VII
A mulher estava visivelmente abalada, suas mãos e lábios tremiam, mas não disse uma palavra. Thiago trouxe-a para fora do guarda-roupa, sentindo sua pele gélida, apesar do calor do dia, num arroubo de compaixão tomou-a em seus braços, sua mão direita afagava os enormes cabelos que cobriam a cabeça da moça enquanto apertava-a em seu peito, sua mão esquerda enxugava suas próprias lágrimas, disfarçadamente. Ele quis protegê-la de tudo e de todos, dentro de seu abraço.
— Tá com fome? – Perguntou-a.
Ela confirmou balançando levemente a cabeça.
— Vem, antes que a comida esfrie totalmente.
Ele segurou a mão dela e conduziu-a para a cozinha. Enquanto abria as embalagens de comida disse:
— Prometo que eu mesmo prepararei o jantar... uma comidinha caseira... a sobremesa que você quiser... tenho que me redimir depois de ter me atrasado tanto.
— Eu senti saudade de você!
Thiago encarou-a instantaneamente. Escorriam algumas lágrimas do rosto dela, apesar de não esboçar cara de choro. Ele não disse nada, desviou o olhar e cerrou os dentes tentando disfarçar a tensão, pois ouvir aquela frase fez seu coração acelerar e leves espasmos tomaram conta de suas pernas.
O almoço seguiu num silêncio total e ele dava algumas olhadelas entre uma garfada e outra para certificar se a moça estava alimentando-se direito. As estruturas emocionais de Thiago foram abaladas com sucesso, e o fato de ele guardar silêncio denunciava.
Após o almoço eles seguiram para a delegacia mais próxima. Thiago não conseguia disfarçar o quão orgulhoso estava por vê-la vestida com a roupa que ele comprara. Ela estava linda!
Na delegacia Thiago encontrou Prado, um velho conhecido da polícia que apesar de ter dado uma bronca nele por não ter ligado para o 190 imediatamente, estava determinado a ajudá-lo. As coisas foram um pouco mais complicadas do que eles pensaram. A mulher não se lembrava de nada, então iniciou-se uma varredura na base de dados de desaparecidos, buscando através de reconhecimento facial e impressões digitais encontrar vestígios da moça e localizar possíveis familiares.
Passaram a tarde inteira na delegacia e não encontraram nada, não havia nada, nenhuma pistazinha sequer. Prado prometeu a Thiago que continuaria as buscas e que entraria em contato com ele imediatamente caso encontrasse qualquer coisa ligada ao desaparecimento da moça, e liberou os dois já que a mulher esboçava uma feição de cansaço e de fome.
Após saírem da delegacia, entraram na primeira lanchonete que encontraram pelo caminho, sentaram-se à mesa e a moça observava tudo, maravilhada, como se estivesse num enorme parque de diversões. Thiago fez o pedido enquanto analisava seus olhinhos brilhantes e pensou que não seria uma má ideia colocá-la em um potinho, só para ele.
— O que há de tão maravilhoso nesta lanchonete, moça? – Perguntou-a.
— Esse lugar – respondeu com um leve sorriso – é muito mais bonito por dentro.
— Você já conhecia esta lanchonete? – Ele teve a leve esperança de a moça estar se lembrando de alguma coisa.
— Não, mas eu queria muito entrar em um lugar assim, aqui é muito cheiroso – riu.
Thiago não pôde conter o riso, mas logo seu sorriso amarelou, pois lembrou-se das circunstâncias em que ela estava vivendo e sentiu seu coração apertar. O lanche ficou pronto e ela rapidamente começou a saboreá-lo sem importar-se com os demais, presentes no local, deixando escorrer mostarda pelos cantos da boca e esboçando um rosto feliz.
— A tua família deve estar desesperada à sua procura – disse Thiago entortando levemente a cabeça na busca do melhor ângulo que permitisse-o apreciar a linda vista à sua frente.
— Talvez! – Respondeu ela, fazendo pouco caso, mostrando mais preocupação em saborear seu delicioso lanche – Você é minha família agora, não quero pensar nos outros, por enquanto.
Thiago tentava controlar seus batimentos cardíacos ao ouvir aquilo. Ele tinha uma família que o amava muito, e que era o motivo inicial de todo seu sacrifício, deixou-os para trás na intenção de angariar recursos financeiros que o permitisse dar a eles um pouco mais de conforto, mas Priscila entrou na história e tudo começou a mudar. O pobre acabou entrando numa espécie de hibernação emocional forçada após a lavagem cerebral que Priscila fez nele. A frase "você é minha família" o fez despertar do transe, como se uma mão invisível tivesse acionado o botão reset de sua vida e o fizesse refletir sobre tudo que ele deixou para trás por causa de uma vã necessidade da companhia de uma pessoa vazia que fazia-o sofrer.
— O que foi? – Ela perguntou preocupada ao observar o rosto triste de Thiago – Eu disse algo que não devia?
— Não! É que você me fez pensar no que tenho feito da minha vida – respondeu tentando sorrir.
— E o que você tem feito? – Replicou.
— Nada! Parece que eu estava em coma, e você me acordou – riu.
— Isso é bom, não é?!
Thiago concordou, balançando a cabeça.
*
— Nosso passeio foi ótimo! Não foi, Thiago?! – A mulher estava radiante ao chegar em casa.
Ele ficou totalmente confuso com aquela declaração, mas decidiu concordar para não estragar a felicidade dela.
— Por este ângulo – continuou ela – tudo parece mais iluminado e cheiroso, a cidade é muito mais bonita.
— De qual ângulo? – Ele estava ainda mais confuso.
— Do ângulo que não estou mais sozinha e com medo – apertou os olhos em um sorriso caprichado.
Thiago engoliu seco e percebeu que ele mesmo já não estava mais sozinho e sentiu-se como um pinto no lixo, como uma criança que encontrou uma moeda de 50 centavos no caminho para o mercado. Por mais que ele não quisesse e até lutasse contra, instintivamente já projetava na bela garota que estava sob seu teto a felicidade que tanto almejava.
— Eu... vou tomar... um banho – Thiago entrou no banheiro às pressas, tentando fugir de si mesmo.
A água em seu corpo não estava limpando a moça de seu pensamento e seu coração não parava de bater forte em seu peito. Ele esfregava violentamente seus cabelos e dava leves socos no tórax, tentando tirá-la à força de sua mente, pois não fazia nenhum sentido cultivar um sentimento por uma mulher que ele não sabia nem o nome e muito menos a origem.
— E se ela for casada? – Pensou alto – Ela tem a aparência de uma jovem de uns... 27 anos, então é possível que tenha um namorado ou um marido...
Batidas nervosas na porta do banheiro o assustaram, e no ímpeto de salvá-la do que quer que fosse, não pensou duas vezes e antes de enxaguar os cabelos ou mesmo cobrir-se com a toalha, abriu, dando de cara com os olhos assustados da moça. Ele segurou os ombros dela com força e perguntou o que havia acontecido ao mesmo tempo que corria os olhos por toda a casa buscando algo de anormal.
Ela estava congelada e pálida, e não ousava desviar seus olhos dos olhos dele, muito menos abrir a boca para dizer qualquer palavra. Era possível visualizar a pulsação frenética de sua carótida, que denunciava o extremo nervosismo da mulher. Vagarosamente levantou as duas mãos que seguravam o celular de Thiago, entregando-o enquanto vibrava sem parar. Abriu a boca trêmula, tentando dizer alguma coisa, mas falhou terrivelmente.
Thiago finalmente olhou para as mãos dela, vendo ao mesmo tempo a situação na qual se encontrava e gritou:
— Uou!
Agachou-se imediatamente e cobriu-se com as mãos, entrou no banheiro de costas e fechou a porta novamente. Ela continuou paralisada, com o telefone que vibrava insistentemente nas mãos e a respiração ofegante. Do lado de dentro, Thiago dava tapas em seu rosto e resmungava palavras sem sentido, até que respirou fundo, enrolou-se na toalha e abriu uma brecha da porta, deparando-se com a moça ainda assustada. Delicadamente tomou o celular das mãos dela e encostou a porta atrás de si, deixando-a ali ainda parada.
Ele recostou na parede do banheiro, passava a mão no cabelo e coçava a cabeça obstinadamente, como se aquele movimento fosse capaz de diminuir a vergonha que sentia. O celular em sua mão continuava vibrando e ele então se lembrou de verificar do que se tratava, e para surpresa de ninguém, era Priscila ligando sem parar. Seu primeiro pensamento foi: ignora, apenas ignora. Mas ele não conseguia fazer isso, por mais que quisesse.
— Alô?! – Disse desanimado.
— Por que demorou tanto para atender? – Priscila esboçava certa irritação na voz.
— Para começo de conversa você nem deveria ter ligado! Nós terminamos, esqueceu?
— Você é muito insensível! Você sabe muito bem que eu não terminei de verdade! Eu te amo muito, Thiago! Não podemos simplesmente terminar, sem mais nem menos. E eu sei também que você não consegue viver um dia sem mim, por isso que te liguei... para dizer que te perdoo e te aceito de volta.
— Você o quê? Priscila, você é mais louca do que eu pensava, sabia?
— Eu sou louca por você, meu amor, e você sabe muito bem disso! Nós nascemos um para outro.
— Quer a real? Eu não aguento mais você! Não aguento mais sequer ouvir a tua voz! Só me esqueça, tá?!
Desligou o telefone e tentou se acalmar. Priscila conseguiu fazê-lo esquecer do constrangimento que havia passado poucos minutos atrás. Sua vontade era de atirar o celular no chão com toda força possível, mas desistiu, ele terminou o banho na base do ódio, e quando abriu a porta novamente, gelou; a mulher ainda estava lá, parada e ainda pálida.
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