Capítulo 2

"Nada é tão perfeitamente belo que não exponha um descompasso. A beleza verdadeira possui algumas imperfeições, mas ela não, ela é algo que só existe nos contos de fadas, é o fácil artifício do exagero, é a mulher idealizada."

- O que isso quer dizer?– questiona o herói confuso.

- Temos que nos esconder, ele está por perto. Eu conheço uma cabana escondida aqui na floresta e não está muito longe. Ele acabou de deixar cair essas seis páginas, havia terminado minha descrição, que, por sinal, achei maravilhosamente linda e começando a narrar o que iria acontecer com a gente.

- De quem devemos fugir? Quem é ele de que você fala?

- Você sabe muito bem a quem devemos temer. Não se faça de desentendido.

- Ele? O vilão? Você o viu?

- Você sabe muito bem que ele não se deixa ser visto por ninguém. Vamos, meu doce, aproveite a sorte e escreva logo essas seis páginas antes que ele chegue.

- Mas devo fugir ou devo escrever? Não dá pra fazer as duas coisas ao mesmo tempo.

- Escreva!

- Mas o que vou escrever? Não tenho ideia nenhuma.

- Sei lá, você é que é o escritor aqui!

- Não sei, não me vem nada à cabeça, exatamente por isso desisti desse livro estúpido.

- Pare com essa bobeira, esse autoflagelo. Por que você não começa falando de mim? Do quanto você me acha linda que parece até mentira? Que tal?

- Mas isso foi ele que falou! Já está escrito! Você quer que eu repita ipsis litteris?

- E daí? Uma linda citação é uma forma comum de se começar uma escrita, muitos livros começam assim, é inspirador, vai te ajudar, com certeza.

- Não! Eu quero ser original, legítimo. Não posso copiar esse ser odioso.

- Bom, isso vai contra a sua vontade, eu sei, mas precisamos preencher essa folha rapidamente! Para de orgulho, amor.

- Ok, ok. O que eu não faço por você? Aqui está, pronto.

- Isso, ficou linda essa ênfase na conclusão da minha descrição!

- Você adora quando lê que a sua beleza só é possível de ser encontrada nos livros, né?

- Adoro! Foram tão lindas essas metáforas para me descrever, fico com o sorriso assim, desse jeito, serelepe como uma lebre e branco como um cisne da Sibéria.

- Estou com ciúmes. Essas palavras são dele!

- Não fique, amor, não tenha ciúmes desse monstro! Você ainda não sabe que sou a personagem mais fiel que existe? Ele pode ser um bom escritor, mas é um crápula, eu nunca me interessaria por ele.

- Convenhamos, não tão bom assim. Serelepe como uma lebre? Branco como um cisne da Sibéria? Que comparação tosca, brega e sem originalidade, um verdadeiro clichê!

- Amor...

- Ok, ok, não é hora pra isso, como você disse, precisamos prosseguir.

- Por que você não fala de como nos conhecemos? Nosso primeiro momento juntos, quando eu te entreguei aquelas seis folhas, lembra?

- Claro que lembro! Foi lindo! Eu fiquei meio assustado sem saber o que fazer direito, mas você me deu um norte, ajudou-me.

- Que nada, meu lindo, estou aqui para isso. Essa é a função de uma boa mocinha. Só não me pede mais ideias senão vou querer roubar a autoria do seu livro – descontrai a mulher hipotética bem-humorada.

- Imagina, você também querendo roubar a ideia de um livro que não existe. Já me basta ele...

A donzela idealizada treme de repente e seus lindos olhos ficam inquietos.

- Você está sentido isso?

- O quê?

- É ele, ele está por perto. Acho que ele percebeu que perdeu as páginas. Eu já consigo ser incomodada com a presença do vilão, parece que ele entrou no meio da nossa conversa.

- Eu não consegui ver nada, amor.

- Eu já disse, ele não permite que ninguém o veja, jamais. Contudo, sua presença é sentida de longe. A temperatura muda, esfria rapidamente, comentários sussurrados se leem...

- Espera um pouquinho amor, estou concentrado aqui escrevendo uns diálogos meio paradoxais.

- Isso, escreva mais, escreva rápido!

- Não é assim tão fácil preencher uma página. Demanda tempo, ainda mais assim em pé, sem apoio direito. Minha letra já não é bonita, desse jeito, então, nem eu vou conseguir entender o que está escrito depois.

- É isso ou nada, ou você prefere que o vilão nos controle?

- Odeio pensar nessa ideia.

- Eu também, ninguém manda na minha vida.

E assim o herói termina a página 13 e escreve toda a de número 14 com diálogos bem esquisitos.

- E agora? Você sentiu? Foi ele de novo! Ele está aqui. Ele já está interferindo! Vamos correr...

- Nossa, a coisa está indo muito bem, as páginas 13 e 14 voaram, já entrei na página 15, não dá pra correr logo agora.

E a mocinha enaltecida, como não tivesse escutado o que o herói falava, tira seu salto agulha de diamantes, larga-o no chão como se não valesse nada, levanta seu lindo vestido vermelho e puxa o herói para correr junto com ela por entre as árvores da floresta escura e aveludada novamente pela névoa.

- Ok, a página 15 eu estou terminando com esse diálogo de suspense, nós apavorados com a presença dele que se aproxima. E agora?

- Pare de escrever e corra!

- Mas logo agora que a coisa estava fluindo?

A mocinha corre, puxando seu amado que ainda tenta rabiscar alguma coisa no papel enquanto é arrastado.

- A presença dele está cada vez mais constante, aumentando a cada momento. Vamos mais rápido, já consigo avistar a cabana.

- Acho que vou conseguir terminar a página 16, com muito sacrifício, mas devo conseguir, sim. Contudo, ainda tenho a página 17 toda em branco, o que eu faço com ela?

- Não faz nada. Você não vai conseguir nem terminar a página 16.

- Por quê?

- É tarde demais. Ele nos pegou, a página 17 é dele – diz a inatingível mocinha, com absoluta e precisa razão.

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