XVI
As meninas tomaram banho e trocaram de roupa, enquanto da cozinha Marcus, indignado, não parava de falar mal de Priscila e amaldiçoá-la com as mais variadas palavras. Thiago, profundamente arrependido de ter se deixado envolver pelos caprichos de sua ex-namorada, estava emudecido de raiva e tristeza, pois sentia-se culpado pelo ocorrido, além de ter sido o motivo do arroubo colérico da loira. Todo abuso que sofreu em seu antigo relacionamento agora refletia não apenas sobre sua família de maneira mais hostil, mas também sobre seu mais novo amor, e ele não sabia como reagir, pois, durante os 6 anos de namoro não havia percebido que padecia tortura psicológica. O moço havia passado por uma verdadeira lavagem cerebral e agora estava no modo "reset", precisava de alguém que o ensinasse reagir a determinadas situações.
Thiago havia prometido a si mesmo que protegeria Aline de tudo e de todos, mas agora estava aéreo, o mundo havia desabado sobre sua cabeça e ele culpava-se por tudo. De um lado, pessoas que surgiram do nada, alegando ser a família de Aline estavam a caminho, e isso incluía um noivo; do outro lado, sua ex tendo acessos de raiva, machucando fisicamente sua amada. Enquanto ele se martirizava sentado no sofá, na sala, ela surge sorridente ao lado de sua irmã.
O amigo chega logo atrás com uma maleta de primeiros socorros na mão.
— De onde veio essa maleta, velho? – Thiago questionou.
— Eu sempre carrego no meu carro. É essencial ter uma, nunca se sabe quando iremos precisar! – Respondeu catando a mão de Jú e arrastando-a para o sofá.
— Tá! A gente já se fala há um bom tempo, mas eu não imaginei que você fosse tão cauteloso... – Júlia não escondeu o orgulho que estava sentindo de Marcus.
— Tem muita coisa a meu respeito que você ainda não sabe. – Marcus tentou falar de forma maliciosa, mas apenas deixou transparecer sua timidez quando está na frente de Júlia.
A garota apenas riu satisfeita enquanto seus ferimentos eram tratados por Marcus. Thiago ainda estava meio perdido, observando a cena, fazendo Aline se lembrar de como ela mesma se sentiu alguns dias atrás após o episódio do shopping. Ela então pegou algodão e soro fisiológico na maleta e colocou nas mãos dele sem dizer qualquer palavra.
— Me desculpa! – Ele falou sem olhar nos olhos dela.
Aline abraçou forte seu pescoço e afagou os toquinhos de cabelo de sua nuca. Jú levantou-se e por trás do sofá repetindo o gesto da amiga, completando o afago, toda manhosa.
Depois do chamego, ele se recompôs, tomou o algodão, encharcou de soro e começou a passar sobre os arranhões dos braços, pescoço e rosto de Aline, entre um cuidado e outro ela recebia um cafuné.
A pizza foi requentada no micro-ondas, mas o resultado não foi muito agradável: algumas partes frias, recheio borrachudo e massa mole, combinou perfeitamente com o clima borocoxô, como a cereja do bolo, só que em uma versão triste.
As meninas dormiram no quarto principal, pois era muito mais confortável, os meninos ficaram no quartinho da bagunça repaginado. O colchão novo era de casal, porém Marcus preferiu dormir em seu colchonete, após ter relatado alguma coisa sobre masculinidade, o que fez com que as moças rissem bastante com a explicação, quebrando um pouco o gelo.
Júlia e Nine, apelido sugerido durante o jantar, dormiram como pedras, já os rapazes até que tentaram, mas acabaram conversando durante a noite, o teor foi desde bolar um plano para afastar de vez Priscila do caminho de todos a confissões repentinas:
— Um processo! É o que a gente faz de melhor! – Marcus sugeriu.
— Parece que eu ando tapado esses dias. Nem me passou pela cabeça.
— Vou solicitar uma medida protetiva amanhã mesmo.
— Não vai rolar, Marcus. – Thiago desanimado, falou após pensar um pouco.
— Uai? Por que não?
— Aline não tem memória, documento e nem alguém próximo que a reconheça. Vai ser muito difícil abrir um processo nessas condições.
— Eu fiquei tão furioso com essa história que acabei me esquecendo desse detalhe.
— E mesmo que eu conseguisse iniciar um processo desses poderia ser tudo em vão. Essas pessoas que estão vindo para cá podem ser mesmo parentes dela. K.O! – Na penumbra o amigo não conseguia ver o rosto de Thiago, mas tinha certeza de que ele estava chorando.
— Como essa menina conseguiu fazer isso, cara?
— Que viagem é essa Marcus? Ela é a única inocente da história toda.
— Não tem nem uma semana direito que ela apareceu e você está arriado por ela. Isso é possível?
Thiago enxugou as lágrimas disfarçadamente, riu um pouco e confessou:
— Já ouviu falar em amor à primeira vista? Pois é! Acontece.
Deitado de barriga para cima sobre seu colchonete, Marcus suspirou profundamente, entrelaçou os dedos das mãos sobre o peito e declarou:
— Estou apaixonado pela sua irmã!
Thiago agarrou o próprio travesseiro e precipitou-o sobre o rosto do amigo com toda força, depois subiu sobre ele dando golpes leves em seus braços e sorrindo exclamou:
— Cabra de pêa, tire o zói de cima de minha irmã, macho!
Marcus arrancou-o de sobre si e pôs-se sentado sobre o colchonete:
— Eu estou falando sério! Eu nunca pensei que fosse ficar sem jeito em contar alguma para você, mas eu estou me esforçando aqui e gostaria muito que você prestasse atenção.
Ao perceber a expressão séria do amigo, ele se levantou, acendeu a luz, sentou-se sobre o colchão e pôs-se a ouvir.
— A primeira vez que a vi, quando seus pais vieram passar o Natal aqui há 3 anos, na mesma época que você pediu a Priscila em casamento, eu fiquei balançado. E a culpa é sua! Você que ficava insistindo para eu levar sua família para cima e para baixo enquanto você saía com a sua namorada...
— Ex-namorada!
— Tanto faz! Foi naquela época que eu comecei a observá-la e a me encantar com jeitinho doce, inocente e brincalhão dela. Foi nesse período que trocamos telefone e começamos a conversar.
— Tem 3 anos que vocês se falam pelas minhas costas?
— Relaxa! Sempre foi amizade, sem segundas intenções. Ela nem imagina tudo isso que eu tô te falando, velho!
— Quando foi que você percebeu que estava mesmo gostando da minha irmã?
— Ah, eu não sei! Essas coisas não têm como a gente saber ao certo! Não é aquele negócio que a gente está, sei lá, lavando a louça e pã, percebe que tá apaixonado. Mas eu tenho sentido saudades dela, constantemente, há pelo menos uns dois anos.
— E você nunca me falou nada?
— Você é irmão dela! Acha que é fácil! Não tô falando de uma coisa fugaz, relacionamento de uma noite, não. Ela é alguém pra vida inteira. Eu tô abrindo meu coração aqui e nunca pensei que fosse capaz de fazer isso.
— Mas somos amigos, por que é tão difícil assim?
— Justamente porque somos amigos. Ah, velho... Sei lá!
— Deixa eu entender: Você conversa com minha irmã pelas minhas costas há 3 anos, se apaixonou por ela, só que a coitada não sabe... Então por que você sai com mulher a torto e a direito? Essa semana mesmo você ficou com a amante do dr. Arnaldo, cara!
— Eu nunca me senti assim antes, eu tô confuso! Você acha que eu gostaria de me amarrar a alguém por livre e espontânea vontade? Eu só estava tentando fugir de mim mesmo. Só que quando eu a vi na rodoviária... cara... eu vi que ela é a única mulher que quero em minha vida, para a vida inteira.
Thiago, após ouvir a confissão do amigo que aguardava apreensivo por uma resposta, ficou em silêncio por alguns minutos como se analisasse a situação de maneira global, até que finalmente soltou:
— Eu só tenho uma irmã e ela é uma joia preciosa para mim. Então eu só posso desejar o melhor para ela, mas admito que já pensei em aproximar vocês dois. – Riu. – Na minha cabeça era uma ideia muito boa juntar minha irmãzinha com meu melhor amigo. Eu não sei onde estava com a cabeça. Mas até que não é uma má ideia. É melhor contigo do que com um cara estranho. Pelo menos sei que você não tem antecedentes criminais, é de boa família, tem emprego e residência fixa e eu sei onde te achar quando você vacilar com ela. Então eu autorizo o romance de vocês... Depois que ela própria autorizar, claro.
Marcus o agarrou de beijos e abraços:
— Êh boy! Saí fora, não gosto de macho, não! – Repreendeu-o Thiago.
E continuaram a conversar por um longo tempo sobre suas amadas antes de pegar no sono.
Quando o despertador tocou na manhã seguinte, os dois acordaram parecendo dois pandas: escuro ao redor dos olhos, preguiçosos e sonolentos. Mas tiveram uma pequena surpresa ao chegar à cozinha: As meninas haviam preparado um café-da-manhã sortido e aguardavam-nos sentadas à mesa, emperiquitadas:
— Bom dia, pombinhos! – Júlia disse em tom de deboche.
Marcus abriu um enorme sorriso como se estivesse realizando um sonho.
— Jú me ensinou a fazer beiju, mas não ficou igual ao que você faz. Tá meio duro. – Aline abriu um sorriso amarelo.
Thiago correu e beijou-a sem importar-se com os demais no ambiente. A quarta-feira estava se aproximando e ele sabia que seu tempo com ela poderia estar contado, pois se ela tivesse mesmo um noivo ele já não poderia tê-la em seus braços como almejava.
— Eu não vou trabalhar hoje! Você poderia dar um jeito lá pra mim? Sei lá, fala que fiquei doente, inventa qualquer coisa. – Thi implorou ao colega.
— Pode deixar eu dou um jeito lá. Aproveita seu dia com sua fantasminha, só não vai largar a Jú sozinha.
— Oxe, e quer dizer que eu vou ficar segurando vela, é? – Rebateu a irmã.
— Vem comigo, para o escritório.
— E pode?
— Você vai ser minha assistente pessoal, já que vou ter que cobrir seu irmão...
— Ótima ideia. – Concordou Thiago.
Os quatro tomaram o café-da-manhã, posteriormente Marcus e Júlia saíram para o escritório. No caminho, ele passou pelo prédio onde Priscila morava, deixou Jú dentro do carro e foi encontrar-se com a loira na portaria após exigir, pelo telefone, que a mesma descesse para vê-lo.
— Não sou o Thiago, tá entendendo? Eu não sou tão bonzinho quanto ele e não responderei por mim se você se aproximar da Júlia ou da Aline novamente, ouviu bem?
Priscila tentou fazer drama, mas percebeu que não iria colar, e no fim assentiu.
Júlia formou-se em Pedagogia, contudo acabou deixado o trabalho de professora em uma escola de Educação Infantil para dar aulas particulares, pois achava mais lucrativo e tinha mais liberdade sobre seus horários, então inicialmente sentiu-se um pouco deslocada no escritório, mas rapidamente adaptou-se e até cogitou mudar de carreira.
Foi o dia de trabalho mais gratificante para Marcus. Pelo menos até a recepcionista avisar que Marciela, a amante do dr. Arnaldo, estava subindo para sua sala. Apesar de ter o raciocínio rápido ele não conseguiu pensar em nada que pudesse fazer com que ela desviasse de seu caminho. A mulher adentrou a sala e seguiu direto em busca de um beijo do rapaz, Júlia, como boa assistente, interveio afirmando que dentro do ambiente de trabalho aquele tipo de demonstração de carinho era terminantemente proibido, e que "além do mais, se houvessem interações duvidosas entre cliente e advogado o processo sofreria danos terríveis para o requerente". Ela não fazia ideia do que estava falando, mas funcionou e Marciela ateve-se apenas ao que deveria.
Thiago aproveitou o dia como pôde ao lado de Aline, levou-a para conhecer diversos lugares, tomaram sorvete na rua, brincaram na pracinha feito crianças, almoçaram na feira, fez tudo que tinha vontade de fazer quando namorava com Priscila. Um romance doce e delicado como sempre quis.
P.S.: Capítulo dedicado a Carol Santos @EuCarolSantos, minha irmã. Pois a personagem Júlia foi inspirada nela.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top