Capítulo III

Aquela que desistiu de ser salva


  A sensação de estar afundando em um mar silencioso e escuro estava esmagadoramente presente. Os olhos estavam firmemente fechados por mais que ela se esforçasse para abri-los. O corpo não obedecia aos seus comandos desesperados e, mesmo que sua mente gritasse para que reagisse, não conseguia fazer nada. Entretanto, tinha a impressão de que não conseguiria sair do local em que se encontrava mesmo que estivesse em suas capacidades motoras normais. A par da verdade, ali era silencioso, tranquilo e cálido, então, se aquilo era algum tipo de pós vida, não era de todo ruim ao seu ver.

  Algo começou a lhe empurrar e aquilo era deveras incomodo. Além disso, parecia que alguém estava gritando, pois conseguia escutar mesmo que seus ouvidos parecessem tampados por litros de água. Aos poucos, seu corpo foi forçado a seguir o caminho que parecia ser a única saída e, quando ela menos imaginou, sentiu um forte tapa em suas costas e o ar adentrou rasgando seus pulmões. Mesmo se esforçando, não conseguiu segurar as lágrimas que escaparam de seus olhos, mas, conseguiu controlar a tempo um soluço sofrido que queria lhe escapar por entre os lábios. Não queria chorar, muito menos soluçar chorosamente na frente de quem quer que fosse.

  Uma mulher falava freneticamente com um forte sotaque enquanto erguia seu corpo e o envolvia em algum tipo de manta áspera e fina. Mas, por mais que a voz estivesse perto, Vívian não conseguia entender nenhuma palavra. Na verdade, não entendia nada daquela situação.

  Veja bem, ela com toda a certeza do mundo havia morrido quando aquele carro chocou contra o seu corpo, então, aonde poderia estar? Aquilo definitivamente não parecia ser o além.

  — Senhorita. Senhorita Silvys! — a mulher chamava desolada enquanto segurava firmemente o pequeno embrulho em seus braços. — Senhorita Charlotte, por favor, não desista agora. O seu bebê está aqui, veja.

  A governanta encarou firmemente a face de Charlotte, esperando que a jovem tivesse qualquer reação que fosse, mas, seus olhos estavam vidrados e pareciam distantes e perdidos, tal qual como estiveram nos últimos meses. Aquilo partia o coração da velha senhora que acompanhou aquela senhorita desde que ela deu os seus primeiros passos, mas que agora se resumia a uma pessoa com o corpo ensanguentada, a alma quebrada e o coração despedaçado que desesperadamente se agarrou uma única coisa por todos aqueles meses, a vontade ardente de proteger o ser que carregara em seu ventre.

  — Senhorita, você estava certa — disse tentando controlar a voz trêmula enquanto aproximava o bebê de Charlotte. 

  A doce menina que havia criado por todos aqueles dezessete anos havia encontrado o seu fim e o coração da leal governanta chorava a cada segundo em que o que restara de vida em Charlotte parecia escapar de seu corpo lentamente.

  — Seu bebê é uma menina, uma menina linda e saudável. — Ela colocou delicadamente a recém-nascida ao lado da cabeça da mãe, que, com suas últimas forças, virou a face e encarou o bebê esboçando um frágil sorriso.

  — Minha pequena felicidade — Charlotte disse em um fio de voz enquanto fechava os olhos lentamente. — Viva — sussurrou enquanto a última parte de sua alma se estilhaçava e era consumida.

  — Senhorita — a governanta chamou. — Senhorita Silvys! — Ela tocou a face suada da jovem menina e sentiu a calidez deixar o corpo daquele que um dia teve o sorriso comparado com a própria luz do sol primaveril. — Oh, minha criança! — As lágrimas mancharam o rosto enrugado e cansado da senhora. 

  Charlotte havia lutado até o último momento. Havia lutado para sobreviver, para conseguir escapar daqueles que a caçavam e se manter viva. Mas, acima de tudo, ela havia lutado para proteger aquele pequeno ser que havia se tornado a razão de sua vida desde o momento em que descobriu que o carregava em seu ventre. E Charlotte o protegeu com tudo o que tinha.

  — Descanse, minha doce menina. — A governante fechou lentamente os olhos que um dia pareceram os rubis mais belos do Continente. — Você merece descansar.

  Após alguns minutos, um estrondo ecoou acompanhado do som de gritos, o que arrancou a senhora de sua nuvem de dor e luto. Os Guardas Imperiais pareciam enfim tê-las alcançado, porém, não encontrariam quem buscaram desesperadamente durante aqueles nove meses, pelo menos, não em vida.

  Com a rapidez e a maestria que todos aqueles anos como a governanta da grande e respeitada família Silvys lhe garantiram, ela vestiu a capa jogada sobre a cadeira velha que havia no quarto e pegou o diário sobre a mesinha torta. Aquele diário havia acompanhado Charlotte desde os primeiros dias de sua batalha frenética pela vida de sua criança amada. 

  A governanta arrancou uma das últimas páginas que sua jovem senhorita havia escrito e colocou dentro da manta do bebê.

  — Pequena senhorita — disse acariciando com carinho a face rechonchuda da recém-nascida. — Que os deuses protejam e os Espíritos Ancestros guiem por um bom caminho... — Ela caminhou a passos rápidos até a janela do quarto e encarou uma última vez aquela que criara como uma filha e sua pequena bebê. — Vocês duas.

  Quando os gritos do lado de fora do quarto cessaram e os passos pesados começaram a se aproximar apressadamente, a velha governanta pulou pela janela segurando contra o peito o maior tesouro que possuía, o diário de sua doce menina.

  Ele havia percorrido o Continente de Leste a Oeste, Norte a Sul. Havia vivido mil e uma batalhas, decapitado mais pessoas do que qualquer um conseguiria lembrar e estava mais manchado de puro carmesim do que um quadro que reunisse todos os tons de vermelho do mundo. Contudo, nada... Nada naquele maldito mundo poderia ter lhe preparado para o caos que sua vida e seu coração se tornaram no decorrer daqueles quase dez meses. E, finalmente, após dias excruciantes havia encontrado o seu alvo em uma estalagem de beira de estrada na fronteira entre Aldrebrahäm e Azuryus.

  Após longos meses de uma louca e frenética caçada, todos tinham uma certeza absoluta, Charlotte Silvys não sairia dali com vida, não se dependesse do Grande Imperador, Kaesar Aldrebrahäm.

  — Não há ninguém nos aposentos além da senhorita Silvys, Vossa Majestade Imperial — Elfräm, o capitão dos Cavaleiros Carmins, a primeira divisão de cavaleiros imperiais responsáveis por lutarem diretamente ao lado do Imperador, disse.

  Kaesar adentrou o cômodo e seus olhos dançaram como labaredas flamejantes por cada lugar daquele pequeno quarto até parar na cama, onde alguém se encontrava deitado. A passos lentos e pesados, ele se aproximou. Mas, sua cabeça começou a girar quando a cada passo que dava o cheiro de sangue se tornava mais forte e pungente.

   Ao encarar o corpo pálido manchado com o mais puro carmim nos membros inferiores, ele quis gritar. Gritar de frustração, de raiva. Mas, acima de tudo, queria gritar de ódio. O mais puro ódio por aquela mulher ter morrido daquela forma.

  — Não era pra ser assim — disse sentindo sua pele arrepiar. — Ela não deveria ter morrido assim. 

  O ar no cômodo ficou denso e estático fazendo alguns cavalheiros recuarem alguns passos. Ninguém estava totalmente confortável ao estar perto de um ser tão perigosamente poderoso quanto um deus, principalmente, quando o mesmo perdia o controle.

  — Ela deveria sofrer. — Algumas faíscas de energia emanavam de Kaesar e ricocheteavam pelo cômodo. — Eu a faria sofrer. — Seu Elo estava se descontrolando. — Eu a faria pagar. — Seus punhos cerrados eram uma tentativa frívola de controlar o poder que rugia para ser liberado. — Eu... Eu a mataria com as minhas próprias mãos.

  Foram meses seguindo o rastro de Charlotte. Meses tentando capturá-la, mas, ela sempre escapava por um triz. Então, quando enfim conseguiu pegá-la, ela fugiu de si mais uma vez, porém, dessa vez, não poderia seguir o seu rastro e nem ao menos teria a chance de a encurralar e fazer as perguntas que tanto lhe assombraram naqueles últimos meses.

  Charlotte sairia impune e Kaesar teria que viver com aquela dor latente.

  — Kaesar — Dryon, seu fiel braço direito, chamou em um claro sinal de aviso. 

  Se o Imperador se descontrolasse naquele momento, ninguém, em um raio de cinco quilômetros, sobreviveria. 

  — Acabou, nós... — Um pequeno resmungo fez a temperatura no quarto cair drasticamente e os olhos faiscantes do Imperador enfim repararam no pequeno embrulho ao lado da face de Charlotte.

  Engolindo em seco, ele puxou levemente a manta e viu a pequena face da vida que Charlotte havia se esforçado desesperadamente para trazer ao mundo, aquela a quem ela protegeu até em seus últimos momentos. 

  Kaesar sentiu como se um pilar de gelo estivesse perfurando seu estômago ao mesmo tempo que seu coração ardia em chamas. E ele não conseguiu controlar as dolorosas lágrimas que despontaram de seus olhos dourados quando o pequeno ser agarrou o seu dedo.

  Vívian nunca imaginou que seria tão difícil abrir os olhos. Suas pálpebras pareciam estar coladas.

  Naquele momento, sons e odores confundiam seus sentidos e não conseguir ver o que acontecia ao seu redor lhe deixava angustiada. Seus pulmões ainda pareciam comprimidos e seu corpo tremia pelo frio e pelo medo que começava a sentir, mas, quando tentou esticar a mão para tatear o local onde estava, conseguiu agarrar algo cálido.

  Ela forçou mais uma vez os olhos e, após muito esforço, enfim conseguiu abri-los. Porém, assim que a luz a atingiu, ela os semicerrou soltando um leve resmungo. Era como se o próprio sol estivesse a alguns milímetros de sua face.

  Quando se adaptou a claridade, Vívian viu um teto de madeira, que com toda certeza não protegeria ninguém caso chovesse, pois ela conseguia ver pontinhos luminosos que julgou serem estrelas no céu. 

  Aquilo não parecia nem de perto um hospital e ela não acreditava que fosse possível terem a levado para um lugar completamente diferente que um pronto socorro após o acidente que sofrera. Mas, aonde estava?

  Inspirou profundamente. O cheiro ferroso e pungente de sangue adentrou seus sentidos e mais uma vez seu corpo não lhe obedeceu e lágrimas grossas escorreram por sua face. Ela tentou se mexer, mas não conseguiu, parecia que seu corpo era uma grande massa de gelatina e a única coisa que conseguia fazer era se manter segurando aquilo que tinha um calor reconfortante naquela noite fria e desconhecida.

  Vívian seguiu com o olhar até o que segurava e se deparou com uma pequena mão cobrindo um dedo de uma mão grande manchada de sangue. Se não estivesse surpresa o bastante ao constatar que aquela pequena mão lhe pertencia, haveria largado aquele dedo pertencente a uma mão desconhecida e ensanguentada automaticamente. Mas, naquele momento, ela estava mais preocupada em encaixar as confusas peças daquele quebra-cabeças. 

  Com uma pitada de desespero se apossando de seu coração, ela encarou o dono do dedo no qual se agarrava e, piscando algumas vezes para focalizar, se deparou com uma face do que, em sua concepção, só podia ser um anjo. 

  O anjo chorava copiosamente e tentava inutilmente controlar os suspiros trêmulos e sôfregos que escapavam por seus lábios. Ele a encarava de uma forma tão dolorosa que, por um momento, Vívian esqueceu completamente suas preocupações e indagações, tendo seu coração tomado por uma dor de reconhecimento.

  Ele parecia tão machucado quanto ela. Parecia tão sozinho e despedaçado, que isso a fez querer consolá-lo e garantir que tudo ficaria bem.

  Em um reflexo, Vívian apertou sua mão, o que pareceu acordá-lo de um transe. O anjo limpou bruscamente as lágrimas com a mão livre, o que sujou sua face com sangue, mas, ele não pareceu se importar.

  Quando voltou a encará-la, seus olhos foram para o papel que estava pendendo de dentro da manta.

  — Minha pequena felicidade — leu entredentes. — Alydiana Aldrebrahäm. — Ao escutar aquele nome a mente de Vívian entrou em alerta vermelho e ela sentiu o mundo girar. 

  Conhecia aquele nome, para ser mais exata, o sobrenome lhe era bem familiar. E, aquilo estava longe de ser um bom presságio.

  Kaesar voltou a encarar o pequeno ser que ainda segurava seu dedo enquanto soltava pequenos resmungos. O Imperador não pode impedir que um pequeno sorriso escapasse por seus lábios ao ver a pequena bebê fazer aqueles sons inteligíveis enquanto parecia falar consigo mesma.

  O Imperador teve cada um dos seus planos frustrados e, de todas as vezes que imaginou encontrar Charlotte Silvys nenhuma se passou naquele cenário, então não sabia o que fazer. Poderia incendiar o local e por um fim a toda aquela história, assim como condenar Charlotte e aquele bebê ao esquecimento. Mas, nada diminuiria sua dor.

 Além disso, aquela pequena possuía seu sangue, mesmo que sua forma de chegar ao mundo tenha sido conturbada, ela não poderia carregar os pecados de sua mãe. Não deveria ser penalizada por crimes que não lhe pertenciam. 

  Com um suspiro cansado, Kaesar mexeu a pequena mão, o que rapidamente capturou a atenção dela e a fez lhe encarar curiosa. E, como para reafirmar sua escolha recém-tomada, ele viu naqueles olhos determinados uma alma com sede de viver. 

  Sorrindo pequeno, Kaesar disse balançando a pequena mão que lhe segurava:

  — Bem-vinda ao mundo, Alydiana Lily Aldrebrahäm. 


Olá, docinhos!

Curiosos com a história da Charlotte? Querem saber qual a relação dela com Kaesar ou já possuem alguma suspeita sobre os segredos que os envolve?

Espero que estejam gostando e que continuem acompanhando 

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