IX

Os planos de Thiago foram por água abaixo assim que batidas fortes no portão insistiram em atrapalhar o café-da-manhã.

— Thiaaaaago!

A voz de Marcus ecoou por todos os cantos da casa assustando a pobre Aline. Ao atendê-lo, Thiago fez de tudo para impedir a entrada do amigo, mas esta era uma missão impossível, pois ninguém impediria Marcus de fazer o que ele quisesse e ele estava disposto a conhecer a tal fantasma.

Ele não apenas entrou na casa, como tentou adentrar cômodo por cômodo, sendo impedido pelo amigo:

— Marcus, queira se sentar, por obséquio – disse Thiago tentando contê-lo.

— Cadê ela? – Sentou no sofá ainda buscando vestígios da moça.

— Velho, eu não estou acreditando que você saiu de sua casa para isso.

— Você me conhece muito bem, cara – riu.

— Marcus... você mora em Sobradinho... São 8 horas da manhã!

— Esqueça os detalhes – riu debochado – e me apresente sua fantasminha.

Ela apareceu na porta que dá para a cozinha e seguiu lentamente na direção de Thiago, como se buscasse proteção. Marcus engoliu em seco ao pôr os olhos nela, deixando-a totalmente sem jeito. Thiago então perguntou:

— Está satisfeito? Agora você acredita?

Marcus se levantou do sofá e foi na direção dela no intuito de tocar em seu rosto. Automaticamente ela buscou refúgio atrás de Thiago que interceptou o amigo, segurando-lhe o braço.

— Hei, velho! Não é bagunçado assim não! Calma lá!

Aline segurou firme na camisa de Thiago e recostou sua testa nas costas dele.

— Mil desculpas, moça. – Marcus se conteve - É que eu fiquei bastante empolgado ao ver você pessoalmente. Thiago me falou tanto de você... de sua aparição sinistra no quarto dele, e toda aquela história de perda de memória que eu não pude segurar minha curiosidade, e você é tão bonita que nem parece ser real.

Ela não se soltou de Thiago que a acalmou:

— Tá tudo bem! Ele é doido, mas não morde – riu.

Ela foi entortando a cabeça devagarinho por trás do braço esquerdo de Thiago, afastando-se dele pouco a pouco, e Marcus acompanhava cada movimento dela como se fosse um geólogo analisando fluidos da crosta terrestre.

— Oi... meu nome é Aline – disse estendendo a mão para Marcus.

— Prazer, sou Marcus, amigo de Thiago. – Retribuiu o gesto e abriu um sorriso generoso – Parece que você está recuperando a memória... até se lembra do seu nome.

— Na verdade... este nome foi escolhido pelo Thiago.

— Ah, entendi. Ter uma identidade é importante! – Respondeu sorrindo.

Thiago convidou-o para o café e contou tudo o que havia acontecido naqueles dias e depois pegaram carona no carro de Marcus até a Avenida Comercial para comprar roupas novas para Aline. Durante o trajeto, que não era muito longo, Marcus repetiu que "só a bexiga" o quanto Thiago foi burro em ajudar na compra do carro de Priscila e consequentemente ficar a pé, e que ele deveria providenciar pelo menos uma bicicleta; a moça ficou o tempo todo calada.

Marcus não desgrudou dos dois: entrou nas lojas com eles, deu palpite nas roupas e até ajudou a pagar algumas coisas. Em um dos momentos em que Aline entrou no provador, ele aproveitou e soltou para o amigo:

— Estou feliz por você, cara! Finalmente apareceu uma pessoa que te faz sorrir de verdade! – E abraçou Thiago.

Ao finalizar as compras Thiago quis levá-la para o Parque da Cidade, mesmo sabendo que não ficariam sozinhos, pois Marcus se encantou por Aline e estava decidido a passar o dia inteiro com eles e ainda deu a desculpa:

— Você finalmente se livrou da "Prislouca"! Temos que comemorar! Faz muito tempo que espero a oportunidade de passar um dia com você, "macho véi"!

Thiago, apesar de preferir estar à sós com sua fantasminha, gostou da ideia de ter Marcus por perto porque a carona estava garantida. Acabaram se divertindo bastante, Marcus arrancou diversas gargalhadas de Aline e até provocou ciúmes no amigo. Depois do piquenique, ao invés de andar de kart, optaram por brincar no parque de diversões, pareciam cachorros quando veem o portão de casa aberto, de tão animados, nada poderia estragar um dia tão maravilhoso... exceto, Priscila.

Assim que chegaram no Conjunto Nacional para almoçar, esbarraram com Priscila, que havia acabado de platinar os cabelos e estava com um monte de sacolas nos braços, parecia até que havia ganhado na loteria e se esbaldava em compras.

Priscila não se conteve ao ver Thiago andando de mãos dadas com outra mulher, pois ele fazia questão de segurar a mão de Aline por medo de perdê-la no meio do aglomerado de pessoas. A louca jogou as compras no chão e partiu furiosa na direção de Aline que, assustada, segurou firme o antebraço de Thiago e tremeu, este por sua vez, ao perceber a aproximação de Priscila abraçou Aline protegendo-a dos avanços coléricos da ex.

Marcus interveio, e acabou sendo todo arranhado na tentativa de segurar os braços da doida. Muitas pessoas juntaram para ver e filmar o escarcéu até que os seguranças do shopping apareceram e conseguiram controlar a situação. Depois de imobilizada, Priscila, enfurecida, iniciou uma sequência de xingamentos absurdos, ela estava totalmente descontrolada. As pessoas ao redor não sabiam ao certo o que estava acontecendo, e muitos esboçavam cara de surpresa, outros davam gritinhos de incentivo àquela cena.

Thiago aproveitou que a ex-namorada estava imobilizada e cobrindo o rosto de Aline buscou refúgio em uma das lojas. Marcus continuou lá, a postos, pronto para ajudar a imobilizar a louca novamente, caso ela conseguisse escapar dos braços dos seguranças.

Priscila estava transtornada, parecia um furacão, e pouco se importava com as pessoas filmando a cena, continuou a gritar xingamentos e a espernear feito um pinscher raivoso. Marcus recolheu as sacolas dela do chão e começou a conversar serenamente com ela, tentando acalmá-la, o que acabou funcionando, pois, sua lábia para advogar não é lá grande coisa, mas para ludibriar as mulheres é um talento e tanto!

Na primeira oportunidade Marcus colocou Priscila em seu carro e a levou para casa, a fim de mantê-la o mais longe possível de Thiago e de Aline. No caminho ele não poupou palavras para mostrar o quão insensata ela havia sido ao armar aquela cena, em contrapartida ela tentava justificar seus atos:

— Marcus, são 6 anos de namoro, não termina de um dia para o outro!

— Acorda, mulher! Foi você mesma quem terminou o relacionamento de vocês! E outra... você sabe muito bem que faz tempo que não existe mais nada.

— Quem é você para dar "pitaco"?

— Oh, sua louca, eu por acaso sou o melhor amigo do Thiago e o conheci muito antes de você aparecer. E quer saber? Você estragou a vida dele! Ele perdeu 6 anos investindo em um relacionamento fracassado porque ele realmente te amava. Mas ainda há esperança para o coitado, então se você ainda sente alguma coisa por ele, faça um favor: deixe-o ser feliz!

— Quem é aquela "periguete", hein?

— Oh "Prissicopata", você ouviu alguma coisa do que eu disse?

— Você me chamou de quê?

— "Prissicopata"! Porque é isso que você está demonstrando ser, sua louca!

— Argh! Não dá pra ter uma conversa contigo!

— Não dá?! Hei, fui eu quem fez um escândalo no shopping porque viu o ex-namorado com outra? E a propósito, fica longe daquela menina, tá!

— Deixe que da minha vida e das minhas decisões cuido eu. Fica fora disso!

Marcus decidiu não prolongar mais o diálogo, pois percebeu que seriam apenas palavras ao vento.

Enquanto isso, dentro da loja, Thiago confortava Aline que ainda estava confusa com tudo que aconteceu. Alguns curiosos tentavam bisbilhotar os dois, mas Thi fez de tudo para proteger a integridade da moça, afinal de contas ela não tinha culpa de absolutamente nada. Ela, apesar de assustada, demonstrava preocupação com Thiago que apresentava escoriações nos braços e no rosto, consequência das unhadas da "Prislouca". Assim que as pessoas se dispersaram e tudo voltou à normalidade no shopping eles desceram para a Rodoviária do Plano Piloto e pegaram um ônibus de volta para casa. Quando eles já estavam quase chegando em casa, Marcus liga informando que já havia deixado Priscila na casa dela em segurança e que ele mesmo já estava a caminho de casa.

Era para ser um dia maravilhoso para todos, no entanto, nem puderam almoçar no quiosque por causa do desvario de Priscila, então quando chegaram em casa Thiago improvisou um almoço para os dois. Aline, que apesar de cabisbaixa, tentava ajudar, porém acabou descobrindo que não levava muito jeito na cozinha. Thiago, percebendo o olhar triste e preocupado da moça, tentou animá-la:

— Você não teve culpa nenhuma sobre o que aconteceu, Aline. Na verdade, eu sou o único culpado disso tudo! Desculpa!

— Não! Você não tem culpa! E ainda ficou todo machucado – disse ela com voz triste.

— Isso aqui – apontou para os próprios braços – não foi nada! Ela já fez coisa bem pior, – riu – então pode-se dizer que eu estou acostumado a levar porradas da vida.

— Pior?

— Pois é! Entre outras coisas, ela me deu um tapa em público, não doeu em meu rosto, mas feriu meu orgulho e machucou minha alma...

Aline abaixou a cabeça e cerrou o punho. Thiago entortou a cabeça analisando a expressão no rosto da moça e achou fofo. Aproximou-se dela e tocou sua mão, massageando-a suavemente.

— Mas tudo isso acabou! Eu estava hibernando, mas alguém muito especial está me ajudando a acordar!

Ela arregalou os olhos fixando-os em Thiago. Ela entendeu o recado! E estava se sentindo feliz!

Quando o almoço ficou pronto Thiago brincou:

— Hoje vamos comer comida russa: "rozcovo" – berrou apontando para as panelas de arroz e de ovos mexidos.

Ele estava feliz, apesar de seus planos terem dado errado. Ele estava reaprendendo a ser feliz, apesar de qualquer incidente. Ela completava-o.

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