V

Dormir no sofá não foi nada cômodo. Eram três horas da manhã e Thiago não conseguiu pregar os olhos; não parava de pensar em seu colchão fofinho e quentinho que estaria sendo usado e abusado por uma estranha, cujo nome e história ele desconhecia. Ele não era muito de fazer boas ações, e colocar uma estranha para dormir em sua casa passava longe de seus planos. Deitado, de barriga para cima, com as pernas penduradas para fora do sofá ele não parava de pensar em como seria bom dormir em sua cama confortavelmente e...

— A Priscila me mataria se soubesse que eu abriguei uma mulher... Por que estou pensando na "Prisquila"...? Arghhh, sai da minha cabeça, louca! Quando o dia amanhecer terei muita coisa para fazer e...

Antes de terminar de proferir seus pensamentos em voz alta, a porta do quarto é aberta vagarosamente, fazendo um leve ruído. Thiago olha por cima do encosto do sofá e vê, na penumbra, a silhueta da moça e institivamente diz:

— Desculpa, eu te acordei? Bom... é que eu moro só e acho que me acostumei a conversar sozinho, mas prometo que vou ficar em silêncio agora – ele falou levantando-se do sofá.

— Eu não estou conseguindo dormir.

— Eu vou parar de conversar... é uma mania que eu tenho, mas eu vou me controlar...

— Não... Não é você... é que... o colchão...

— É desconfortável? Duro? Já sei, aquele "cocho" no meio incomoda né?! Eu vou virar o lado e... – disse enquanto acendia a luz da sala e seguia em direção ao quarto.

— Não, não é isso...

— É o quê? Talvez seja o lençol, eu posso trocar. Tem um limpinho em cima do guarda-roupa. Eu esqueci de trocar o forro... foi mal.

— Não! É que é muito macio.

— Como?

— O colchão é macio demais, por isso eu não estou conseguindo dormir.

— Como assim? Tem certeza que não é porque a fronha está com um cheirinho estranho, faz quase um mês que eu não troquei... – coçou a cabeça – Pode ser isso... Estes dias aconteceram muitas coisas e eu acabei esquecendo de trocar. Minha mãe me ensinou que quando temos visita é falta de educação não trocar a roupa de cama, mas é que eu normalmente não tenho visitas para dormir e... bom... não é todo dia que aparece uma garota-fantasma dentro do meu guarda-roupa, sem nome e sem história, a minha cabeça ficou meio bagunçada com tudo o que tem acontecido comigo este últimos dias e...

— Thiago?!

— O quê? Oi?

Ele arregalou os olhos e colocou as mãos sobre a boca um instante e completou:

— Mil desculpas moça, sem perceber eu acabei magoando seus sentimentos. Acho que é porque eu trabalhei o dia inteiro, e estou até agora sem dormir, além do mais tomei uma cerveja com o Marcus e parece que só vim ficar bêbado agora... – riu sem graça.

Ela olhava para ele com as sobrancelhas arqueadas tentando entender as palavras que Thiago dizia apressadamente.

— Na verdade – disse ela – não é nada disso, é que eu não me lembro a última vez que deitei em um colchão, ou se já dormi em um.

— Onde você estava dormindo?

— No seu guarda-roupa.

— Isso eu sei – riu.

— Tem uma praça com um relógio grande... umas ruas próximas dali... escondida, porque eu estava com medo de alguém me fazer algum mal. Você não imagina como a noite é assustadora.

— Quanto tempo você passou na rua? – Perguntou-a demonstrando pena em seu tom de voz.

— Eu não sei exatamente, eu acho que não estou tendo muito a noção de tempo.

Ele abaixou a cabeça e encarou os pés descalços dela, estavam surrados, cheios de calos e feridas, as unhas sujas e compridas denunciavam que havia um tempo razoável que ela vagava solitária pelas ruas. Thiago passou a observar mais atentamente a pele de suas pernas e braços e percebeu uma visível aspereza e manchas de queimadura solar. Os lindos lábios vermelhos que ele havia visto anteriormente na verdade eram vermelhos por estarem repletos de rachaduras, e seus longos cabelos escuros estavam embaraçados, claramente sujos e ressecados. Seu coração partiu ao ver nitidamente o sofrimento pelo qual aquela garota tão pequena e frágil tinha passado. Naquele momento ele decidiu que dedicar-se-ia a ajudá-la.

Thiago se perdeu no tempo, em seus pensamentos...

— Oi... tá tudo bem? – Ela perguntou.

— O que eu posso fazer por você? Para você conseguir dormir?

— Tem problema eu dormir dentro do guarda-roupa? Lá é quentinho e tem uma porta, fica tudo escuro quando fecha e não é macio.

— Você se sente mais segura lá?

Ela assentiu com a cabeça.

— Tudo bem, faça o que achar melhor.

Ela deu as costas lentamente, entrou no guarda-roupa e fechou a porta. Thiago ficou parado observando a cena, sentindo seu coração partir mais uma vez. Seu pai dizia que homem não podia chorar, por isso Thi sempre tentou reprimir sua tristeza, engolir o choro e mostrar-se forte em qualquer situação, mas ali, sozinho, ele permitiu que as lágrimas rolassem em seu rosto, e se sentiu mais homem e mais capaz de ajudar aquela mulher porque decidiu que ele sim, choraria o que fosse preciso para que conseguisse colocar um sorriso nos lábios daquela desconhecida.

A porta do guarda-roupa rangeu novamente e ele apressou-se para enxugar as lágrimas no rosto, ela abriu uma brecha e falou:

— Será que... – hesitou.

— O quê?

— Você poderia dormir na sua cama?

— Como?

— É que... e se alguém entrar pela janela?

— Não se preocupe, ninguém vai entrar.

— Mas... eu entrei na sua casa e você não notou.

Thiago coçou a nuca e abriu um sorriso forçado.

— Tudo bem, já que insiste. E por falar em entrar... depois que te encontrei no guarda-roupa, você desapareceu, para onde você foi? Como você saiu e voltou novamente?

Ela abriu um pouco mais a porta, pôs o braço para fora e apontou para a janela.

— Eu tive medo de você me machucar, mas eu não queria voltar para a rua, então eu fiquei me escondendo, você é grande, eu quero dizer alto, e estava daquele jeito lá... – virou o rosto tímida.

— Daquele jeito lá... como? Não entendi.

— Você veio aqui descoberto...

— Ah! Entendi, deixa pra lá. Esqueça os detalhes, por favor. Onde você dormiu?

— No guarda-roupa.

— Como assim? Como você entrou novamente? Eu lembro claramente que fechei a janela.

— A porta dos fundos ficou destrancada, eu entrei e dormi no guarda-roupa.

— Parece que eu tenho um problema sério com trancas – pensou alto. – Boa noite!

— Boa noite!

Thiago deitou-se em sua tão sonhada cama, mas não se sentiu nada confortável, a situação era complicada. Não pregou os olhos o resto da madrugada e morria de vontade de espiar a "fantasminha" para saber se ela havia conseguido dormir, mas sabia que poderia assustá-la.

Antes do dia clarear ele se levantou e preparou um café-da-manhã "farturento", não para agradá-la, mas para saciá-la. Correu até a vendinha da dona Geralda que sempre abria cedinho e comprou vários produtos de higiene e cuidados pessoais, e deixou tudo em cima da cama com um bilhetinho escrito: "para você!". Pôs a mesa, e não demorou muito para ela estar de pé, ambos estavam com olheiras enormes. Os cabelos dela estavam limpos e desembaraçados, a pele parecia menos áspera. Ao observar tudo o que ele havia preparado, a moça entrelaçou os dedos e abaixou a cabeça. Ele perguntou:

— Você viu suas coisas na cama? – Ela assentiu com a cabeça.

— Muito obrigada! – Respondeu dando olhadelas para a mesa.

— Não gostou? Quer que eu prepare outra coisa?

Ela negou com a cabeça e foi saindo da cozinha de fininho. Ele seguiu-a e perguntou mais uma vez:

— Quer que eu prepare alguma coisa específica para você? Eu fiz alguma coisa errada?

Ela virou-se e com os olhos marejados respondeu:

— Eu nunca vi tanta comida assim... Você está cuidando de mim... Eu não sei quem eu sou... E se eu for uma pessoa ruim? E se eu te machucar?

— Tá tudo bem, – riu – eu sei que você nunca me machucaria, mas se isso vier a acontecer também não teria problema. Eu quero apenas te ajudar, e enquanto eu te ajudo a encontrar tua família vou cuidando de você do jeito que posso.

Ele não poderia faltar ao trabalho mais uma vez na semana sem uma justificativa plausível e o doutor Arnaldo certamente não acreditaria na história da desaparecida, na verdade, até Marcus duvidaria se não visse com os próprios olhos, então, enquanto tomavam café ele combinou que iria trabalhar, mas que arrumaria uma desculpa para voltar para casa ao meio-dia com roupas apropriadas para ela e logo em seguida iriam para a DPD.

A manhã foi terrivelmente longa para Thiago, ele não contou nada para Marcus e de 5 em 5 minutos olhava para o relógio, mas as horas não passavam e para completar, às 10h30 doutor Arnaldo inventa uma reunião com todos os advogados. A reunião foi se prolongando e ele não sabia o que fazer para escapar. Aproximava-se do meio-dia e Marcus, percebendo a agonia do amigo, discretamente, enviou-lhe uma mensagem de texto:

— O que é que tá rolando, cara? Tu tá mais agoniado que cachorro com carrapato... sossega!

— Eu tenho um negócio para resolver - respondeu.

— Diz aí o que é.

— Agora não dá.

— Beleza! Deixa comigo!

Thiago, confuso, olhou para Marcus que piscou o olho e sorriu maliciosamente.

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