2
Não demorou para chegarmos em casa, Mariana largou o casaco no sofá comprotetor plástico e almofadas de crochê. Apertou o interruptor e a bomba d’águasubmersa no rio fez vibrar toda a casa. Eu não vibrava, além da minha voz nãohavia outro ruído que partisse de mim. Mariana pegou a toalha pendurada no varal perto da rede e se trancou no banheiro.
Escolhi um dos discos do engradado vermelho. Eu estava na letra B do ReinoAnimalia. O coloquei na abertura atrás da orelha e as imagens se abriram perantemim.
Qual a sua nota para os… Será que ela vai conseguir se reencontrar com a família?Trazemos hoje o grupo de pagode… Bem-vindos ao Plantão News, seu programade informação mundial.
Descartei as imagens dos babuínos de bunda-vermelha das lentes. Passei trêshoras, quatro minutos e trinta e dois segundos nas narrativas sobre o ReinoAnimalia, no exterior anoitecia, as telas verdes mosquiteiras haviam sidobaixadas, Mariana segurava a alça da xícara de porcelana sobre a coxa enquanto
sentada displicente no sofá encapado, os óculos refletindo o telejornal.
Os autômatos tomaram a terceira fábrica da grande ABC Paulista, especialistastemem a produção em massa de novos modelos, forças do Batalhão deOperações Especiais já foram ordenadas para o local.
Mariana abafou o riso amargo de desprezo:
— Grande ideia. — Riso amargo de desprezo, li em um dos 72 livros físicos dela. —
Mandar mais robôs. — Bebericou do fumegante café preto. — Muito bom. —Concordava presunçosa enquanto melava o pão na bebida. — Muito bom mesmo.— Enfiou na boca e mastigou.
O homem caucasiano narrava as notícias com a cabeça levemente inclinada emãos sobre a bancada para dar seriedade aos outros humanos quanto às
notícias.
— Por que não desligam os robôs? — quastionei.
— Você consegue se desligar? — Ela me olhou sob os óculos redondos e olheiras.
— Não.
— Por isso. — Voltou a encarar a tela slim da televisão. — Eu disse que era burricecolocar um sistema que só desligasse quando acabasse a fonte de energia.
— Todos têm?
— Sim.
— Então em algum momento eles desligarão. — A matéria mostrava os robôsespreitando a janela da grande fábrica.
— Sim, daqui a três anos.
Especialistas suspeitam de vírus transmitidos através das redes mundiais…
— Bobagem. — Mariana terminou o pão.
— É uma possibilidade lógica.
— Bobagem. — Repetiu. — Dar à eles, esses novos, senso de coletividade foi oerro, não a internet. — Levantou e fez o gesto que desligava o aparelho.
— Se não é a Internet, posso me conectar à ela?
— Não. — Colocou a xícara vazia na pia e encheu de água. Sacudiu as mãos e as
enxugou no pano de prato. — Estou no quarto dormindo, não me incomode.
Ela entrou na porta ao lado da do banheiro, ela não dormiria ainda, eu podia ouviratravés da madeira suas reclamações e xingamentos enquanto trabalhava.
Duas horas e quarenta e dois minutos da manhã ainda saíam sons de trabalho doquarto, eu já tinha assistido ao filme que passava na sessão coruja. Desliguei atelevisão, olhei a xícara na pia, às três da manhã, Mariana voltaria para comer
bolachas de água e sal e tomar cachaça de maçã. Ela não escondia que fazia,também não escondia a garrafa térmica que sempre estava no bolso do casacojunto com o bloco eletrônico de anotações.
Fui ao meu quarto, abri a janela, o vento frio sussurrou nas fibras de carbonoonde seria meu rosto ainda não completamente configurado esteticamente.Deitei na cama, podia ficar em pé durante três anos como Mariana disse emesmo depois continuaria de pé, a cortina branca balançava e balançava.
Acessei minha memória quase vazia, a primeira lembrança era Mariana de pé emminha frente, falando os códigos de inicialização para minha cabeça suspensapelos cabos da mesa de trabalho dela, minhas outras peças desmontadas emisopor nas caixas espalhadas pelo quarto. Minha tela lendo as digitais dela e permitindo que o resto do corpo se juntasse.
Se apenas humanos poderiam iniciar autômatos como os da fábrica pretendiamfazer mais?
Dedos mecânicos agarram a janela, fechei as memórias, olhos fluorescentes me
encararam:
— Povo. — A voz eletrônica saiu do microfone vermelho. Ele jogou seu corposobre o meu, fagulhas saíam da ligas dos pescoço. — Povo.
— Que droga é essa?! — Mariana escancarou a porta do quarto.
— Não é povo. — Ele ergueu o rosto cilíndrico para ela. Levantou num salto e pôsas mãos de ferro ao redor da cabeça dela, os óculos entortaram e partiram aomeio.
Ela morreria como os babuínos?Humanos morriam como babuínos?
As unhas de Mariana arranhavam sua lataria desbotada.
— Não é povo. — Logo os dedos a perfurariam como uma melancia.
— Comando 369-DGF-TYO 2067!
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top