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As fagulhas do pescoço apagaram, Mariana estava ofegante, tentando soltar acabeça dos dedos de ferro, suas unhas ainda arranhando a lataria que nãointensificava o aperto. Na folga mínima que conseguiu, forçou a cabeça para
longe, os dedos metálicos deixaram trilhas vermelhas no rosto, os óculos caíramno chão envernizado.

Segundo meu relógio, tudo durou vinte segundos. Mariana xingava tocando naspartes ardidas do rosto enquanto catava as partes dos óculos e lentes quesoltaram:

— Vá pegar fita adesiva!

Levantei e fui ao seu quarto pegar o rolo na gaveta, ele ficava sobre uma fotovelha de Mariana e um rapaz semelhante. Gêmeos como os filhotes de babuínos.

Mariana respirava fundo ajoelhada no chão, o robô de pé com a parte traseira dacabeça aberta e com o processador-mãe na palma dela, dei a fita, ela juntou aspartes dos óculos e os colocou. Olhou para o processador enferrujado e xingou.

— Mariana.

— O quê? — Se pôs de pé de frente para o modelo, analisando-o.

— Há um erro grave, robôs não podem ferir humanos.

— É. — Ela nem me olhou, já desenrroscava os parafusos dos pulsos, capturadapela fiação abaixo.

— É o autômato de serviços gerais do bar.

— Modelo Auxiliar 89.

— Eles se livraram dele. — Eu não entendi o contexto do verbo livrar na frase.

— Provavelmente o espancaram. — Puxou as mãos soltas e as jogou na cama.Meus dados sobre as perturbações na lataria indicavam o que ela disse. — E nãoo desligaram direito.

— Você disse que não podem ser desligados.

— Os modelos antigos podem. — Retirou os braços. — Esse é muito antigo, ficouem stand by e seus circuitos deram curto, o processador não foi refrigerado e oscomandos enlouqueceram.

Refrigerar. Era um modelo muito antigo, fiz os cálculos tinha quatro vezes maisvida útil que Mariana.

— Por que não foi substituído?

— Robôs são caros. — Ela removeu os pinos que seguravam a cabeça das
clavículas, a rodou sobre o eixo, fez-se um clique e a puxou junto com o sistemanervoso. — Não recebem salário, mas é difícil comprar um. — Segurava a cabeçae desatarroxava os olhos.

— O que é salário?

— Tem um livro de verbetes na sala. — Caminhou até o interruptor cinza eacendeu a lâmpada do quarto, observava a lente azulada contra a luz, a cabeçadele ainda na mão junto dos cabos negros da coluna.

— Ele me chamou de povo.
Abaixou a lente azul e me olhando atrás dos óculos disse:

— Eu disse que senso de coletividade era um erro. — Analisou a outra lentetambém a erguendo. — Lembre-me de na quarta-feira ativar seu senso de reaçãode urgência.

Adicionei o lembrete à minha lista interna assim como adicionei a questão decomo um modelo tão antigo poderia ter senso de coletividade programaexclusivo dos recentes autômatos?

Os três dias seguintes passaram seguidos de uma rotina de Mariana que sebaseava em desmonte detalhado do autômato, análise e limpeza deprocessadores pela manhã, revisão de memória pela tarde aliada de leituras de
manuais e arrotos de pastel de carne que ela comprava quando anoitecia edurante a noite fagulhas de solda voavam pela noite.

— Mariana.

— O quê? — Uma mão segurando a página que lia do manual aberto e na outra ocopo de ervilha com caldo de cana pela metade.

— Minha pesquisa sobre salário me levou a palavra soldo que me levou a palavrasal e…

— Resuma a história. — Lia página marcada bebendo da bebida escura.

— Me levou ao povo romano, percebi que não há discos sobre História da
Humanidade.

— E? — Passou para a outra página.

— Eu gostaria de preencher esse buraco para isso eu precisaria me conectar à…

— Não. — Deixou o copo de lado e pegou o pincel hidrocor sem tampa e marcoumetade de uma frase. — É só isso? — Escolhia outra para marcar, pronto.

— Você tem que ativar meu senso de reação de urgência.

— Isso é só na quarta.

— Hoje é quarta.

— É? — Um vinco confuso surgiu entre as sobrancelhas, o rosto dela tinhamarcas roxas de dedos, olhou para o calendário na tela com as memórias doautômato. — É. — Bateu o copo na mesa. — Venha cá.

Ela abriu o painel nas minhas costas e digitou o código, ficamos minutos paradaslá, partes do 89 estavam espalhadas pela mesa, partes rústicas, primitivas eenferrujadas.

Meses se passaram e mais 89 instalações foram concluídas emmim, todos os discos sobre o Reino Animalia e os outros reinos foram lidos,Mariana transformou o autômato em um conversor de energia mecânica em
elétrica.

— Não vou pagar porra nenhuma. — disse no dia que o inaugurou.

Agora não restringia mais o seu uso aos aparelhos elétricos, mas não estavasatisfeita, Mariana nunca estava satisfeita, me questiono se todos os humanossão assim. Então, um dia ela saiu sem qualquer anúncio, ela também nunca
anunciava nada.


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