Capítulo V

Aquele que fez o inesperado


  Vívian estava mais uma vez se dedicando em sua empreitada de aprender a andar, mas os avanços não estavam vindo com muita facilidade. Prova disso era que aquela era a quinta vez que caia em apenas quinze minutos e agora seu queixo estava arranhado.

  — Princesa! — Liliane a pegou no colo rapidamente e limpou o arranhão com um lenço úmido.

  A menina realmente não entendia porque era tão complicado se manter em pé sobre as próprias pernas e dar alguns passos. Céus, eu já fiz isso antes, não é como se fosse impossível, pensou chateada.

  — Eu sei que você está ansiosa para andar, mas, não se esforce muito — Liliane disse encarando a face emburrada da bebê. Ela estava se controlando para não apertar as bochechas fofinhas. — Não é bom se machucar para alcançar seus objetivos.

  Vívian sorriu pequeno. Nunca se importou consigo mesma ou teve a si mesma como uma prioridade. Seu objetivo em sua vida sempre foi ganhar algum dinheiro para se manter e não importava o que tivesse que renunciar e nem se estava machucando a si mesma. 

  Era irônico como esteve matando a si mesma lentamente, dia após dia, tendo como objetivo de "viver".

  — Ela realmente não chora como um bebê — uma voz forte e melodiosa ecoou pelo cômodo.

  Os braços de Liliane ficarem tensos ao redor de Vívian, lhe puxarem para mais perto de seu corpo e deitou a cabeça do bebê em seu ombro. Era como se quisesse escondê-la entre seus braços. 

  Os ombros de Liliane tremiam levemente e ela inspirou profundamente. Vívian não viu muitas pessoas desde que nasceu naquele mundo, mas acreditava que aquele homem causava aquela mesma reação em todos aqueles que se atreviam a cruzar o seu caminho.

  Como todas as outras vezes, não teve a intenção de ir até ali, mas, como todas as outras vezes, lá estava ele parado na soleira da porta encarando o pequeno serzinho que tinha seu sangue. Ele já havia aceitado a muito tempo que não podia evitar que aquela espécie de afeto crescesse.

  — Vida longa a Vossa Majestade Imperial — a governanta disse se ajoelhando de forma desajeitada no chão. Kaesar sorriu ao perceber que ela parecia querer proteger a pequena princesa entre seus braços.

  Pelo visto, eu realmente fiz uma boa escolha, pensou satisfeito. 

  Meses antes, quando trouxe Alydiana para o palácio e anunciou que ela estaria baixo sua guarda até atingir a maioridade, seus conselheiros não ficaram nenhum pouco satisfeitos e muitos chefes das grandes famílias se opuseram ferozmente à presença da única Silvys restante no reino próxima aos Príncipes Imperiais. Mas, Kaesar, como sempre, fez sua decisão valer sobre todas as outras. 

  Não passei cinco anos da minha vida lutando pelo Continente dia e noite, para a porra de nobres que recebem medalhas de honra estando confortavelmente sentado nas salas de banquetes e gastando dinheiro com vinhos e prostitutas dizer o que devo ou não fazer com as minhas crianças, era isso que ele pensava enraivecido toda vez que algum nobre aparecia para lhe dar "conselhos" de como criar e educar seus filhos. Sendo que eles seriam os primeiros as fazer os irmãos matarem uns aos outros assim que Kaesar desse alguma brecha.

  — Como ela está? — perguntou bagunçado os cabelos enquanto suspirava frustrado.

  Naquela manhã, havia tido mais uma reunião tediosa e longa sobre algumas minas de Artemísia, que definitivamente não deixaria nas mãos de um insolente Barão que dizia tê-las descoberto sendo que o próprio Império havia mandado uma expedição com estudiosos para os quatro cantos do Continente para esquadrinhá-lo e definir onde havia os melhores pontos naturais de Artemísia.

  — A Princesa Imperial se encontra bem, Vossa Majestade Imperial — Liliane disse ainda de cabeça baixa. — Nos últimos dias ela está se esforçando para dar seus primeiros passos e caiu algumas vezes. Agora teve um pequeno arranhão no queixo, mas nada grave. — Kaesar apenas assentiu. 

  Apesar de não ser inclinado a confiar em outras pessoas que não fossem aquelas do seu círculo próximo, principalmente devido ao que aconteceu na última vez que se deixou confiar em alguém, ele acreditava nas palavras de Liliane LeBlanck. Tinha a impressão de que ela nunca mentiria quando se tratasse do bem-estar da pequena princesa.

  — Certo, fico satisfeito em saber que... — O Imperador se calou ao ver o par de olhos rubi lhe encarando atentamente por entre os braços da governanta. Kaesar sorriu pequeno e se aproximou a passos lentos, como um verdadeiro predador.

  Vívian se acomodou melhor nos braços de Liliane de modo que conseguisse ver o visitante. Ele trajava uma blusa branca de linho com os primeiros botões abertos e com as mangas puxadas até os cotovelos e uma calça de couro. Em seus ombros havia uma espécie de capa vermelha enfeitada com joias preciosas e seus pés calçavam botas pretas lustrosas. 

  Ela ainda acreditava piamente que Kaesar era uma espécie de anjo devido a sua beleza que beirava o divino. A pele amendoada parecia ter sido beijada pelo próprio sol, os olhos cor de ouro eram um pouco puxados lembrando um perigoso felino e os cabelos eram de um loiro claro com o comprimento abaixo das orelhas. E, mesmo que ele não dissesse uma única palavra, sua presença continuava a ser esmagadoramente impactante, principalmente quando se aproximava daquela forma que poderia ser facilmente confundida com um andar despreocupado em meio a um Banquete Imperial, mas que na verdade era o andar de um predador feroz que sabia caminhar sem titubear entre os inúmeros corpos daqueles que matara no campo de batalha.

  Antes que pudesse continuar a refletir sobre Kaesar e sua aparência que parecia brincar entre os anjos e os demônios, Alydiana teve seu corpo puxado e erguido enquanto sua barriga era atacada pelos lábios dele lhe provocando cócegas. Ela não pode evitar a gargalhada infantil e alegre que escapou de sua boca. Aquelas cócegas também pareciam ressoar em seu coração.

  — Menina travessa — Kaesar disse a encarando com um sorriso radiante. Alydiana riu baixinho enquanto esticava os braços na direção do Imperador e balbuciava.

  Ela não conseguia temê-lo.

  Na primeira vez que o viu, naquela estalagem decrépita, Kaesar estava coberto de sangue e com uma expressão desolada, que fez com que quisesse consolá-lo e, mesmo depois de meses e de saber que vivia baixo o estigma de ser a filha renegada do Sol do Império, aquele sentimento não havia sumido. Na verdade, Alydiana passou a acreditar que aquele título era mais um disfarce do que qualquer outra coisa, prova disso era as milhares de vezes que Kaesar a visitou nos últimos meses e como ele lhe tratava. Isso a deixava intrigada sobre o porquê de ser mencionada como algo indesejado e até mesmo amaldiçoado.

  — Você fica mais esperta a cada dia — ele disse bem-humorado. Seu sorriso rapidamente adotou contornos de implicância que fez a filha ficar em alerta, ela havia aprendido a decifrar os sorrisos dele. — Apesar de parecer que também diminui a cada dia.

  Alydiana inflou as bochechas chateada. Apesar de não saber qual era a sua altura, julgava que deveria ser muito apropriada para um bebê. Kaesar aproximou a mão de sua face, mas ela virou para o outro lado com um bico nos lábios, o que fez com que ele lhe encarasse surpreso.

  — A deixei zangada? — perguntou arqueando as sobrancelhas. — Ela está zangada, senhorita LeBlanck? — indagou sem tirar os olhos de sua pequena princesa.

  — Não sei dizer, Vossa Majestade Imperial — Liliane respondeu encarando atentamente a interação entre eles. Ela ainda se surpreendia com a diferença gigantesca entre o Grande Imperador Kaesar e o pai da garotinha que cuidava. — Geralmente, o entendimento das crianças nessa idade ainda é limitado.

  — Mas? — Kaesar instigou afagando os cabelos de Alydiana enquanto guiava a cabeça da filha para repousar em seu ombro, o que ela fez de bom grado. Desde que havia nascido naquele mundo, não havia lugar mais confortável para se estar do que no colo de Kaesar, era quentinho, confortável e ele parecia lhe segurar como a coisa mais frágil do mundo.

  — Mas, a princesa é incrivelmente inteligente — a governanta disse determinada com um sorriso orgulhoso nos lábios. — Então, acredito que ela possa nos entender muito bem e que já tenha sua própria personalidade em formação.

  Kaesar nada mais disse enquanto andava até as portas da pequena sacada. Ele encarou o céu ser tingido pelos tons mais diversos de laranja e continuou segurando Alydiana enquanto afagava seus cabelos carinhosamente.

  — Traga o jantar da Princesa e depois pode se recolher — disse baixinho. Liliane ponderou sobre a ordem que recebera, mas, fez uma rápida reverência e saiu do cômodo. De qualquer forma, sempre voltava durante a madrugada para zelar pelo sono da princesa, então não havia nada com o que se preocupar.

  Alydiana encarou o Imperador curiosa. Com a cabeça deitada em seu ombro e vendo a sua face sendo tingida pelo reflexo dos últimos raios de sol. Apesar de basicamente viver no campo de batalha, seus traços não eram brutos, pelo contrário, eram delicados como os traços de uma escultura em mármore esculpida com esmero. Além disso, o seu porte físico não era grande e musculoso, mas ele era forte e Alydiana poderia afirmar com convicção que não havia lugar mais seguro para estar no Império se não fosse entre os braços de Kaesar.

  Sua aparência meio andrógena podia facilmente dar a falsa impressão de que o Imperador era alguém inofensivo e apenas detinha uma grande beleza, o que era algo completamente destoante da realidade. Kaesar Melchior Aldebrahäm não se tornou Imperador encantando a todos com sua aparência em salões de baile ou levando em consideração critérios estéticos, não, foi considerado quantas nações foram massacradas pessoalmente por ele até que seus governantes se ajoelhassem pedindo clemência e o povo lhe jurasse submissão e lealdade, reconhecendo enfim a soberania do Império Aldebrahäm. 

  — Essa é a hora que eu mais odeio no dia — Kaesar murmurou quando o sol deu lugar as primeiras estrelas no mar celeste que o céu noturno era.

  Alydiana viu o exato momento em que a expressão dele se fechou e seu olhar se tornou distante e quebrado. Ela não gostava quando isso acontecia. Tentando chamar sua atenção, a pequena puxou levemente uma mecha de cabelo dele e automaticamente teve os olhos de ouro derretido sobre si.

  — Você puxou o meu cabelo, menina travessa? — perguntou apertando a pontinha do nariz dela e em reposta recebeu uma risadinha infantil. — Acho que você é a única pessoa no Império que se atreveria a puxar o cabelo do Imperador sem medo ou remorso nenhum. — Ele encarou os olhos rubis e sorriu pequeno.

  Kaesar usou seu Elo invocando uma corrente elétrica para ligar as Artemísias Douradas presentes no quarto, o que encantou Alydiana. O grande diferencial daquele mundo para o seu mundo antigo era a presença de magia e a forma como ela havia influenciado o desenvolvimento das tecnologias ao seu redor, além da vida das pessoas que podiam utiliza-la. 

  — Você também não teve medo de mim quando me viu pela primeira vez — Kaesar disse sentando na cadeira de balanço que havia perto da pequena sacada no momento em que Liliane apareceu com uma mamadeira e lhe entregou, saindo logo em seguida. — Seus olhos pareciam mais curiosos do que amedrontados. — Ele verificou a temperatura do mingau.

  Curiosamente, Alidyana podia enxergar bem desde o momento em que nasceu, o que era atribuído facilmente as excelentes habilidades e dotes oferecidos pelos genes da Família Imperial e sua inclinação ao desenvolvimento rápido e eficiente de sua prole.

  — Espero que você nunca me tema, Lily — o Imperador disse sorrindo pequeno enquanto via a filha comer com afinco. — Eu nunca a machucarei — murmurou acariciou o pequeno sinal que ela tinha próximo ao olho. Era a única coisa em aparência que possuíam em comum e ele se apegava aquilo por mais simples que fosse. — É uma promessa, minha Lily. — Mais uma vez a expressão desolada tomou conta de Kaesar.

  Alidyana não sabia o que o fazia ficar daquela forma. Mas, definitivamente não gostava de ver a expressão relaxada e alegre de Kaesar ser substituída por aquela onde ele parecia estar sofrendo. Agindo rapidamente, ela empurrou a mamadeira e puxou a blusa do Imperador.

  — Dada — chamou determinada, mas logo suas bochechas coraram em constrangimento. Havia ensaiado aquela palavra inúmeras vezes, mas ela sempre saia da forma errada. — Pada! — tentou novamente grunhido quando não conseguiu a pronuncia que desejava. — Dadapa!

  Kaesar a encarou atônito. Alydiana não sabia se ele estava impressionado ou chocado com sua tentativa falha de comunicação e, quando estava começando a acreditar que ele estava decepcionado por sua verbalização precária, o Imperador rapidamente soltou a mamadeira no chão e segurou sua face.

  — Você acabou de me chamar de papai? — indagou piscando rapidamente. — Você me chamou de papai, não foi? — Ele realmente queria saber se não era uma coisa da sua imaginação cansada.

  — Dadapa! Dada! — Alydiana chamou ainda sentindo suas bochechas coradas.

  O Imperador levantou da cadeira em um pulo e ergueu a pequena princesa a girando em seus braços enquanto sorria radiante. Para ela, o sorriso dele podia facilmente fazê-la acreditar que o dia havia amanhecido novamente.

  — Você realmente é incrível, menina travessa! 

  Alidyana riu mesmo que sentisse que sua comida iria voltar e Kaesar a acompanhou gargalhando alegremente. Mas, então, ele parou abruptamente e a puxou para seu peito a abraçando protetoramente enquanto fechava os olhos e respirava profundamente.

  — Você não merecia o fardo de ter nascido como minha filha, minha Lily — murmurou e Alydiana sentiu algo molhar o topo de sua cabeça. — Muito menos como filha daquela mulher.

  Horas mais tarde, quando as benções de Betelgeuse, o deus da noite, caiam sob o Império, cobrindo a todos com o seu manto ladrilhado de estrelas, ao mesmo tempo que a presença de Altair, o deus do dia, começava a irradiar no horizonte, Vívian acordou. Apesar de não possuir sua antiga vida, seu corpo e sua mente estavam incrustrados com o costume de acordar naquele horário, já que desde uma tenra idade teve que se acostumar a levantar cedo e fazer a cama antes que a Diretora Orfelia do Lar Para Crianças Abdicadas aparecesse para a inspeção matinal.  

  Ela se espreguiçou e encarou sua pequena mão enluvada, bufando desgostosa ao constatar que mais uma vez havia levado a mão a boca enquanto dormia. Não sabia o que sentir em relação a ter sido uma mulher na casa de seus vinte e poucos anos meses antes e agora ser um bebê que não conseguia manter a mão longe da boca quando suas gengivas coçavam irritantemente.

  Vívian suspirou e encarou o mobile giratório sobre o berço. Desde a primeira vez que dormiu naquele cômodo, aqueles bichinhos estavam ali girando e girando com a leve brisa que entrava pela sacada. Gostava de observá-los. Um dragão cinzento com as assas abertas. Um lobo com uma pelagem mesclada o cinza com o preto que estava correndo. Um leão dourado que ela particularmente achava encantador apesar dele apenas estar deitado sobre as próprias patas. E, por fim, havia uma águia com uma cobra feroz ao seu redor, mas não parecia que aquele era um caso de lei da sobrevivência da selva.

  — Dizem que se as crianças não dormem corretamente, elas não crescem — a voz sombria e distante reverberou pelo cômodo e Vívian sorriu ao ver os brinquedinhos girarem mais rapidamente quando a presença dele os atingiu. — Você continuará do tamanho de um peixinho dourado para sempre, então. — Seus passos não ecoaram quando ele se aproximou do berço e se apoiou em sua lateral parecendo a encarar atentamente.

  Era impossível discernir sua estatura, sua face ou até mesmo saber a cor de seus olhos, pois tudo era um emaranhado de sombras que pareciam se sobrepor em uma fogueira de chamas negras e densas. Vívian manteve o sorriso.

  Na primeira vez que aquele espectro estranho apareceu, ela acreditou piamente que era algum assassino e seu fim havia chegado mais cedo do que o esperado, mas, ele nada fez. Apenas ficou ao lado do berço parecendo lhe observar. Na segunda vez, ela cogitou se tratar de alguma assombração do Palácio Safira que estava se incomodando com sua presença indigna. Mas, na terceira, ficou irritada em apenas ser encarada por aquele montinho de sombras e tentou estabelecer alguma comunicação balbuciante, o que o fez gargalhar e, desde então, ele começou a falar consigo.

  — Se bem, que você também é uma dorminhoca — a sombra se aproximou de sua face e ela teve a sensação fantasmagórica de sentir sua bochecha ser apertada. Vívian tentou contradize-lo, mas mais uma vez apenas sons desconexos saíram de sua boca. — Não consigo te entender, passarinho. — Um bico emburrado se formou inconscientemente nos lábios dela e a sombra fantasmagórica afagou seus cabelos. — Ainda não.

  Vívian não sabia quem ou o que ele era, até porque nunca houve mais do que três parágrafos para descrever toda a vida de Alydiana e suas relações, sendo citada apenas Liliane LeBlanck e o Segundo Príncipe Imperial. Então, ela não tinha a menor ciência de qual seria o relacionamento da princesa com aquele montinho de sombras e nem qual a função dele na história. Mas, até o momento, o montinho de sombras falante não era nenhuma ameaça, a não ser que a ameaça fosse provoca-la sobre seu tamanho e suas tentativas balbuciantes que mais pareciam piados de um filhote de passarinho irritadiço.

  — Você vai crescer logo — ele disse com a voz mais distante do que o habitual. — Os humanos crescem e morrem em um piscar de olhos — murmurou melancólico.

  Aquilo a intrigava. Mas, não havia nenhuma resposta que pudesse obter para as milhares de perguntas que possuía, pelo menos não naquele momento.

Olá, docinhos!

O que acharam da interação entre o Kaesar e a Alydiana? Possuem alguma suspeita sobre quem é o montinho de sombras falante? 

Espero que estejam gostando e que continuem acompanhando

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