Capítulo VI
Aquele que perdeu o coração
— Papai mal! — Alydiana disse com um bico nos lábios. — Papai malbado!
— Você ainda está chateada por aquilo? — Kaesar perguntou pegando o serzinho emburrado no colo.
— Aly não fala com o papai — falou decidida enquanto cruzava os bracinhos e virava a face para o lado oposto.
Naquela manhã, Kaesar havia aparecido na porta do quarto da pequena princesa e a sequestrado para o que ele considerava ser um tempo "pai e filha". A programação envolvia brincar e fazer um piquenique no jardim particular do Imperador, onde estariam longe o bastante de olhos curiosos e línguas venenosas e onde Kaesar poderia se sentir confortável para deixar Alydiana brincar livremente sabendo que a menina estaria segura. Além disso, mostraria seu lugar favorito a ela.
— Você realmente é um serzinho rancoroso, não? — disse pressionando a bochecha gordinha da princesa com seu indicador, mas ela manteve a expressão emburrada. Kaesar suspirou e sentou na grama com a pequena em seu colo. — Eu já pedi desculpas, não? — Ela continuou irredutível.
O Imperador mordeu o lábio inferior para controlar o sorriso de divertimento em seus lábios. Alydiana poderia ter apenas três anos, mas poderia ser tão rancorosa quanto uma velha matrona que havia organizado uma festa de chá, mas que teve seus convidados todos roubados pela sua nêmeses da alta sociedade.
— Você realmente passará o dia emburrada só porque eu comi o último pedaço do bolo de cenoura com chocolate que a senhorita LeBlanck fez? — indagou fingindo descrença e Alydiana lhe encarou com os pequenos olhos rubis esbugalhados e uma carinha que parecia dizer "Você tem a audácia de me perguntar isso?".
Kaesar escutou uma leve risada estrangulada a sua direita e se segurou para não revirar os olhos. Dryon Zheng, seu fiel braço direito, o Grande Marquês da Muralha de Ferro e Mestre Espadachim Espiritual, também conhecido como seu amigo mais próximo e confiável, estava se controlando para não rir de sua cara ao encarar o que parecia ser um sério problema de traição com sua pequena filha de três anos.
— Dryon, você não tem nada melhor para fazer? — perguntou travando o maxilar e encontrando os olhos safiras do amigo, que não se esforçou para disfarçar o sorriso divertido.
— Minha função é escolta-los hoje, Vossa Majestade Imperial — Dryon disse em seu tom mais inocente e despreocupado. — Não posso faltar com minhas obrigações.
Você está é se divertindo as minhas custas, isso sim, Kaesar pensou. Mas, não prolongou a discussão, pois tinha algo muito mais importante naquele momento.
Era a primeira vez que tirava Alydiana do Palácio Safira, pois queria que a pequena conhecesse algo além das dependências de sua morada, mesmo que fosse o espaço limitado de seu pequeno refúgio pessoa. O Jardim Secreto do Imperador, como muitos chamavam, consistia em uma estufa afastada da movimentação caótica entre os palácios e da presença traiçoeira da corte. Aquele lugar reunia várias espécies de flores e árvores, que faziam parte da pequena coleção de sementes que Kaesar colecionara de sua longo e tortuosa viagem pelo Continente. Sempre que batalhava contra outra nação ou acampava em algum vilarejo fazia questão de recolher algumas sementes de algum espécime da região e os plantava em sua estufa ao voltar ao Palácio Imperial. No fundo, acreditava que assim lembraria de cada um dos lugares pelos quais passou, das torturantes batalhas para defender a coroa em sua cabeça e o povo sob sua proteção e de todos aqueles que deram o sangue para que Aldrebrahäm se tornasse a grande potência que era na atualidade.
— Não fique assim, menina travessa — falou arrumando a Maria Chiquinha direita da filha. O prendedor de cabelo estava um pouco torto comparado ao da esquerda. Ao arrumar o penteado da pequena, ele fechou os olhos e depositou um leve selar nos cabelos da menina absorvendo o cheirinho de morangos de seu shampoo.
Mesmo de olhos fechados se manteve atento a movimentação ao redor. Nunca conseguia relaxar completamente. Mesmo que a estufa possuísse pedras de Turmalina, pedrinhas preciosas especiais que impediam que os dons assegurados pelo Elo com quase toda criatura existente pudessem ser utilizados, Kaesar se mantinha atento ao seu entorno. Queria ter certeza que Alydiana estava segura e esse era um dos motivos de Dryon estar ali. No caso de algum ataque, como o Imperador não usaria seu outro Elo, que era viável mesmo na presença da Turmalina, por medo de machucar a filha, Dryon os protegeria. Além disso, Kaesar queria que seu amigo mais próximo e querido conhecesse sua menininha. Mas, ele estava quase se arrependendo disso quando a voz risonha do meio lobo ressoou em sua mente graças ao Elo.
Não é todo dia que posso ver Vossa Majestade Imperial ser dobrado por uma garotinha de três anos, Dryon disse e, mesmo sem encará-lo, o Imperador sabia que o mesmo estava com um sorriso de orelha a orelha.
Deveria tê-lo deixado congelado do lado de fora das malditas Muralhas da Floresta Sombria, Kaesar rebateu fingindo irritação, o que só rendeu mais risadas da parte de Dryon.
O Imperador suspirou e encarou a pequena princesa em seu colo, ela já havia descruzado os braços e seus olhos curiosos estavam sobre Dryon, que vez ou outra a encarava sorrindo de forma amável. Fingido, Kaesar pensou puxando para perto a pequena cesta com flores buquê-de-noiva que colhera antes de levar a filha até a estufa.
Ele começou a trançar uma flor na outra delicadamente.
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Alydiana encarava Dryon atentamente.
Apesar do Marquês vez ou outra aparecer nos aposentos da pequena princesa para falar com Kaesar, quando o mesmo estava passando tempo com a filha enquanto ignorava qualquer que fosse a responsabilidade que não envolvesse desenhar com giz de cera e se assegurar que a pequena princesa não cairia enquanto corriam dentro do quarto, até aquele dia Alydiana não havia tido a oportunidade de observar o braço direito do Imperador cuidadosamente.
Dryon Zheng era o único em quem Kaesar confiava de olhos fechados e também era um dos dois Elos do Grande Imperador. Até onde se sabia, antes dele aceitar o posto de Marquês e de firmar um Elo com Kaesar, Dryon era um dos homens lobos mais fortes e sanguinários que trabalhava com um grupo de mercenários que viajava pelo Continente. Mas, talvez pela ação do Destino, o caminho do meio lobo e o do Príncipe Herdeiro Kaesar se cruzou e, desde então, seguiram juntos, lado a lado.
Avaliando cuidadosamente, a pequena princesa chegou a conclusão de que o Marquês era tão bonito e perigoso quanto seu pai. Dryon possuía cabelo azul escuro acima da orelha, orelhas lupinas da mesma cor no topo de sua cabeça, olhos azuis como o mar noturno e um sorriso parecido com o de um lobo que tentava se passar por uma pobre ovelha para devorar todo o rebanho. Ele era o tipo de pessoa que deixava os outros ao redor tensos pelo medo de cometerem algum deslize e tornar-se sua presa, mas, curiosamente, Alydiana não se sentia na mira de algum predador sob o olhar do mais velho. Na verdade, ela o via mais como um grande e confiável cão de guarda.
A princesa mordeu o interior de sua bochecha fofinha ao ver as orelhas lupinas se mexerem levemente quando as folhas das árvores se moveram devido ao sistema de ventilação artificial da estufa. Mas, logo sua atenção foi desviada quando algo foi colocado em sua cabeça. Ela dedilhou o objeto sentindo as pétalas macias de sua coroa de flores.
— Espero que minha doce Lily seja misericordiosa com esse velho pai e o desculpe pelo bolo de cenoura com chocolate — Kaesar disse depositando um selar demorado na testa de sua pequena menina quando ela lhe encarou com seus brilhantes olhos rubis. — Da próxima vez, não implicarei com seu bolo, tudo bem? — Ele sorriu docemente apertando a pontinha do nariz da filha, que suspirou baixinho.
Não estava chateada de verdade por causa daquilo. Sendo sincera, estava chateada por Kaesar ter passado quase um mês sem aparecer e do nada ter se materializado na porta de seu quarto naquela manhã e a arrastado para aquele passeio sem nenhuma explicação ou desculpa pelo sumiço repentino. Mas, Alydiana não diria isso, não mesmo.
Ela encarou de esguelha Dryon e se aproximou do Imperador para cochichar algo em seu ouvido. Após ouvir o pedido da menina, Kaesar gargalhou alegremente, o que fez a pequena ficar com as bochechas coradas e lhe dar um tapinha no braço.
— Vá em frente, minha menina travessa — ele disse bem-humorado.
Apesar do constrangimento, Alydiana inspirou profundamente e se levantou. A passos decididos ela andou até Dryon e parou em sua frente tentando imitar a postura altiva de Kaesar, mas, na visão dos dois homens, aquilo só a fazia de parecer com um pintinho tentando ser corajoso na frente de um lobo, ou seja, adorável.
— Tyon — ela chamou sentindo as bochechas corarem devido a pronúncia difícil. — Dyun. — Tentou novamente e tossiu para disfarçar o constrangimento.
Não gostava quando as palavras saiam emboladas e não conseguia se expressar corretamente. Além disso, tinha o receio de ser ridicularizada, pois, apesar de já possuir três anos e ter os maravilhosos Genes Imperiais, ainda tinha uma estatura pequena e frágil, além de não conseguir falar adequadamente várias palavras. Sendo que, segundo algumas criadas, quando os outros príncipes tinham sua idade, eles já sabiam falar adequadamente e até mesmo liam e escreviam. Nessas horas, Liliane espantava as criadas e pegava a princesa nos braços lhe assegurando que todos tinham tempos diferentes e que não havia nada de errado consigo.
— Sim, Princesa? — Dryon disse se ajoelhando na frente da menina tímida. — No que posso ajudá-la? — indagou sorrindo amável e naquele momento Alydiana acreditou que realmente era um sorriso doce.
— Aly pode pegar? — perguntou apontando para o topo da cabeça do mais velho, que assentiu mantendo o sorriso amável e inclinando a cabeça para ela conseguir alcançar suas orelhas lupinas.
Alydiana esticou as mãozinhas e pegou nas pontinhas das orelhas. A pelagem rala era macia, era como as orelhas de um bichinho de pelúcia, o que a fez se encantar ainda mais pelo meio lobo.
— Nossa cachorrinho é do seu agrado, Lily? — Kaesar perguntou sorrindo provocativo para o amigo, que manteve a expressão serena para não assustar o pintinho fofo em sua frente.
A pequena princesa mexia nas orelhas do mais velho analisando-o curiosamente. Era a primeira vez que tinha contato com alguém da espécie dos homens bestas e era incrível vê-los de perto. Alydiana sorriu ao ver quando as orelhas de Dryon se movimentaram quando ela apertou a ponta da cartilagem e riu baixinho quando fez um afago por trás das orelhas e a cauda dele balançou como a de um cachorrinho. Mas, antes que a menina continuasse sua exploração, as orelhas do Marquês ficaram em alerta e ela teve o corpo puxado para os braços de Kaesar, que a colou em seu peito de forma protetora.
Sentindo a tensão no ambiente, a pequena escondeu a face no peito do pai e segurou sua camisa. Se sentia segura embalada pelo calor dele.
Dryon se afastou seguindo uma trilha invisível enquanto farejava o ar. Ao voltar, o Imperador estava mais relaxado fazendo um carinho demorado nos cabelos rebeldes da filha, que observava os dois terem aquele tipo de conversa silenciosa com o olhar até Kaesar quebrar o contato visual e encarar a princesa com um pequeno sorriso nos lábios finos.
— Você logo o conhecerá, Lily — disse sorrindo pequeno. — Agora, vamos procurar a senhorita LeBlanck e ver que delícias ela preparou para o seu almoço.
Por mais que Alydiana quisesse perguntar sobre quem ele se referia, sabia que Kaesar havia dado aquele assunto por encerrado. Então, ela apenas se atentou em aproveitar a companhia do pai e de Dryon antes deles terem que partir para alguma reunião enfadonha.
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A primeira carta chegou dois dias depois do seu passeio pelo Jardim Secreto do Imperador. Bem, ela não denominaria exatamente aquilo como uma carta, pois era apenas uma folha de papel dobrada como um aviãozinho, que adentrou sorrateiramente o seu quarto através das portas abertas da pequena sacada. Vívian ficou por vários minutos encarando aquele papel até decidir por fim que era algo inofensivo, até porquê o Montinho de Sombras já teria lhe alertado se fosse alguma armadilha disfarçada.
Ela reparou primeiramente na caligrafia bagunçada, trêmula e, com toda a certeza, infantil. E, graças a Liliane e sua pequena obsessão pela literatura, Vívian entendia bem o suficiente aquele idioma e sabia ler algumas palavras, o que lhe permitia entender o contexto geral daquela pseudo carta.
"Venha até os jardins do Palácio Ágata. Hoje de tarde!!!".
Obviamente, Vívian ignorou aquilo e continuou seu dia como se nada houvesse acontecido. Mas, no dia seguinte, teve uma pequena surpresa ao receber outra pseudo carta.
"Por que você não veio? Eu não sou nenhum monstro! Também não sou uma bruxa que come crianças. Eu SOU uma criança. Espera, mas falando assim você vai pensar que eu sou uma bruxa tentando te enganar. Mas, eu não sou, juro pelas estrelas!".
Ela encarou a letra desengonçada por alguns segundos antes de amassar o papel e jogá-lo na lixeira. Porém, cinco minutos depois, outro aviãozinho adentrou o quarto e ela bufou o pegando ainda no ar.
"Você não sabe falar?".
Vívian bufou desacreditada querendo entender como seu remetente esperava que uma criança de três anos respondesse aquilo.
Apesar de estar curiosa, não queria dificultar sua situação dentro da história se envolvendo com mais pessoas do que aquelas de seu pequeno e seleto círculo, então, engolindo a curiosidade, ela fez aquela carta ter o mesmo destino que a anterior acreditando que o seu silêncio faria o remetente desistir.
Ledo engano.
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O Sol e a Lua faziam sua dança consecutiva, dia após dia, e os aviõezinhos chegavam um atrás do outro. O remetente insistente não era alguém que daria o braço a torcer com o silêncio de seu destinatário e todos os dias escrevia de forma apressada alguns acontecimentos bobos de seu dia. Vívian inconscientemente passou deixar as portas da sacada abertas assim como passou a guardar em uma pilha organizada as folhas amassadas na gaveta da cômoda ao lado de sua cama.
Ela ainda não havia contado a ninguém sobre as cartas e seu escritor misterioso. Apesar de não admitir, esperava ansiosamente pelas palavras atropeladas de seu remetente insistente e gostava de sentir que aquilo era algo que pertencia apenas a si. Então, um dia, quando o aviãozinho simplesmente não apareceu, Vívian tentou se convencer de que não se importava.
No terceiro dia de silêncio, ela sentou no chão da sacada e ficou observando o jardim morto do lado de fora. Liliane estranhou seu comportamento e tentou convencê-la a dar uma volta pelo Palácio Safira, mas Vívian negou e continuou fingindo brincar com algumas bugigangas que Kaesar havia lhe dado da última viagem que realizara. Por mais que tentasse negar para si mesma, sabia que estava ali com o único intuito de ver se seu remetente misterioso estava bem. Não admitiria em voz alta, mas estava preocupada.
O Sol se pôs e ninguém apareceu. Vívian tentou disfarçar a decepção em seu semblante, mas constatou que não havia sido bem sucedida quando o Montinho de Sombras apareceu e ficou em completo silêncio apenas deitado ao seu lado na cama enquanto acariciava seus cabelos.
Nunca havia esperado por nada e nem ninguém em sua vida, então ter aquele sentimento em seu peito era frustrante. Mas, não conseguia mais negar a si mesma a importância que aquela correspondência unilateral tinha para si. Era um laço invisível que parecia lhe puxar para mais perto da outra ponta a cada papel amassado e rabiscado.
Olá, docinhos!
O que estão achando da relação da nossa pequena princesa com o Kaesar? Quem vocês acham que é o remetente misterioso da nossa pequena princesa?
Espero que estejam gostando e que continuem acompanhando ❤
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