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A ex-namorada de Thiago conseguiu arruinar os planos dele, e ele não tinha nenhuma carta na manga para salvar o restante do dia. Os 6 anos de namoro com Priscila o ensinaram (erroneamente) que era preciso sempre surpreender os outros, superar as expectativas alheias, que para agradar as pessoas seria necessário gastar uma boa quantia de dinheiro e que ninguém o amaria de graça, e por isso ele se sentiu um pouco frustrado, já que sua intenção era mimar Aline.

Na sala, sentado no sofá, com a mente bloqueada, praticamente em outra dimensão, pegou o controle da televisão e começou a trocar os canais. Aline ainda se sentia culpada por tudo que havia acontecido no shopping e não sabia como trazer Thiago de volta à realidade, ele ainda era um mistério para ela, assim como sua própria mente. Observava-o da porta da cozinha tentando decifrá-lo. "Ele deve estar chateado comigo", e "ele está todo machucado por minha causa" eram os pensamentos que passavam em sua cabeça. Como um cachorrinho culpado ela saiu de fininho e começou a vagar pela casa buscando algo que pudesse distraí-lo, agradá-lo, e no quarto vago deparou-se com algumas caixas de papelão empoeiradas, cheias de livros de Direito, uma prateleira de aço com variados itens: tênis velhos, chinelo de dedo faltando o par, alguns calendários de parede enrolados, umas 5 mudas de roupas dobradas e já surradas pelo tempo, dois porta-retratos de madeira virados para baixo, uma bola de futebol murcha, uma caixa de ferramentas aberta, um Mini System CD quebrado, fones de ouvidos plugados em um MP4 antigo. Ao lado da prateleira havia uma toalha de mesa florida, já amarelada pelo tempo e pela poeira, cobrindo algo. Ela delicadamente retira-a descobrindo um violão folk eletroacústico de cor bege, suas cordas de aço meio enferrujadas, o braço apontando desgaste na posição de alguns acordes, teias de aranha no interior do corpo do violão mostravam que vários anos já haviam passado sobre ele.

Para ela havia sido a descoberta do século, seus olhinhos brilharam como se tivesse encontrado uma pedra preciosa. Sem pestanejar ela toma o violão nos braços e vai até Thiago, senta-se ao lado dele e entrega-lhe o instrumento. Ele sorri surpreso com a descoberta:

— Onde você achou? – Disse observando cada centímetro do violão e tirando os vestígios de poeira e as teias de aranha com a mão direita.

— Dentro do quarto vazio. Tem um monte de coisa lá! Por que você guarda chinelo sem o par? – Questionou ela.

Ele deu uma gargalhada e explicou:

— A minha mãe me deu... eu não posso jogar fora assim. A correia do outro pé quebrou, eu colei, mas quebrou de novo – riu – então foi para o lixo.

— A gente poderia fazer uma faxina lá – Aline replicou.

Thiago abraçou o violão e entortando a cabeça olhou para a moça. Ele achava tudo que ela falava ou fazia muito fofo. Ela estava com os dedos das mãos entrelaçados, posicionados sobre os joelhos e expressava um sorriso satisfeito no olhar.

Ele balançou a cabeça concordando com a faxina e percebeu que não precisaria esforçar-se muito para agradá-la.

— Aqueles dois porta-retratos... – Aline, por um instante arrependeu-se de iniciar a frase.

— Porta-retratos? Não sei do que você tá falando.

Ela correu até o quarto e voltou observando as duas fotos que trazia nas mãos. Sentou-se no sofá ao lado esquerdo do rapaz e indagou:

— É a sua família?

Ele sorriu e confirmou:

— Essa foto é bem antiga, foi no batizado de minha irmã; deve ter pelo menos uns 20 anos. Essa aqui é a dona Laura, minha mãe – mulher de fisionomia forte, loira, de longos cabelos lisos; – esse ao lado dela é o meu pai, Pedro - típico homem nordestino: magro, pele queimada do sol, rosto sofrido, olhar firme e confiante. – Essa baixinha aqui é a Júlia, minha irmã mais nova – uma menininha de olhar tímido, com um vestidinho branco, cabelos ondulados, aparentava ter uns 3 anos de idade – e este magricelo aqui sou eu – riu.

— Quantos anos você tinha, Thiago?

— Acho que uns 10 ou 11 anos – na fotografia ele estava com um sorriso brejeiro, os cabelos acastanhados estavam cheios de gel e penteados para o lado, vestia uma camisa verde de botões e mangas curtas, e uma calça social preta.

— Você continua igual!

Ele achou graça porque achava-se ridículo naquela foto. Ela mostrou a foto do outro porta-retratos e disse:

— Vocês são muito fofos!

Júlia e Thiago estavam um pouco mais velhos, ele com 14 e ela com 8 anos de idade, e em frente a uma pracinha, de mãos dadas, usando roupas simples e com o mesmo semblante tímido. Ele agradeceu o elogio com um sorriso envergonhado.

— Além da minha família você é a primeira pessoa que vê essas fotos – disse. – Não é à toa que ficava escondida no quartinho. Eu tive que deixá-los por um tempo, eu vim para Brasília para estudar, realizar o sonho de minha mãe de ter um filho doutor, e trabalhar para dar uma vida menos sofrida para eles. Só que eu estraguei quase tudo durante o processo, mas nem tudo está perdido!

— Sua família é linda! Espero poder conhecê-los.

— Vai sim! Assim que resolvermos tua situação eu vou te levar para conhecer minha casa na Bahia, minha família, meus amigos de infância...

— Promete? – Os olhos dela brilhavam ainda mais.

— Prometo! – Ele esticou o dedo mindinho na direção de Aline e ela imediatamente agarrou-o com o próprio dedinho e selou com o polegar.

— Não pode mais voltar atrás! Não vai tocar? – Ela perguntou arqueando a sobrancelha.

— Faz muito tempo que não toco, meus dedos estão mais enferrujados que essas cordas. – Mas ela posicionou os cotovelos sobre as coxas e apoiou o queixo nas mãos, esperando pela canção. Thiago riu. – Vou tentar!

Ele afinou as cordas do violão e começou a tocar e a cantar meio desafinado e com a voz um pouco rouca:

"Linda, só você me fascina

Te desejo, muito além do prazer

Vista meu futuro em teu corpo

E me ama como eu amo você

Vem, fazer diferente

O que mais ninguém faz

Faz parte de mim

Me inventa outra vez

Vem, conquistar meu mundo

Dividir o que é seu

Mil beijos de amor

Em muitos lençóis

Só eu e você!

Linda, conte a mim teu segredo

Pro meu sonho

Diga quem é você

Livre, nunca mais tenha medo

Pois quem ama tudo pode vencer..."

Linda demais: Tavinho Paes / Kiko. Intérprete: Roupa Nova

Aline, enquanto ouvia a canção foi trocando o leve sorriso nos lábios por uma expressão mais séria e pela primeira vez observou-o atentamente, cada detalhe de seu rosto, de seu corpo: um jovem adulto alto, magro, mas com músculos bem definidos; sua pele clara, porém de tonalidade naturalmente bronzeada era o resultado perfeito da mistura dos genes de seu pai e sua mãe; seu cabelo liso, castanho-claro insistia em ficar caindo em sua testa, apesar do corte de bom-moço está sempre bem penteado para trás, talvez resolveu se rebelar por ter passado a infância inteira sendo penteado para a lateral; as sobrancelhas grossas e um pouco desalinhadas, os cílios compridos e os olhos azul-escuros transpareciam a personalidade bondosa de Thiago (e as pessoas normalmente se aproveitavam disso); o rosto arredondado, sem barba destacava os lábios em formato de coração.

Enquanto ele cantava deixava parte de seus dentes brancos à mostra, e vez por outra, no meio da canção um sorriso lateral era esboçado junto com o espremer singelo dos olhos. Thiago era o típico moço criado dentro da igreja, seguindo os princípios conservadores, ensinado a respeitar a todos, especialmente quando se tratava de mulheres ou pessoas mais velhas. Ele preferia sofrer do que revidar, não gostava de baladas, evitava qualquer tipo de vício, e fazia de tudo para ajudar os outros. Priscila tinha um outro estilo de vida e fez de tudo para mudar Thiago, fazendo-o adaptar-se e fazer suas próprias vontades. Ele sempre cedia e fazia tudo o que ela queria, mas seus princípios permaneceram os mesmos, afinal de contas, um caráter bem moldado não pode ser abalado.

Aline concentrou-se no rapaz, como se buscasse nele as respostas para seus próprios questionamentos. Thi, percebendo que estava agradando, cantava uma música depois da outra, e apesar de se sentir um pouco envergonhado, ocasionalmente desviava os olhos das cordas do violão para os olhos de Aline que fitava-o quase sem pestanejar.

Ele então começou a cantar:

"Ela passou do meu lado, 'oi amor' – eu lhe falei... 'Você está tão sozinha', ela então sorriu pra mim..."

Hoje à noite não tem luar: Carlos Colla. Intérprete: Renato Russo

Ao direcionar os olhos para Aline, Thiago foi surpreendido com um beijo.

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