteceu?

- Você desmaiou.

- E aí?

- E aí que eu consegui te arrastar a duras penas para dentro dessa cabana. Sempre há um refúgio por perto quando o herói da trama mais precisa.

- E o que aconteceu com as páginas?

- Ao desmaiar, você deixou cair a página 17 e ele pegou.

- E ele está por aqui?

- Parece que ele já foi, amor. Ele sumiu de repente. Você não sente a leveza no ambiente? A paz no coração?

- Não, não sinto. Está tudo exatamente igual como antes.

- Ele depois de narrar a nossa entrada na cabana, escreveu que deixaria você escrever mais um pouco, como se estivesse com piedade. Que ódio! Depois, estranhamente, ele me pareceu melancólico, pessimista e mórbido além do normal. Fiquei até arrepiada, carregava um estilo de escrita diferente, mais autoral, confessional.

- Mórbido? Como assim?

- Ouvi-o murmurando, enquanto escrevia, sobre morte, da existência do nada após o fim. Nossa, triste, pesado, horrível.

- Esse é o perfil dele. Sem dúvida foi ele que escreveu. O que fazemos agora? Estamos sozinhos nessa cabana, no meio da floresta, sem rumo.

- Você deve prosseguir com seu livro. Não o deixe roubar a sua ideia.

- Mas como, se não temos mais páginas?

- Eu penso em tudo, meu amor! Eu achei quatorze páginas dentro da gaveta daquela mesa ali. Elas, contudo, não estão numeradas.

- Quatorze? Uau! Você é demais mesmo, amor!

- Eu sei!

- Mas agora, com essas páginas em branco na mão, não me vem nada à cabeça, estou sem inspiração nenhuma. Esse meu velho problema de não saber o que escrever.

- Esforça-se, meu lindo, eu sei que você consegue.

- Eu não tenho talento mesmo. Por que continuarmos com isso?

- Para com isso, gatão. Já te disse para encerrar com esse pessimismo. Eu acredito muito em você! Você tem um grande talento!

- Obrigado, amor. Mas agora eu estou com tanta preguiça de escrever. Eu quero viver, viver a vida real, palpável sabe? Eu estava pensando em algo melhor que poderíamos fazer aqui nessa cabana vazia.

- Seu safadinho, não perca seu foco.

- Ora, minha linda, todo bom livro que se preze tem uma boa história de amor a ser contada.

- Amor, você acabou de acordar de um desmaio. Eu estava aqui toda preocupada com sua saúde e a primeira coisa que lhe vem na mente é safadeza?

- Eu já estou super bem, veja!

- Sei. E você pretende escrever e fazer todas essas maldades que eu vejo escorrer do seu olhar ao mesmo tempo?

- Na verdade, era melhor escrever depois da prática das minhas maldades carinhosas. A cabeça produz leve e clara depois de uma boa dose, de um gole quente de amor.

- Não é uma má ideia, mas não podemos nos dar o luxo dele voltar sem você escrever nada.

- Amor, é impressionante como os meus melhores diálogos são criados na cama. Muitas vezes após o sexo tive conversas com a cabeça da moça encostada no meu peito que preencheriam um best-seller. Mas não, não é possível reproduzir depois no papel o que se passou na cama molhada por suor. Livros de quatro paredes e a quatro mãos que não existiram nunca.

- Para de falar das outras. Eu não quero saber dessas centenas de vagabundas que rodaram no seu colchão!

- Desculpe-me. Não está aqui quem falou, imagine que foi ele.

- Tudo bem, tudo bem.

- Então, voltando ao assunto, minha linda...

- Espere um pouco, por que então não tentamos ter uma conversa dessas e praticamente escrevê-la em tempo real?

- Como assim?

- A gente faz isso que você tanto quer fazer...

- Ah, só eu? Você não?

- A gente faz isso que NÓS queremos muito fazer e depois você pega o papel e tudo o que falarmos você vai escrevendo. A cada frase nossa você escreve e o outro só pode responder quando você terminar de transcrever a frase.

- Será que vai funcionar?

- Por que não? Vai, começa aí!

- Ué, não temos que iniciar com o ato em si, ora...

- Não! Calma lá! Você escreverá sobre mim. Não vai sair falando de sexo assim sem nenhuma introdução.

- Você vai querer fazer um charme literário? Sério mesmo?

- Se não for assim, não vai acontecer nada entre nós, anjinho.

- Pense que você é uma personagem, imagine que você não existe, que você é fruto da minha mente criativa e fértil.

- Nada disso! Óbvio que eu existo. Olhe aqui, eu sou feita de carne e osso e não letras num papel. Serão as minhas falas. Se você quiser mesmo reproduzir o nosso diálogo, terá que ser assim, real!

- Ok, ok. Você e suas chantagens infalíveis.

- Pode chamar de chantagem, como quiser.

- Sim, Senhora Pois bem, que seja feita assim a vossa vontade, assim na vida real como na página de um livro. A primeira página começará com um diálogo retomando o suspense anterior. Bem, depois, eu pergunto como vou continuar a escrever sem a existência de páginas e você me desvenda as páginas encontradas na gaveta. Em seguida, eu não inspirado proponho sutilmente nós fazermos amor e, você, como bem pediu, me nega, alegando que temos coisas mais importantes a fazer, mostrando seu lado de responsável e companheira. Pode ser? Está bom pra você?

- Está indo muito bem, escreva nessa linha.

- Acho que ficou bom, nada muito profundo, mas a mensagem foi passada.

- Uma página só de charme? Sou tão fácil assim pra você?

- Ai amor, nosso caso já é antigo. Nós nos amamos de longa data.

- Que eu saiba, nesse seu livro aí que não existe nós nos conhecemos há apenas poucas páginas. A maioria dos livros de romance demora muito mais do que isso, são capítulos e capítulos para que flua o amor do casal protagonista.

- Ah, amor, mas...

- Mas o quê?

- Mas, mas... Mas a minha história não é uma história convencional! Você sabe muito bem disso! Minha história é uma saga ultramoderna, na verdade ela é uma história que sequer existe e, portanto não resiste problema algum que você possa criar para atrasar o nosso encontro derradeiro. Agora vem cá, vem!

- Nada disso, o que custa você pelo menos escrever mais algumas páginas tentando me convencer a deitar com você?

- Amor, isso é uma história, não estamos falando de você, você, pessoa de carne e osso.

- Não insista com isso! Já falei que, se estou participando dessa sua ideia de reprodução da conversa original da mente limpa e clara pós-sexo, as frases são minhas, não de nenhuma personagenzinha linda e maravilhosa que você tenha criado.

- Já não me parece tão maravilhosa...

- O que? O que você disse?

- Nada, amor, nada, me desculpe, vem cá!

- Não encoste em mim!

- Para com isso...

- Já disse! Não encoste em mim!

- Eu não falei pra te magoar, me desculpa!

- Com certeza se fosse ele escrevendo esta parte do livro, ele escreveria as coisas mais lindas do mundo, "a citação mais bela", na tentativa de me conquistar, de mostrar seu verdadeiro sentimento, fazer chover rosas e não simplesmente querer deitar comigo com apenas uma página.

- Agora você está me comparando com ele? É isso? – disse o herói revoltado.

- Pronto, você estragou tudo. Ele está aqui. Sinto a presença fraca dele aqui na nossa cabana – constata a verdade, a mocinha indignada.

- Eu estraguei? Você me diminui perante esse que quer roubar a minha ideia e me diz que eu estraguei tudo? – responde o herói dessa vez já vermelho, com o nervosismo revelado no suor das mãos. Ele estava enciumado e revoltado com a frase dita pela indubitável mocinha.

- Por que você não pode ser gentil e sensível com a nossa história? Você não quer que eu te compare com ele, mas você viu como ele me descreveu? Eu sou a mocinha perfeita! E você mal pode me declamar uma frase bonita – dizendo isso, a mocinha se afasta da cama onde se acomodava o herói, encosta na parede à esquerda dele e começa a chorar, escorrendo lentamente pela madeira da cabana com as costas até encontrar o chão duro e gelado. O choro prosseguia cada vez mais forte.

- Não faz isso, não chora, por favor...

O pedido do herói foi completamente ignorado. Ele levantou da cama e tentou se aproximar e contornar a situação, mas a cada vez que, com a voz mais mansa, pedia para que ela não chorasse, a mocinha aumentava o berreiro. Parecia que a voz do herói funcionava como controlador de volume de rádio, a cada palavra que aterrissava nos tímpanos dela, despertava um choro mais alto.

- Incrível, como ele consegue narrar os fatos sem se fazer presente? As palavras surgem como se tivessem sido escritas por um fantasma nas minhas páginas – se indaga o herói em voz alta quando vê as frases surgindo na folha.

- Eu não sei como ele faz, mas ele está adorando tudo isso! – completa a mocinha ofegante, que embora tentasse, não conseguia parar de chorar.

Realmente, o vilão estava se deliciando com aquela briga boba que herói e mocinha travavam.

- Viu? Viu isso? – diz a garota chorona.

- Meu amor, me desculpa – o herói mesmo não tão arrependido e não se achando sem razão, amoleceu. De fato, impossível seria não amolecer diante daquela visão – um anjo caído, deitado, chorando. Tamanha maravilha celestial não foi criada para chorar, essa combinação de perfeição e choro era tão antagônica que herói, sequer vilão, poderiam se manter indiferentes.

- Por favor, pare de chorar. Olha quanto tempo estou perdendo para escrever essa nossa briga boba. Estamos jogando páginas importantes fora. Desculpe-me. Eu não queria te magoar. Você sabe que eu te amo, muito...

O herói a admira ali sentada por alguns segundos, agacha ao seu lado e passa a mão no sedoso cabelo, pedindo mais uma vez desculpas pelas frases ditas. A mocinha parece que assimila o pedido, diminui as lágrimas e, como se a discussão toda que acabaram de ter ficasse em segundo plano, diz:

- Ele está aqui, dentro da cabana. Eu o escuto na minha cabeça, esses zumbidos, as frases que aparecem no seu papel. Ele está adorando essa situação, essa nossa briga idiota. Está zombando de nós, está adorando descrever nos mínimos detalhes tudo que está acontecendo. Ele tem a audácia até de me enaltecer, me comparando a um anjo, criatura celestial, tirando sarro de verdade, só porque eu disse que você não me falou nenhuma palavra bonita.

- Mas isso eu tenho que concordar com ele. Você é um anjo mesmo. A coisa mais linda que eu já vi em toda minha vida. De todos os seres, de todas as paisagens, de todos os encaixes que existem na natureza, você foi o mais belo, simplesmente irretocável.

Os olhos da incomparável mocinha se iluminaram e apontaram para o rosto do herói. A luz da cabana se chocou com as lágrimas que se acumularam nas pálpebras dos olhos do singelo anjo e fez surgir um arco-íris em seu olhar. 

Com velocidade, ela moveu a cabeça, fazendo com que as lágrimas coloridas se espalhassem pelo seu liso rosto, deixando suas bochechas rosa levemente salgadas, para então finalmente beijar o herói. Rapidamente, ele respondeu ao impulso e com a mão no rosto úmido da mocinha a trouxe para si, e esse choque fez a Terra parar de rodar. Literalmente a Terra estacionou - seu movimento de rotação foi de 900 quilômetros por hora a zero em uma fração de segundo. No exato momento em que os lábios dos protagonistas se encontraram, o chão se despedaçou e voou, a cabana se desmantelou em miúdos farelos, árvores com as raízes imensas arrancadas do solo e todo o tipo de fauna, dos menores aos maiores animais, era arremessada pela inércia. Mas eles continuavam ali, intocáveis, vivendo uma força muito maior que essa. Tudo ao redor era indiferente e pequeno: a Terra parou para assistir aquele beijo, batia palma de pé emocionada e oferecia, como resposta natural, uma tragédia de proporções apocalípticas, como se tentasse compensar a grandiosidade daquele beijo. O fim do mundo em troca daquele beijo, nos seus freios e contrapesos, em sua balança, essa foi a resposta encontrada pela natureza para equilibrar as forças. O herói colocou a cabeça da mocinha no chão bem lentamente, sem largar o beijo e deitou-se sobre ela. Sua mão esquerda pôs-se na sensual fenda do vestido vermelho, acariciando a espetacular perna que sobressaía, enquanto a direita afagava o rosto.

De repente, a mocinha abriu os olhos e separou devagar os lábios do beijo. Exatamente tudo tinha voltado a seu lugar, a Terra em ordem instantaneamente, como no retroceder de um filme pelo controle remoto, como se nada tivesse acontecido. Lá estavam eles na cabana, deitados no chão, trocando olhares a poucos centímetros de distância e com quase toda a extensão da pele de seus corpos tangenciando a do outro. O herói encarando a mocinha esperando uma explicação para a interrupção daquele momento tão maravilhoso.

- Não posso fazer isso, não com ele aqui nos olhando, sei lá, parece que ele está aqui, escrevendo nosso momento, criando o cenário, participando de nossa intimidade.

- Eu não estou ligando. É sério! Ele não pode fazer nada contra a gente – respondeu o herói tentando voltar a beijar a mocinha que, contudo, interrompeu o anseio com o indicador aos lábios seus.

- Não, não vou fazer isso aqui com ele controlando e como atento espectador. Ele está se deliciando com tudo isso. Eu não vou deixar. Esse momento é só nosso, quero aproveitá-lo por inteiro. Vamos, levante, vamos fugir daqui.

- Ok, você venceu, mais uma vez... O que não faço por você? – acata o contrariado herói.

E levantando, rapidamente, os dois catam as quatro páginas ainda não escritas e se evadem da cabana, deixando o vilão invisível ali, na sombra profunda com algumas páginas no colo e uma caneta, acompanhado tudo com um sorriso venenoso nos lábios, como se previsse as desventuras que ainda assolariam o casal.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top