Capítulo XI
Aquela que queria fugir
Perder alguém nunca é fácil, mas perder uma pessoa que você ama para os braços da morte é dilacerante. Não há como virar a ampulheta e retroceder o tempo e você sabe que mesmo que peça, implore e grite para qualquer que seja a entidade divina, eles não atenderão ao seu chamado.
Dizem que as boas lembranças podem ser um conforto nesses momentos de perda, mas, em alguns casos, elas são piores do que balas atravessando o seu coração.
Dói lembrar do cheiro, da risada, da voz, da forma como se sentia entre os braços daquela pessoa e é insuportável saber que nunca mais verá seu sorriso nem ao menos compartilhará alguma conversa trivial. Você grita aprisionado dentro dessa bolha de dor, chora até não ter mais lágrimas, mais no fim, só resta o vazio e a certeza que daria qualquer coisa para ter pelo menos alguns minutos a mais com aquele alguém.
— Princesa, vamos entrar — disse Liliane colocando delicadamente sobre os ombros da menina uma manta grossa. — O tempo está esfriando.
Alydiana não moveu um único músculo. Estava sentada encolhida contra uma parede da sacada enquanto encarava o sol colorir o céu em tons de laranja, vermelho e dourado.
— A senhorita também deve comer alguma coisa — falou ajoelhando-se ao lado da menina. — Você comeu apenas um pouco de mingau no almoço. — Ela acariciou delicadamente os cabelos negros. — Trouxe uma sopa bem leve e mais tarde haverá bolo de cenoura com chocolate como sobremesa. — A princesa não reagiu, o que fez a preocupação de Liliane se agravar.
A governanta sabia o impacto que a morte do Imperador teve não só na pequena princesa, como também em todo o Império. Era como se o mundo tivesse mergulhado em uma tormenta sem fim e, enquanto uns lamentavam verdadeiramente, outros se preparavam em meio as sombras para alcançarem os próprios objetivos.
Liliane temia que a ausência de Kaesar permitisse que a Corte Imperial usasse Alydiana em seus esquemas traiçoeiros.
— Minha princesa, por favor, vamos entrar. — A menina continuou encarando o horizonte. — Senhorita, Vossa Majestade Imperial não gostaria que...
— Não — Alydiana a interrompeu em um rompante e a encarou austera. — Não faça isso. — Liliane engoliu em seco ao ver que os olhos que antes poderiam ser comparados aos rubis mais brilhantes se encontravam vítreos e desesperados. — Não diga o que meu pai gostaria ou não. Você não sabe o que ele faria.
— Princesa, eu...
— Entrarei daqui a pouco. — Alydiana voltou a encarar o horizonte. — Não estou com frio.
Liliane a encarou por alguns minutos antes de suspirar resignada e voltar para o quarto. Em momentos como aquele, considerava que talvez a melhor opção era deixar o tempo curar as feridas que a pequena menina carregava em seu coração.
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Alydiana encarava o mobile giratório sobre sua cama.
Quando seu berço foi substituído por aquela cama com dossel, Alydiana insistiu que o mobile fosse mantido. Sua insistência se tornou ferrenha ao saber que o próprio Imperador criou a mão cada uma dos bichinhos presentes no mobile.
— O que devo fazer, papai? — perguntou encarando o dragão cinzento balançar com a leve brisa que entrava da sacada.
Desde que aceitou que estava naquele mundo de fantasia, o plano era se afastar do Império e de qualquer ligação que possuísse com a Família Imperial de Aldrebrahäm assim que possível. Entretanto, isso foi relegado e esquecido.
— O que você acha que eu devo fazer? — indagou erguendo o pescoço apenas o suficiente para observar o homem que era mantido preso a parede pelas sombras do Montinho. — Bem, talvez você não seja esperto o bastante para responder a essa pergunta, já que veio aqui mesmo sabendo que todos os que vieram antes falharam.
— Filha do perjuro — o assassino cuspiu em sua direção, o que fez uma das sombras de Acrux apertarem o enlace ao redor de seu pescoço enquanto outro adentrava sua boca.
— Não — Alydiana disse voltando a encarar o mobile. — Sou a filha de Kaesar Melchior Aldrebrahäm. — Sorriu melancólica.
O corpo do assassino foi engolido pelas sombras negras. Era como se elas o devorassem e digerissem lentamente. Segundo o Montinho, a dor que aquele processo causava em suas vítimas era como ter um gostinho do que Dchib, a deusa devoradora, faria com suas almas após morrerem.
— Vamos voltar ao plano inicial — Alydiana disse cobrindo os olhos com o antebraço enquanto suspirava pesadamente. — Certo, vamos. — Estava exausta, mas, como não conseguiria dormir tão cedo, levantou.
Alydiana caminhou decididamente até seu closet e procurou uma das malas de viagem, que Kaesar e Liliane insistiam para que as mantivesse, mesmo que a princesa achasse desnecessário. Mas, agora, aquelas malas seriam cúmplices em sua fuga.
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Assim que Asterion firmou os pés no chão da sacada, sentiu seus músculos latejarem. Mesmo com o Império de luto, o Segundo Príncipe manteve seus treinos secretos. Ele acreditava que precisava ficar mais forte para o futuro incerto e para proteger sua família.
A porta da sacada estava entreaberta, o que o deixou em alerta. Sabia que a governanta da irmã jamais permitiria que a princesa dormisse em um quarto que não tivesse pelo menos três selos de segurança diferentes. Então, aquela porta aberta com toda certeza não era um bom sinal.
Asterion pegou os punhais em sua cintura e se preparou para enfrentar quem quer que estivesse no quarto de sua pequena irmã. Contudo, tamanha foi sua surpresa ao não encontrar ninguém além de Alydiana e duas malas pequenas a cama.
— O que você está fazendo? — perguntou guardando os punhais e sendo alvo de um olhar assustado.
Há semanas os irmãos não se viam. Desde que a princesa começou a buscar cuidados que servissem ao Imperador, ela passava a maior parte do tempo na biblioteca e trocava breves bilhetes com o irmão.
Asterion entendeu a ação da irmã e, mesmo que acreditasse que aquilo não curaria o pai deles - principalmente após os boatos sobre o seu estado de saúde se espalhar pela Corte como fogo em uma plantação, ele penas incentivou a irmã. O príncipe acreditava que aquilo era a forma como Alydiana tinha de aceitar que o pai estava em seus últimos momentos.
— O que você está fazendo aqui? — Alydiana rebateu. A última coisa que esperava para aquela noite era ter seu plano frustrado.
— Vim ver você — respondeu se aproximando a passos apressados. — Pra quê essas malas? — Ele alternou o olhar entre as roupas dobradas sobre a cama e as malas abertas.
A princesa desviou o olhar para qualquer outro ponto que não fosse sua face.
— O que você está fazendo, Aly?
— Eu... Eu estou... — a voz dela tremeu, a fazendo engolir em seco.
Alydiana não queria encontrar ninguém naquele momento. Queria terminar suas malas e sair o mais sorrateiramente possível. Deixaria uma carta para Liliane, agradecendo e explicando sua situação. Após muito pensar, ela decidiu que não faria o mesmo com Asterion. Deixaria para ele sua coleção de cartas que recebeu do Segundo Príncipe. Era o último laço a cortar com o Palácio.
— Você está fugindo? — Asterion perguntou preocupado. — Alguém tentou lhe machucar?
Ah, Ryon, se você soubesse quantos já tentaram, pensou Alydiana.
— Não é isso — ela falou encarando as malas fixamente. — Só está na hora de partir.
— Partir? — indagou confuso — Do que você está falando? — Se aproximou da irmã, mas ela se afastou. — Aly, pra onde você vai? O que vai fazer?
Alydiana não o respondeu, nem ao menos se dignou a olha-lo. Não sabia como responder as perguntas dele, só sabia que não suportaria passar mais um dia no Palácio. Não da forma que estava.
— Sei que a situação não é das melhores, mas as coisas vão melhorar depois que o Wolfram assumir o trono — Asterion disse. — E ele não vai machuca-la. Wolfram jamais faria isso.
Mesmo com toda a oposição da facção nobre de seu avô, Asterion acreditava que o Príncipe Herdeiro seria um Imperador tão bom quanto Kaesar. Mesmo que não convivesse com ele, sabia que Wolfram não machucaria Alydiana. E caso estivesse enganado, Asterion garantiria que ela ficasse segura.
— Você não entende — a princesa disse sentindo os olhos marejarem.
— Aly, papai não gostaria disso. Ele...
— Você não entende! — gritou com a voz embargada. — Dói, dói demais.
— Eu não entendo? — Aterion retrucou incrédulo. — Eu também perdi meu pai, Aly.
— Não, não é só isso — disse desesperada. — Eu...
— Não é só você que está sofrendo, Alydiana! — esbravejou. — Não é só você que está com o coração machucado.
— Você não entende — repetiu o encarando com a face banhada em lágrimas.
Ninguém entendia, nem mesmo ela. Era como sentir que enfim você caminhava decididamente pela estrada da sua vida e, de uma hora para outra, o chão simplesmente desaparecia sob seus pés. Nessa queda, não tem aonde se agarrar, não tem a quem chamar.
— Preciso ir embora — falou dando as costas para o príncipe.
Não havia nada que a prendesse naquele castelo. Na verdade, não havia nada que a prendesse naquele mundo.
— Aly, você...
— Volte para a sua família, Vossa Alteza Imperial. — Ela enxugou os olhos bruscramente.
— Você é a minha família! — Asterion disse exasperado. Ele andou a passos determinados até a irmã e a segurou pelo braço. — Agora, você é a única família que tenho — disse desesperado.
O golpe da perda de Kaesar, o homem que era considerado indestrutível e inabalável enfim pereceu e deixou para trás um rastro de glória e prosperidade, mas também de dor e sofrimento. Asterion perdeu aquele que admirava, que continuou ao seu lado mesmo com seu avô tecendo toda a teia de traições dentro da Corte. Perdeu o que iluminava a escuridão que sempre ameaçava lhe cercar e não admitiria perder aquela que lhe incentivava a continuar andando pelo caminho cheio de espinhos que levava a saída de sua gaiola dourada.
— Não vou perder você, Aly — murmurou com os olhos lacrimejados. — Por favor, não posso perdê-la também. — Alydiana cobriu a mão que segurava seu braço e encarou os olhos dourados atormentados.
— Não tem como perder o que nunca teve, Asterion Hadrian Aldrebrahäm.
Alydiana se afastou e o encarou friamente. Estava determinada a seguir seu caminho para longe daquele castelo, para longe de toda aquela dor. Apagaria todas aquelas memórias.
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Você o machucou, a voz do Montinho de Sombras soou pesadamente em sua mente.
Alydiana se encolheu dentro da capa que trajava e se forçou a continuar arrastando as malas pelo corredor mal-iluminado. Deveria sair do Palácio Safira antes que Liliane aparecesse para uma de suas rondas noturnas.
— Ele supera — murmurou determinada.
Sentimentos não são fáceis de lidar.
— Não há sentimentos — falou encarando de relance o jardim decrépito por um dos corredores externos.
Em uma de suas visitas, Kaesar lhe incentivou a começar a praticar a arte da jardinagem e cuidar do pequeno jardim que ficava em frente a sua sacada. Ele desejava ver como seria algo criado por sua filha.
— Asterion apenas refletiu em mim um relacionamento que gostaria de ter, uma família que sempre fantasiou e desejou — falou amarga. — Nada daquilo era pra mim. Nada nunca foi meu.
Alydiana empurrou a porta velha dos fundos da cozinha, vendo o caminho de seu novo destino aparecer diante de seus olhos. Mas, mesmo sabendo que estava se afastando da rota que lhe levava para a guilhotina, se sentia vazia.
— Então, o sentimentos de Kaesar também não eram para você, Alydiana? — o Montinho perguntou se materializando e impedindo sua passagem para o exterior.
Era a primeira vez que ele tomava uma forma semelhante a aparência humana. A luz do luar não permitia que Alydiana reparasse bem em seus traços e as sombras ainda cobriam parte de seu rosto e dorso. Mas, ela viu que seus cabelos eram negros como petróleo, seus olhos pareciam brilhar como lava pura e sua face carregava um tom diabólico, que fazia parecer que ele se divertia com o sofrimento dos outros. Mas, Alydiana sentia que ele não via qualquer divertimento diante da massa de sentimentos confusos que ela era.
— Me diga, Alydiana, era tudo uma encenação? — perguntou austero. — Eram apenas atos de um roteiro sendo seguido? Palavra por palavra? — Ela apertou as alças das malas.
Para ela, não era impossível que aquilo fosse apenas os acontecimentos do livro que lera antes de morrer como Vívian Spatiele. O destino que lhe foi escrito queria lhe alcançar.
— Seu silêncio parece ser a resposta — o Montinho retrucou. — Mas, ainda há uma lacuna. Se os sentimentos de Kaesar por você eram apenas uma encenação — pressionou. — Então, os seus também eram? — Alydiana sentiu suas unhas cortarem as palmas de suas mãos. — Tudo o que você sentiu até agora, cada sorriso, cada risada, cada abraço, eram tudo fruto de um amor falso? Você nunca o amou e...
— Cala a boca! — a menina gritou largando as malas no chão e o encarando furiosa. — Você não sabe de nada! Por que você acha que eu estou assim? Por que acha que eu sinto como se cacos de vidro perfurassem meu coração todas as vezes que ele bate? Por que acha que eu choro toda vez que vejo, lembro ou penso em algo relacionado a ele? — Seu corpo tremia fortemente. — Ele foi a primeira pessoa que eu amei em toda a minha existência e agora o papai simplesmente sumiu!
Foi Kaesar que segurou sua mão pela primeira vez, que a ensinou a ver o mundo sobre outra perspectiva, que disse que ela deveria lutar por si mesma e procurar a própria felicidade. Seu pai a fazia se sentir segura, amada e querida. Kaesar estava disposto a lutar contra o mundo pelos filhos e sem ele era como se um pedaço do coração dela tivesse sido arrancado da forma mais cruel.
— Meu pai era imperfeito como qualquer outro ser humano — falou ente soluços. — Mas, para mim, ele é o melhor pai que eu poderia ter tido. — Ela colocou as mãos sobre o coração e as apertou.
Não poderia vê-lo. Nunca mais ouviria sua voz lhe chamando. Nunca mais poderia abraçá-lo ou implicar com ele pelos doces. Aquilo queimava como o inferno.
O Montinho de Sombras suspirou pesarosamente e se aproximou. As sombras embalaram o corpo miúdo carinhosamente.
— Não fuja, passarinho — disse a mantendo aconchegada contra seu peito. — Fugir não vai fazer a dor sumir, só vai fazer com que você sofra mais ao ver tudo o que perdeu ao sua vida para trás. — Ele começou a niná-la como a um bebê. — Lute contra cada um desses demônios. Nunca fuja e dê as costas para eles, isso seria o mesmo que oferecer o seu pescoço.
— Mas, dói.
— Dói e vai continuar a doer por muito tempo — falou melancólico enquanto entrava no portal de sombras. — Um dia, não será mais uma dor latejante. Mas, para isso, você precisa enfrentá-la. — Ele encarou a face da pequena menina e a apertou mais entre seus braços. O Montinho começou a cantarolar uma canção antiga e proibida no atual Império.
— Você também vai me deixar, Montinho? — Alydiana indagou sonolenta.
— Montinho — repetiu risonho. — Você não é nehnum pouco boa com apelidos, passarinho. — Ela resmungou baixinho. — Sou Acrux — murmurou a deitando delicadamente na cama. — Sempre que chamar esse nome, eu a responderei.
Alydiana assentiu levemente enquanto caia para o mundo dos sonhos, estava mental e fisicamente exausta. Acrux sorriu e depositou um singelo carinho em seus cabelos. Para ele, a pequena princesa era uma existência tão frágil que na menor alteração de seu poder a faria desaparecer entre suas mãos.
— O deus da calamidade e da destruição está ao seu lado, passarinho, então não há nada a temer.
Olá, docinhos!
O que acharam da atitude da nossa princesa? Lembrem que mesmo em sua vida passada ela sendo uma adulta, agora ela é uma criança.
O que acham que acontecerá com Alydiana agora que o Príncipe Herdeiro assumirá o trono?
Espero que estejam gostando e que continuem acompanhando ❤
{Curiosidade, Dchib é um anagrama criado a partir de HD 82943, substituindo os números por suas letras correspondentes no alfabeto e as rearranjando.
HD 82943 é uma estrela que acreditam ter devorado planetas do sistema solar que habita. Por esse motivo, no Universo de Aldrebrahäm, ela é considerada a deusa devoradora, aquela que se alimenta das almas que castiga e até mesmo do sofrimento de seus semelhantes}
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